O Amor Venceu A Culpa

No princípio do ano de 1972 eu estava de volta à minha cidade. Uma pequena cidade do interior. Eu me casei aos dezoito anos e me mudei pra capital acompanhando meu marido que trabalhava lá. Agora, nove anos depois eu me separei e resolvi voltar à minha terra. Eu sempre fui uma mulher independente e à frente do meu tempo. Trabalhava no Tribunal de Justiça e pedi transferência pra minha cidade. Era independente, não tive filhos e não me importava com o que as pessoas falavam. Naquela época, naquela cidade conservadora, uma mulher desquitada não era bem vista pela sociedade austera e hipócrita. Ninguém era santo, mas faziam tudo por debaixo dos panos e fingiam que não sabiam dos podres uns dos outros. Mas quando uma pessoa ousava ser autêntica e se mostrar, ficavam escandalizados.

Fui morar em uma casa que herdei de meus avós. As mulheres tinham medo que eu lhes roubasse os maridos e os homens achavam que por eu ser desquitada estava disponível.

Mas eu sempre dava um passa fora nos engraçadinhos que tentavam me tratar como uma prostituta. E fazia uma careta para as mulheres que me olhavam de banda. Eu era e sou mais eu.

Menos de um ano depois que eu estava de volta, apareceu na cidade um médico. Ele veio de mudança. Naquela cidade tinha poucos médicos e a maioria não se atualizava nunca. Formavam e nunca mais estudavam.

Ele era um homem de cerca de trinta e cinco a quarenta anos. Era alto, tinha lindos olhos verdes, pele morena, másculo e muito bonito. Mas era triste e sisudo. Seus olhos eram tristes e apagados. Era de poucas palavras e quando falava, era positivo.

Ele montou seu consultório. Como era muito atualizado e experiente, logo logo fez sua clientela. Sempre acertava em seus diagnósticos.

Bem rápido as mocinhas de família tradicional ficaram sabendo que ele era viúvo e viram ali um bom partido. Mas ele não se interessava por ninguém.

Era um homem de muita consciência social e sempre atendia quem precisasse dele.

Na cidade havia uma enorme desigualdade social. E ele sempre tentava ajudar as pessoas. O hospital local era elitizado e ele sempre batia de frente com o prefeito para mudar esta situação. Muitas pessoas que não tinham acesso à previdência social por trabalharem informalmente não eram atendidas. Muitas morriam à mingua.

Eu pensava como ele e sempre estava tentando ajudar as pessoas. Nunca entendi este fosso social e achava que era dever do poder público dar assistência aos mais necessitados.

Um dia eu estava voltando do trabalho e vi uma senhora passando mal no meio da rua. Eu fui até lá tentando ajudar, já que todos passavam sem olhar e alguns até diziam que ela estava bêbada e fugiam. Eu estava tentando saber o que ela estava sentindo quando ela começou a ter uma convulsão. Eu não sabia o que fazer e tentei encontrar um táxi para levá-la ao hospital, mas ninguém queria se envolver. Então o Doutor Marcelo chegou. Mal me olhou e foi atender a senhora. Eu disse pra ele tudo o que se passou. Ele então me olhou e disse:

-Quem é você? É parente da senhora?

-Não. Eu estava passando e vi que ela estava sentindo mal e parei para ajudar.

Ele me olhou de cima a baixo. Viu que eu estava vestida com elegância e que não era uma pobre coitada.

-Você parando para ajudar uma indigente? Não é da cidade por certo.

-Sim, sou da cidade.

Ele continuou examinando a senhora ali mesmo no meio da rua. Aos poucos, com os procedimentos que ele fez ela foi melhorando.

Ele a levou até o consultório que ficava ali perto e eu fui junto. Queria saber o que se passava com ela.

Ele não me deixou entrar no consultório e eu fiquei esperando do lado de fora. Já passava das seis da tarde.

Ele saiu com a senhora do consultório. Não havia mais nenhum cliente esperando.

-Você ainda está aí?

