A Tempestade tem tons de verde.

Baía dos Navegantes, 27 de abril de 1973.

“Doce Regina, a distância entre nós parece aumentar a cada carta não respondida. Me lembro de olhar nos seus olhos enquanto me pedia que onde quer que eu estivesse, enviasse cartas para provar que não me esqueceria jamais de ti. Talvez meu maior medo tenha se tornado real, a lembrança ficara toda comigo e você já não se recorda do quão imenso nós fomos. Tem sido dias de intensa chuva e a impressão que tenho é que jamais deixará de chover.”

Com amor, Hans.

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Cidade do Porto, dias atuais.

_ Atenção!! Defesa civil emite novo alerta de tempestade para a data de hoje! Fiquem atentos, não se aproximem da faixa litorânea pois há possibilidade de maré cheia e ondas com mais de 15m de altura. A defesa orienta em casos de destelhamento de residências ou falta de abrigo procurar pela igreja da colina ou o ginásio da escola adventista.

Se me perguntarem o motivo pelo qual temos um rádio em casa, com aspecto anos 80 e com algumas partes enferrujadas que adoecem de tétano à distância, eu realmente não sei responder. O mesmo aviso de tempestade soou no meu aparelho celular há mais de duas horas e todas as medidas de proteção que poderiam ser feitas, já foram. No céu, nuvens revoltas ao longe, parecidas com o clássico Twistter do cinema. Minha mãe ao mero sinal de chuva já pediu que desligasse todos os aparelhos das tomadas, mas ainda que eu aprecie o silêncio, o velho rádio é a pilhas.

Na sala da casa tem algumas mesinhas decorativas, rústicas de madeira maciça, repletas de fotos antigas da família, toalhas de crochê feitas pela vovó ainda na mocidade que mamãe insiste em deixar sobre os móveis, alguns quadros nas paredes, cortinas longas repletas de franjas e presilhas de cobre, alguns sofás e uma poltrona velha que era do vovô, poderia dizer que este cômodo foi tirado de uma pintura, talvez até influenciado pelo estilo rococó, mas alguns não entenderiam. Dentre todos os lugares, meu favorito é a poltrona voltada para a janela principal, diferente de todas as outras voltadas ao aparelho de TV. Gosto de pensar que ela me convida para o conforto de ver a vida real, mesmo que vez ou outra seja pior que a ficção proposta pela tela. Entre as coisas favoritas da vida está sentar-se naquele “treco velho” e confortável, sorvendo uma caneca com chá de canela e anis.

_Vera, busque sua avó no andar de cima, o almoço está quase pronto.

Vovó sempre preferia ficar em seu quarto e quase nunca ficava na sala conosco. Quando eu era mais nova gostava de ficar no quarto dela, deitada nos pés da cama enquanto ela me contava muitas histórias de princesas.

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_ Você é uma princesa, sabia? Todas as histórias de princesas tem finais felizes, independente do que elas enfrentam.

_ Você também é uma princesa vovó?

_Claro que sim. Algumas histórias são mais longas que outras, mas todas elas terminam bem.

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Subo as escadas, olhando para meus pés com meias coloridas, cobertos em parte pela barra das calças do pijama, mais longas do que deveriam ser, me recordando das frases de vovó sobre princesas e me perguntando se existe algum reino de meias onde príncipes cavalgam unicórnios de pelúcia em campos fofinhos como enchimentos de almofadas. “Vera, policie seus pensamentos, você não tem mais 8 anos”. Tropeço nos meus pés e quase caio no último degrau, de fato pareço ter oito anos agora e com uma coordenação motora nada boa.

O quarto da vovó fica no fim da escada, e vejo a porta entreaberta. Dou duas batidas como de costume e vejo que vovó está sentada na cama em direção a janela. A vista é a mais linda da casa, dá para ver algumas moradias, a avenida principal e ao longe o oceano. Em dias de sol, parece um mar de diamantes, tamanho o brilho das águas, mas em dias que a chuva ameaça vir, ele ganha um tom verde intenso e melancólico.

_Vovó, mamãe chamou para o almoço. Vamos?

A idade certamente a atingiu, a pele mostra sinais de décadas vividas, os cabelos, agora acinzentados que ela insiste em não colorir “O tempo precisa ser visto, e eu por si sou a prova dele” ela sempre diz quando alguém propõe um novo visual. Às vezes ela coloca um lenço, ou pequeno adorno, mas quase sempre estão presos em um rabo de cavalo simples. Ao longo dos meus vinte anos consegui ultrapassá-la em altura e a forma como ela se encurva a faz parecer ainda mais baixinha, mas de tudo o que mais amo, e céus, como amo essa mulher, é a profundidade que seus olhos possui, é possível mergulhar e nunca encontrar o fim de tanta imensidão. Ela é linda, ainda que ranzinza e quase por completar 75 anos.

