O despertar de Cassandra
— Cassandra espere, precisamos conversar... – Disse Otávio correndo atrás da esposa que saía apressada para o trabalho.
— Você sabe que estou atrasada meu amor, o que você quer? – Ela argumentou e prosseguiu a caminho do carro.
— Hoje, quando você voltar não estarei aqui! – Disse ele com um olhar tristonho.
— Como assim, não estará mais aqui? Irá viajar novamente? Por que não me avisou ontem? Eu teria arrumado suas malas como sempre faço....
De fato, Otávio viajava com frequência graças ao seu perfil empreendedor. A Souza & Mendes S/A. reunia expertises da área de engenharia civil, ambiental, arquitetura e executava todos os grandiosos projetos criados por ele. Hoje, Otávio era o presidente da empresa e formara uma equipe de profissionais renomados, inclusive seu irmão caçula, e a empresa tinha clientes e empreendimentos em Dubai e ao redor do mundo. Seu antigo e visionário patrão, hoje um dos sócios, que brilhantemente apostou naquele garoto de apenas treze anos para ser seu office boy, promoveu-o a desenhista e depois, quando ainda cursava engenharia, designou-o para o lugar do antigo engenheiro, ficando apenas com a responsabilidade de assinar os projetos elaborados pelo rapaz com os quais, diga-se de passagem, jamais teve qualquer problema. Muito pelo contrário, sempre foi o melhor de todo seu escritório, de tal modo que o Dr. Mendes só se orgulhava daquele que ele considerava um filho, não se cansando de agradecer a Deus todos os dias por ter conhecido alguém tão sábio e abençoado por Deus como Otávio. Ele, inclusive, costumava brincar que teve o privilégio de conhecer José da Bíblia.
Voltando às viagens de Otávio, ultimamente elas eram cada vez menos espaçadas e demoravam mais...
— Queria me despedir de você. – Continuou Otávio, que tinha passado a noite em claro, pensando que já não era mais possível evitar aquela conversa que ele não pretendia ter jamais com a esposa, temendo que Cassandra não tivesse forças para suportar, mas não havia outro jeito. Não mais... — Não quis lhe preocupar, por isso não falei nada antes, mas não posso mais adiar e nem farei voltas para lhe contar que estou com um tipo raríssimo de câncer e hoje serei internado para uma nova cirurgia...
Cassandra jogou a bolsa e sentiu que o chão desaparecera de seus pés. Um filme passou em sua mente. O relacionamento íntimo deles havia esfriado havia um ano, mas em alguns momentos ele retomava o mesmo vigor de quando se casaram e, depois, novamente se tornava apático. Ela tentou conversar com ele algumas vezes, mas ele desconversava. Claro que ela percebeu que ele havia emagrecido e inclusive mudado seus hábitos alimentares, mas ele dizia que queria voltar ao corpinho de solteiro e sorria, como era vaidoso acreditou. Outra coisa que Cassandra estranhou a princípio, mas depois concordou, foi o fato de ele, que sempre foi tão cuidadoso com seu cabelo, passou a raspar a cabeça. Para isso, o argumento foi de que ele não gostava de deixar a calvície tão aparente, optando por voltar aos velhos tempos quando do trote na Faculdade, dizia ele sorrindo... Todos aqueles indícios seriam motivos suficientes para que qualquer mulher acreditasse que estava sendo traída, mas não ela, porque conhecia o homem com quem havia se casado e sabia que Otávio jamais agiria assim, além do que o carinho, cuidado e atenção eram os mesmos de sempre e porque não dizer, tinham se tornado até mais intensos. Você pode achar que ela foi ingênua, mas se você o conhecesse pensaria do mesmo modo. Vou lhe contar um pouco sobre esse homem tão especial que conseguiu manter a esposa tranquila e guerrear solitário essa guerra terrível que só quem já passou por uma batalha semelhante pode imaginar, o choque ao receber o diagnóstico, o tratamento tão doloroso, o prognóstico desastroso e as possibilidades que se esvaem a cada dia e ainda encontrando maneiras de blindar a esposa da dor por cerca de um ano... Claro que, sem a estabilidade financeira e o tipo de emprego que ele tinha, não seria possível manter o sigilo, mas ainda assim esse lado resignado e doador de Otávio foram motivos mais do que suficientes para admirá-lo. Eu quero voltar no tempo quando ele era um adolescente de onze anos e morava em um bairro da periferia com os pais, dois irmãos mais velhos e dois mais novos. Sua mãe era uma mulher cristã cuja fé e temor a Deus eram inabaláveis, procurando ensinar seus filhos segundo a bíblia; ela dizia que eles sempre deveriam se espelhar em Jesus, o filho de Deus que se fez homem para morrer por nós, livrando-nos do pecado. Seu pai, ao contrário, se tornara violento desde que perdeu o emprego em uma das fábricas da cidade onde era encarregado. Passou a viver de bicos, mas nem trazia dinheiro para casa, gastando tudo pelos bares e jogatinas, e, quando chegava em casa à noite começava o suplício, xingamentos, brigas e surras diárias na esposa e filhos mais velhos. Até que o mais velho, cansado das agressões do pai, saiu de casa quando fez dezesseis anos e havia dois anos que não tinham notícias dele. O segundo, de catorze anos, revoltado, começou a usar drogas e roubar