-Sim. Quero saber se ela está bem e se precisa de algum medicamento.

-E se precisar?

-Eu vou comprar pra ela.

-Não precisa, eu mesmo compro.

-Não. O senhor já deu a consulta, eu dou os medicamentos.

-Quem é você, mocinha? Você é muito diferente das dondocas daqui.

-Eu sou Daisy. Trabalho no Fórum.

-Ah! Você trabalha? Não é uma fútil da alta sociedade da cidade?

-Sou de família tradicional sim, mas fútil eu não sou.

-Vejo que você é bem diferente.

-Pode me passar a receita? Vou com ela até a farmácia pra comprar os medicamentos.

-Não tem medo de ficar mal falada? Andando com esta senhora indigente? Nesta cidade de elite tosca, este comportamento não é aceito.

-Pouco me importa. Já não aceitam tantos comportamentos meus. Mais um, menos um não vai fazer diferença.

-Quer dizer que você é uma transgressora?

Eu ri:

-Mais ou menos.

-Gosto de transgressores.

-Eu também.

Peguei a receita e saí com a senhora.

Dias depois nos encontramos no comércio da cidade.

-Olha só quem eu encontro. A mocinha transgressora.

-Olha só. O doutor fazendo compras.

-Eu moro e sou sozinho. Tenho que fazer tudo por mim mesmo.

-Eu também.

-Você mora sozinha?

Nós saímos e fomos conversamos. Paramos na praça e nos sentamos.

-O que leva uma mocinha tão delicada e frágil morar sozinha.

-Pra começo de conversa não sou delicada e nem frágil. Posso fazer quase tudo que um homem pode fazer.

Ele riu maliciosamente:

-É sério? Ainda bem que não pode fazer tudo que um homem pode fazer, não é?

Meu rosto corou.

-Uma mulher independente não pode ser tão tímida.

-Mas eu sou. Não gosto de certas brincadeiras.

-Desculpe. Você não tem seus pais?

-Tenho. Mas eles não me aceitam muito.

-Por quê? Perdão, talvez eu esteja sendo indiscreto.

-Não. Todo mundo sabe o que me aconteceu. Eu sou desquitada.

-E isto é algum defeito?

-Pra eles sim. Você não acha?

-Não me escandalizo com nada.

-Eu imaginava.

-Por quê?

-Porque já ouvi falar que o senhor é um homem diferente destes aqui da cidade.

-Talvez não seja tão diferente. Eu só não concordo com certas coisas que acontecem por aqui. Quer dizer, aqui mais que em outros lugares.

-Se está falando da enorme desigualdade social e da inércia dos políticos, eu também não concordo.

-Acho que vamos nos dar bem, mocinha.

-Não gosto que me chame de mocinha. Aliás eu sou uma senhora.

-Uma jovem e linda senhora. Mas está bem eu não lhe chamo de mocinha desde que você não me chame de doutor ou senhor.

-Combinado. Bem eu vou embora. Já está ficando tarde e tenho muito o que fazer.

Nos despedimos ali. Depois deste dia, muitas vezes nos encontramos nas lutas sociais. Nós nos tornamos aliados nesta luta. Mais de dois anos se passaram. A gente se tornou amigos e aos poucos fomos nos envolvendo.

Mas ele sempre resistia a esta paixão que estava rolando entre nós.

Era sempre muito sério e triste. Introvertido, não se abria.

Um dia estávamos conversando na porta da minha casa. Num ato quase de rebeldia eu o beijei. Ele se entregou. Entramos em casa, mas quando o clima esquentou ele se afastou.

-Desculpe. Eu não posso.

-Não pode por quê?

-Tenho meus motivos.

-Eu sinto que você quer também.

-Por favor, não insista.

-Fale por que não pode.

-Hoje não. Quem sabe um dia.

O tempo foi passando e a gente sempre envolvido em trabalhos sociais e se envolvendo.

Uma noite ele estava em minha casa. A gente começou a se acariciar e acabamos na cama dando vazão a todo aquele desejo que sentíamos um pelo outro.