_ Eu posso sentir a tempestade, Vera. E tenho certeza de que ela trará muito mais do que águas e ventania.

_Não fale assim, vó. Vamos torcer para que não seja tão severa como as previsões dizem. Por mais que a costa esteja acostumada, uma tempestade é sempre nova.

_Por ser sempre nova, ela é novidade por si só. Essa não trará apenas chuva.

Ao lado dela na cama está uma pequena caixa, cheia de selos e imagens de flores coladas e pela cor, já envelhecida, diria que era dos tempos de sua mocidade.

_O que tem nessa caixa, vó?

_Vera, antes de descermos, quero que veja uma coisa.

Ela fez sinal com as mãos sem mesmo olhar em minha direção. Rapidamente entrei no quarto e sentei-me próxima a ela, mantendo a caixa entre nós.

_Se lembra quando me mudei para cá, quando você ainda era bem pequenina?

_Claro que sim, vó. Eu era pequena, mas me lembro bem, o que tem?

_Se sua memória não é falha como diz, se lembra de que mudei a contra gosto para cá, não é? Sinto falta da minha casa. Mas deixe isso para lá. O que lembra sobre as histórias de princesas que eu tanto te contava?

_Me lembro que eram muitas e que todas tinham finais felizes. Por que essas perguntas, vó? Daqui a pouco mamãe vai nos chamar e não quero levar broncas. Ela ainda me trata como criança, mesmo eu já sendo velha.

_Abra a caixa e veja, minha pequena.

Ao abrir a caixa vejo inúmeras cartas, todas seladas, envelopes envelhecidos, alguns abertos outros não, mas todos tinham um único remetente: Hans Schumann.

_Quem é esse, vovó? Não são do vovô August.

_Fique com a caixa, faça o que bem entender com o conteúdo delas. Eu apenas preciso que alguém veja o que eu não vi.

Terminando as palavras, ela se levantou estendendo o braço para que eu pudesse entrelaçar, pois como previsto minha mãe já gritava lá embaixo. A tempestade chegou. O fornecimento de luz foi interrompido. Mesmo fechadas as janelas permitiam a entrada do vento por suas frestas e a visão que eu tinha, em meio ao frio repentino, é que estávamos sendo engolidas por algo muito maior. Mamãe acendeu algumas velas pela casa, vovó estranhamente permaneceu por mais tempo conosco aquele dia, mas assim que pediu para subir ao seu quarto, mamãe a ajudou. Estava eu, sentada no treco velho, bebendo chá à luz de velas e agora com a caixa em mãos. Sobre a história dos meus avós eu conhecia. Sabia que vovô foi para o exército, que conheceu minha avó em um desfile da cavalaria e que logo se casaram. Todos diziam que além de serem um lindo casal, vovô sempre ajudou vovó nos afazeres da casa, quando vieram os filhos também, sempre próximos. Vovó quase não cozinhava, tinhas suas dificuldades, mesmo assim tiveram um lar feliz. Vovó veio morar conosco quando ele faleceu, vítima de um ataque cardíaco. A casa que eles moravam permanece vazia, pois vovó impediu que fosse vendida onde vez ou outra ela pede para ir até lá buscar alguma coisa, creio que essa caixa veio das últimas vezes.

Ao abrir a caixa novamente, a impressão que tive era um número muito maior de envelopes. Em um deles dizia : “a primeira de muitas”:

Baía dos Navegantes, 12 de maio de 1971.

“Bela Regina. Sinto pela minha partida repentina, mas o dever me chamou. Espero que essa convocação para a baía não se estenda por muito tempo. Os comandantes receberam indícios de um conflito iminente nas terras, eu desconfio que seja verdade pois há anos a paz reina e as tropas não são chamadas, ainda assim estarei aqui e espero retornar em breve.

Ansioso para ver seus lindos olhos, seu Hans.”

As cartas seguintes pareciam ser respostas. Conversas sobre o tempo. Sobre livros. Sobre sonhos:

Baía dos Navegantes, 03 de novembro de 1971.

“ah, minha bela! É um acalento para a alma saber que nossos sonhos são compartilhados. Em meu coração tenho a certeza de que és o amor da minha vida e não vejo a hora de nos casarmos. Espero que minha permanência aqui não seja muito maior, meses se passaram e a saudade que sinto de ti parece rasgar o peito em mil pedaços.

