A CARTA
Hoje é o primeiro dia do ano. Escrevo-lhe a primeira carta desse novo período. Nossa amizade começara através de uma extensa correspondência; quando nos encontramos pessoalmente, sacramentamos o sentimento tecido à distância. Amamo-nos desde o primeiro olhar, desde o primeiro toque das nossas mãos afoitas, desde o primeiro abraço, desde o demorado beijo que acendeu a paixão incondicional de nossas vidas.
Seu trabalho há quilômetros de distância nos separava; sua presença a meu lado não era assídua; limitava-se a pequenos períodos de sete a dez dias; portanto, nosso tempo dividia-se entre o deleite de estarmos juntos e a tristeza da separação.
Você aguardava uma transferência que nos custou dois anos de espera. Enquanto isso trocávamos cartas que preenchiam os lapsos da sua presença.
Cartas sempre foram um elo entre nós. Quando o progresso veio transformar os métodos de comunicação, combinamos que nunca as substituíramos por e-mails, posts, mensagens. Assim através do tempo, o hábito de uma correspondência assídua permaneceu nas nossas vidas.
Para morar juntos procuramos uma casa onde viver. Não tardou encontrarmos o que nos apetecia. Uma casa antiga, muito bem conservada com dois pavimentos: no de baixo, sala de visitas, sala de jantar, cozinha, quarto de banho completo e mais um cômodo amplo que poderia ser um quarto de dormir ou um escritório. Uma elegante escada circular levava ao outro andar com três quartos, outro banho completo, e um pequeno torreão, com janelas guarnecidas de vitrais coloridos.
Construída no alto de uma rua quieta, num terreno amplo, tinha à frente um espaçoso jardim, nos fundos um quintal plantado com frutíferas; do portão que a separava da rua, um caminho largo, calçado de pedras antigas estendia-se aos desgastados degraus de mármore da escada que conduzia ao avarandado, para onde se abriam a larga porta da frente e todas as janelas dos cômodos de baixo.
Ao fazê-la nossa, nos perguntamos o porquê da nossa escolha; sua resposta foi que montaria seu escritório no cômodo do primeiro andar cuja janela permitiria uma visão vantajosa para o avarandado e o jardim.
Por minha vez, (eu me encantara pelos vitrais coloridos do pequeno torreão); confessando minha escolha, despertei seu comentário divertido que era próprio de mim gostar de coisas inusitadas.
Nós a apelidamos a vivenda da colina, e nela edificamos nossa vida doméstica e social; em alegres reuniões recepcionamos parentes e amigos; hospedamos quem vinha de longe oferecendo o melhor do nosso conforto; éramos felizes partilhando o inesgotável sentimento que nos unia.
Enquanto lhe escrevo, recordo: revejo-o no escritório, admirando o jardim pela janela, orgulhoso da floração desabrochada, graças a diligência de seus dotes de jardineiro; ocupando-se em organizar os livros nas estantes; absorvido em seus ofícios e demandas... Eu comparecia ao seu paraíso particular, com mimos de esposa, chávenas de chá, biscoitinhos, chocolate quente se os dias eram frios... Você me tomava nos braços; desmanchava-me as tranças, murmurando querer mergulhar no incêndio dos meus cabelos. E nos entregávamos ávidos à urgência do nosso desejo.
Nas últimas semanas do ano que passou, seus três sobrinhos vieram ficar comigo para comemorar as festas. Você deve recorda-los, quando ainda crianças, vinham passar conosco as férias colegiais.
Os três eram entregues aos nossos cuidados por quinze dias, para descanso dos pais exaustos. A eles oferecíamos todo o nosso amor e desvelo naquele curto período. Mas nos faltava prática para lidar com a energia de três crianças saudáveis, ativas, cheias de imaginação, praticando folguedos que nos tiravam a paz. Subiam pela galharia das árvores do pomar como destros macaquinhos; arriscavam-se pelos quintais da vizinhança para colher frutas maduras; desciam velozmente a ladeira, pilotando frágeis bicicletas. Juntando-se com a molecada do bairro, desafiando todas as precauções, iam nadar na perigosa lagoa num desbarrancado distante. Temíamos que toda aquela intrepidez terminasse num desastre, mas não havia conselho ou ameaça que os tolhessem. Quando retornavam das aventuras, sujos, cansados, queimados de sol, mas inteiros, respirávamos aliviados, cuidávamos dos pequenos arranhões, ensaiando broncas inúteis. Os três depois de banhados, limpos e descansados, sentavam-se à mesa; com apetite saboreavam os lanches servidos: limonadas geladas, bolos de laranja, biscoitos amanteigados... Desprezando os guardanapos, limpavam os dedos na toalha de linho; e nenhum de nós se importava com isso, tão felizes ficávamos ouvindo seus relatos das peripécias do dia.
Agora são adultos, estão casados, são pais de crianças, ativas e desenvoltas, como eles foram, e que aqui chegaram dispostas a gozar duas semanas de liberdade. As distrações não são tão diferentes daquelas de outros tempos; contudo, os pais atentos, sabem por termo aos excessos com a energia que tanto nos faltou.
Partiram hoje, bem cedinho, debaixo da chuva miúda que deixa o dia nublado e eu mais triste.
Depois dessas semanas de muita azáfama com as idas e vindas nos preparativos das festividades, embora o contentamento e a gratidão permaneçam comigo, o espelho mostra no meu rosto traços de cansaço. Não passei incólume pelo trabalho do tempo. Deixei de ser a inesgotável mulher amada por você; perdi o vigor daqueles anos áureos que vivemos; o cascateado ruivo do meu cabelo, agora são cinzas que cobrem meus ombros exaustos.
Na casa tristonha, apenas a atividade das arrumadeiras, o tilintar da louça sendo lavada, o ruido do aspirador nos quartos vazios, lembra a continuidade da vida.
Quando a tarde cair, descerei a ladeira, levando esta carta. Palmilhando ruas solitárias chegarei ao meu destino: um recanto sombrio semeado com margaridas. E, ali repetirei com voz pausada, diante do jazigo que abriga seus ossos, as palavras que lhe escrevi.
Bh. 7/1/2022
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