Depois ele ficou agitado como se tivesse cometido o pior dos pecados.

-Por favor, conta o que lhe aconteceu que causou este trauma. Nós temos o direito de ser felizes. Somos ambos livres e sem preconceitos.

-Eu não tenho o direito de ser feliz.

-Por que não?

-Está bem. Eu vou lhe contar. Você merece saber porque eu não posso ficar com você, embora eu esteja completamente apaixonado.

Ele se calou e eu disse:

-Fale.

-Há oito anos eu era casado e tinha um filho de cinco anos. Eu amava tanto a minha esposa e meu filho. Éramos uma família tão feliz. Eu não tinha esta tristeza que carrego hoje. Um dia estávamos voltando do interior pra nossa casa. Estávamos no nosso carro e eu estava dirigindo. Estávamos descontraídos. Conversávamos e ríamos. Meu filho falava pelos cotovelos. Estava feliz com o passeio. Minha esposa também estava muito alegre e ria com os casos do pequeno.

Ele engasgou. Eu respeitei seu tempo.

-Aí de repente veio um caminhão desgovernado e colidiu em nosso carro. Depois fiquei sabendo que estava sem freios.

Ele respirou fundo.

-Eu tive pequenos ferimentos mas minha esposa e meu filho foram prensados. Eu tentava ajudá-los, tentava tirá-los do carro mas não conseguia. Eles ainda estavam vivos. Minha esposa pedia socorro, meu filho chorava e eu não conseguia fazer nada. Eu estava impotente diante da situação. Desesperado. Não tinha nenhuma ferramenta que pudesse usar pra afastar as ferragens e tirá-los. Eu cortei toda minha mão tentando fazer alguma coisa. As pessoas foram chegando e tentando me ajudar. Quando a polícia finalmente chegou, já estávamos quase conseguindo tirá-los. Mas minha esposa já tinha parado de pedir ajuda e meu filho apenas gemia. Quando conseguimos tirá-los eles já estavam muito mal. Levamos os dois para o hospital o mais rápido possível. No caminho eu tentava fazer alguma coisa por eles. Mas podia fazer muito pouco. Ao dar entrada no hospital, minha esposa faleceu, meu filho faleceu duas horas depois.

Ele estava chorando. Eu nem sabia o que dizer.

-Eu, um médico que ajudo a curar tanta gente, que já atendi tantos acidentados e lhes salvei a vida, não pude fazer nada pela minha esposa e meu filho. Eu me senti culpado, me senti um um médico inútil por não ter salvado minha família da morte. Você acha que uma pessoa como eu tem direito de ser feliz? Não. Eu tenho que purgar dia a dia a minha culpa.

-Mas você não teve culpa. Nem do acidente e nem por não ter salvado a vida deles. Você mesmo disse que estava impotente diante da situação. Foi uma fatalidade. E foi tão triste. Eu imagino como você sofreu.

-Você não imagina. Eu não tive mais vida, não tive mais paz. Depois de um tempo resolvi me estabelecer aqui. Não aguentava mais viver lá. Muitas vezes pensei em me matar pra não sentir mais esta culpa que me corrói.

-Você tem que se livrar desta culpa. Tenho certeza que ela e seu filho nunca culpariam você. Tenho certeza também que eles querem lhe ver feliz.

Ele me abraçou chorando.

Depois deste dia muitas vezes conversamos sobre o assunto. Aos poucos o amor que sentíamos um pelo outro foi fazendo com que ele superasse aquela culpa e tristeza e votasse à vida.

Um tempo depois resolvemos morar juntos, sem ligar para o falatório do povo.

Tivemos um lindo filho. Continuamos com nosso trabalho social. Fomos felizes. Nos amamos intensamente durante toda a vida. Vivemos juntos até a sua morte. E hoje eu vivo das lembranças do nosso amor, por meu filho que se tornou um homem honrado como o pai e por meus netos. Sou feliz assim.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 05/01/2022
Reeditado em 05/01/2022
Código do texto: T7422539
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.