Quando chegar e finalmente os soldados partirem para desfile, levarei você comigo a cavalo, como nos contos de fada que tanto aprecia para enfim escrever nosso tão esperado final feliz.”

Com amor, Hans.

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_eles pareciam de fato se amar, mas o que houve?

Ainda durante a noite, difícil distinguir a escuridão da sala com a escuridão lá fora e as velas davam um ar misterioso a sala repleta de pequenas sombras. Pego uma das velas, a caixa embaixo do outro braço e subo as escadas atrás de respostas.

A porta do quarto estava novamente entreaberta e vovó sentada na cama, da mesma forma que estava na manhã daquele mesmo dia.

_Pensei que já estivesse dormindo, vovó.

_Demorou mais do que esperado para me trazer respostas.

Sentei-me na cama, coloquei a vela em um dos criado-mudo próximos e comecei a retirar as cartas abertas da caixa e colocando-as sobre as cobertas perfeitamente estendidas na cama.

_vó, quem era o Hans?

_Conheci ele em uma quermesse na cidade. Quando eu era mais jovem era muito comum ter festas típicas com várias bandas onde vinham pessoas de toda a região. Eu e minhas irmãs estávamos em uma delas, foi onde o conheci. Era o mais alto e formoso entre todos e parecia mesmo um pouco deslocado, depois de algum tempo ele me tirou para dançar e naquela noite conversamos sobre plantações de milho.

_Milho, vó? Não parece um flerte adequado.

_Vocês hoje são modernos demais. Eu como moça solteira e sem a companhia de meus pais já era audacioso dançar com um homem em frente a tantas pessoas. E sim, falamos sobre milho. O Opa dele tinha uma lavoura de milho e ele disse que me visitaria com algumas espigas se eu permitisse.

Um suspiro longo. Seguido de mais um. Suspiros de saudade, tenho quase certeza.

_Ele chegou a visitar minha casa com as espigas, Vera. Sua bisa se encantou com a educação e respeito que tinha com todos e meu pai, meio a contra gosto, permitiu que ele nos visitasse com mais frequência. Eu era a filha caçula e ele gostaria de casar as mais velhas antes, mas o homem era decente, bonito e honesto. Mesmo seu bisavô e suas regras perceberam o valor que ele tinha.

_Começamos a namorar, aqueles namoros onde cada um se sentava na ponta de um banco e uma das minhas irmãs ou mesmo sua bisa ficava no meio, era raridade conseguir ficar de mãos dadas ou mesmo sozinhos. Conversávamos sobre o tempo, sobre plantio e colheita, sobre animais, sobre as forças armadas e sobre livros. Ele tinha um bom gosto para leitura, preferia os clássicos. Eu sempre soube que era ele. Sempre soube.

_Mas então, o que houve?

_ As forças armadas convocaram muitos homens para permanecerem de sobreaviso na região da baía dos navegantes. Várias embarcações saíram do porto, margeando a costa do país, sentido a baía. Ele partiu em uma delas. Prometemos um ao outro que nos corresponderíamos por cartas enquanto ele estivesse longe. E por assim seguiu por muitos meses.

_porque você parou de ler e responder, vó?

_Sabe que não fui assim, toda minha vida Vera. Eu adoeci, meus pais me levaram a muitos médicos e na época não descobriram de fato o que eu tinha. Eu dormi vendo a lua e na manhã seguinte já não existia mais luz. Depois de anos soube ser uma complicação do diabetes, mas já não era reversível.

_ Não sabia que tinha sido dessa forma, vó. Sinto muito.

_ É algo difícil de explicar, meu amor. Por muito tempo eu não consegui aceitar bem ter perdido a visão, ficava trancada no quarto, não queria comer e não tive coragem de contar para Hans. Ele foi embora enquanto eu via luz, e pensei por muito que ele não me aceitaria enquanto eu fosse sombra. Eu não conseguia ler mais, apenas minhas irmãs sabiam das cartas, mas não confiaria a nenhuma delas responder algo que era tão nosso. Elas passaram a chegar, mas apenas chegavam. Nunca as abri ou permiti que ninguém as lesse, até que um dia elas pararam de chegar.

_ O que houve com ele, vó?

_ eu não sei. Mudamos de casa no final de 1973. As cartas pararam de chegar e eu finalmente pensei que ele havia me esquecido. Guardei todas elas nesta caixa e as escondi comigo todos esses anos. Eu soube do retorno das tropas em 1975. Minhas irmãs me levaram ao desfile de chegada praticamente arrastada, meus olhos não aparentam ser doentes ainda que eu não veja nada então era fácil passar despercebida na multidão. Foi nesse dia que conheci seu avô. Um dos cavalos do desfile saiu da formação e veio em minha direção, quando arremeteu para cima de mim com as patas dianteiras eu não esbocei reação alguma, seu avô veio em minha direção e se colocou na minha frente para me proteger. Me lembro apenas de sentir ele na minha frente, e ouvir muitas palmas. Nos tornamos amigos, ele me visitava quase todos os dias trazendo flores que eu diferenciava pelos aromas. Depois de um tempo ele me pediu em casamento e nos casamos. Eu sentia o rosto dele e não me parecia ser um homem feio, muitas vezes imaginava o rosto de Hans enquanto o tocava.

_Nunca soube se seu avô descobriu algo sobre Hans. Eu nunca falei e pedi que ninguém contasse. Eu amei seu avô, mas mesmo amores são diferentes Vera. Ele foi honrado, um bom homem que nunca se importou pelo fato de eu não enxergar, mesmo quando eu me sentia um peso, ele sempre me fazia sentir especial. Mas depois que ele partiu, um vazio grande se instaurou em mim. Não é fácil, minha filha.

_ Eu entendo vó. Quer que eu leia alguma delas para você? Pergunto enquanto vasculho um dos envelopes que parece mais pesado que os demais.

_ Tenho medo do que irei ouvir, mas sei que preciso. Talvez alguma palavra possa preencher meu peito e tirar um pouco dessa tristeza.

_Vó, não tem sensação pior do que a incerteza. Não sei como ficou tantos anos sem essas respostas, por que não pediu para mamãe ler?

_Sua mãe sempre foi cética para relacionamentos, minha neta. Quando pequena sempre falava da realidade e por muito tempo pensei que fosse eu a culpada, mas não. Ela sofreu uma única desilusão e se perdeu em um mar de amargura.

_ vó, essa tem algo junto, é um colar. Vó, o colar é lindo!

Maravilhada com a beleza da peça e do brilho das pedras em minhas mãos, estendi eles para que minha avó pudesse sentir e ao tocar, vi o que nunca havia visto, lágrimas e mais lagrimas silenciosas escorrendo pela face dela.

_Posso colocar em você?

Não tive resposta, ainda assim me inclinei para prender os fechos ao redor de seu pescoço deixando a linda pedra tocar sua pele na altura do coração.

Baía dos Navegantes, 22 de dezembro de 1972.

“ É quase natal, minha doce menina. Entre os livros e objetos que trouxe comigo há algo muito especial. Esse lindo colar de esmeralda que lhe dou de presente foi de minha mãe quando era mais jovem e tem um significado muitíssimo especial para mim por dois motivos: primeiro, porque ele me faz lembrar dos seus lindos olhos verdes que ficavam a me fitar em nossos raros momentos a sós; em segundo lugar e não menos importante, é que a robustez dessa pedra me faz lembrar da força do nosso amor, que supera todas as intempéries e distancias que insistem em nos separar. Quando colocares esse colar eu seu pescoço e trazê-lo para perto do coração, lembre-se do meu amor prometido a você, amor esse que te jurei um dia e que atravessa as barreiras da vida e da morte.

Feliz natal,

Seu Hans.

_ Vó, você está bem?

_melhor do que esperava, minha menina, obrigada. Posso te pedir um favor?

_Claro que sim.

_Pode deixar essa carta comigo? Eu preciso dormir agora.

_Tem certeza de que está bem?

_ Não estou mais sozinha meu bem. Essa noite eu não dormirei sozinha.

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Se ela de fato conseguiu dormir, eu não sei, mas toda essa história me deixou inquieta por um desfecho. Onde será que Hans está? Será que se casou? Ele voltou da baía? Como vovó conseguiu guardar essa história por tantos anos e porque me contou apenas agora?

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Na manhã seguinte, depois de uma noite chuvosa e uma bela dor de cabeça adquirida me coloquei a fazer algumas ligações. Ninguém consegue sumir do nada, alguém tem alguma pista sobre esse homem em nossa cidade, afinal ele era daqui. Duas ligações mais tarde e uma aspirina, consigo o telefone de um tal Helmut, que diziam ser sobrinho neto do tal Hans.

_Bom dia, Helmut?

_Sim, quem gostaria?

__ Me chamo Vera, gostaria muito de conversar com você sobre um tal Hans, é seu familiar?

_Sim, é irmão do meu avô. Como conseguiu meu contato e sobre o que quer falar?

_ É sobre Regina, ele com certeza sabe quem é.

_ Um minuto, vou passar o telefone para ele.

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Subo as escadas em passadas largas, parecendo uma pata. Continuo com meias coloridas e o pijama de guerra.

_Qual credibilidade tenho eu vestindo isso?

Entro com rapidez no quarto e visto a primeira roupa aparentemente decente que encontro no caminho. Com a mesma pressa vou ate o quanto de minha vó e ela surpreendentemente me diz:

_Você demorou mais do que imagina, minha neta.

_ Coloque uma roupa mais quente e sapatos fechados vó, nós vamos fazer um passeio no campo.

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A tempestade destruiu vários pontos da cidade e as estradas estavam repletas de entulhos. Estranhamente minha avó sabia para onde estava indo ainda que seus olhos não pudessem ver.

_ Outras pessoas moram naquela casa, Vera. Por que estamos indo justamente para lá?

_Estamos indo atrás do final feliz vó.

E dando ar de suspense a própria história, permaneci em silencio pelo resto do caminho até chegarmos à casa onde vovó passou parte da sua infância e adolescência. De longe eu pude avistar a frente do portão dois homens, um mais jovem, talvez com a minha idade ou um pouco mais, alto o suficiente para ser um jogador de vôlei e ao lado um mais velho, estranhamente bem arrumado, esguio, como alguém pouco afetado pela idade que com certeza tinha.

_Vó, está na hora.

_Não vou descer do carro.

_ Ah, mas você vai sim! A senhora é uma princesa, não lembra?

Sem permitir novas falas, desci do carro, abri a porta do carona e tirei o cinto de segurança dela. Se alguém do departamento de trânsito visse a forma como estacionei o carro, tiraria minha habilitação e me proibiria de aproximar de um carro mesmo que fosse para andar no banco traseiro.

_Vem vó, não tenha medo, por favor.

_Eu fugi disso por tanto tempo, Vera. Eu disse para você que essa tempestade traria mais do que águas e ventania, mas não sei se estou preparada para o que de fato ela trouxe.

Eu não consegui dar muitos passos até o homem vir ao nosso encontro.

_Quando eu vi a tempestade eu soube Regina.

_ Eu apenas a senti, mas também sabia. Sei que não existe justificativa para não responder suas cartas, eu apenas sinto muito. Vera não devia ter incomodado sua família, mas ela soube de tudo apenas ontem, antes disso nenhum dos meus mais próximos souberam da sua existência.

_ Não devia ter demorado tantas tempestades para aparecer, eu sempre achei que a chuva não passaria.

_ Pela minha pele eu sinto que finalmente fez sol.

_ Quando finalmente voltei, passei por você durante o desfile, você não olhou em minha direção então pensei que não queria me ver, que de fato havia me esquecido depois de tantos anos. Quando finalmente tomei coragem e retornei entre as pessoas, vi August perto de você. Preferi não me aproximar mais, afinal o amor vem sempre acompanhado do respeito.

_ Eu tive medo de que não me aceitasse, talvez nem eu mesma me aceite após tantos anos.

_Em momento algum permitiu que eu fizesse minha escolha. Se soubesse do ocorrido teria abandonado as tropas para cuidar de você. E quando vi, mesmo que de longe o olhar que mais amo no mundo não cruzar com os meus, pensei que toda a minha vida estaria perdida.

_ Sua esposa e filhos não devem estar gostando desse encontro.

_ Não tenho esposa e filhos. Nunca me casei. Depois que retornei e não me encontrei em você apenas trabalhei para comprar esta casa e viver ao menos com as suas lembranças.

_Não me parece um final feliz para uma história como a sua...

_ Talvez por não ser o final ainda.

Menos de um passo os separava agora e eu, olhando os dois, só conseguia imaginar como eram há tantos anos, jovens, repletos de sonhos e com um mundo inteiro para desbravar. Com suavidade ele toca a pedra cravada no colar enquanto ela sutilmente coloca as mãos em seu rosto, tentando reconhecer cada uma de suas linhas.

_ Eu envelheci, Regina.

_Você continua o mesmo.

E naquele momento, com ele encarando profundamente os olhos dela que eu tanto amo, percebi por que a tempestade tem tons de verde, e que a mesma tempestade traz calmaria a um coração desolado por anos.

Acredito que esse seja o final feliz da princesa.