para sustentar o vício, e quando ele voltava para casa — isso quando voltava — o pai já havia dormido. Otávio sempre se colocava na frente da mãe e irmãos mais novos quando o pai se punha a golpeá-los, mas ele era franzino ainda e acabava todo machucado... Ainda assim não se importava, pois ao menos um pouco conseguia evitar que a mãe apanhasse sozinha, ainda que ela insistisse para ele fugir com os mais novos que corriam para a casa dos vizinhos. Naquela época, não se faziam denúncias por violência doméstica, o máximo que os vizinhos faziam eram acolher os pequenos assustados até que o agressor aplacasse sua ira nos que ali ficavam. Aos treze anos ele já havia crescido e se fortalecido, e por alguma razão o pai passou a respeitá-lo, provavelmente por admirar o filho, apesar de que ele nunca ergueu a voz nem a mão contra o pai. Ele conseguiu um emprego de office boy no escritório de engenharia, amando o que era feito no escritório, e sempre que podia se punha a olhar os engenheiros fazendo seus cálculos e desenhando seus projetos. À noite, antes de dormir, ele pegava folhas de pão e reproduzia o que vira durante o dia. Estudioso e excelente aluno, sempre com as melhores notas, ele ensinava aos irmãos e, na classe, aos colegas e até a mãe que só aprendeu a escrever depois que o filho entrou na escola. Todos se admiravam de sua inteligência e sabedoria. Em um dos dias enquanto trabalhava, recebeu a notícia de que o pai havia sido assassinado em uma briga no bar onde costumava beber antes de ir para casa. Imediatamente, Otávio correu para casa para dar a assistência necessária à mãe e irmãos. Seu patrão, que gostava muito dele, se encarregou dos trâmites burocráticos junto à polícia, IML, cemitério e tudo mais... Otávio, ao contrário dos demais irmãos, não se sentira aliviado com a morte do pai, pois ele o amava e respeitava apesar das infindáveis surras que havia levado. E sabia que sua mãe também o amava e que sentiria a falta dele. Apesar de todo sofrimento, ela tinha esperanças de que ele mudaria e que seriam uma família feliz como no princípio eram... Dois anos após a morte do pai, o irmão mais velho voltou para casa, na mesma época em que o segundo foi preso, após um assalto. O mais velho, tal qual o pai, era violento. Otávio viu-se obrigado a pedir que ele saísse da casa, pois não podia admitir que ele agredisse a mãe e os irmãos mais novos e, como naquela época era ele que praticamente sustentava a casa sozinho, o dinheiro que a mãe ganhava como doméstica ficava para ela comprar algo para si ou para os irmãos mais novos. Oscar, o mais velho, vinha aborrecê-los quando o rapaz não estava ali, e como Otávio trabalhava o dia todo e estudava a noite, ele os importunava bastante. Então, quando ele tinha apenas quinze anos, seu patrão, vendo a preocupação do rapaz e após ter recebido uma proposta excelente para transferir o escritório para a capital, o fez e levou Otávio, sua mãe e irmãos mais novos para lá, já que a mãe de Otávio trabalhava como doméstica na casa dele e sua esposa se afeiçoou muito a ela. Lucas e Davi, os irmãos mais novos de Otávio, assumiram o seu lugar como office boy e Otávio, que já vinha demonstrando sua aptidão em desenvolver os projetos, passou a fazer isto enquanto concluía o curso técnico. A vida deles finalmente era de tranquilidade, sem luxos e vivendo com dificuldade, mas com os quatro trabalhando tinham condições de se sustentar e viver em paz. Aos dezesseis anos, aconselhado pelo patrão prestou engenharia e passou em primeiro lugar. A faculdade lhe concedeu uma bolsa de cinquenta por cento e o restante ele pagava com bastante dificuldade com o que sobrava do salário que recebia do escritório. A Faculdade era o dia todo e mais uma vez o patrão o ajudou, permitindo que ele fizesse os projetos à noite, assim ele ia direto da Faculdade para o serviço, só comendo um lanche que guardava do almoço do bandejão e só quando chegava em casa ele jantava. Otávio sabia que todas aquelas benesses eram presentes de Deus e era grato por cada uma delas todos os dias, porém, foi justamente naquele ano que sua mãe foi diagnosticada com um câncer que a levara a morte no prazo de dois meses. Mais uma vez Otávio teria que assumir as responsabilidades junto à família e, apesar da dor imensurável pela morte de sua mãe, por ter tido que trancar a matrícula da faculdade e conseguir mais um emprego para cuidar dos irmãos, ele permaneceu firme agradecendo a Deus todo o tempo. Quando ele completou 18 anos, o patrão havia progredido e sabendo que Otávio o ajudara muito o promoveu, de modo que ele pode deixar o outro emprego e foi justamente ali, no primeiro dia de aula do segundo semestre que conheceu Cassandra, filha de um milionário do ramo imobiliário, uma garota fútil e mimada, matriculada no Curso de Belas Artes, mas que não se importava com os estudos, querendo “curtir a vida” e experimentar tudo que lhe fosse proposto. Com os pais sempre distantes, ela era uma menina revoltada e infeliz, que fazia tudo para chamar a atenção. Todos os dias que ela ia para a Faculdade parava na quadra anterior em um bar, onde os “estudantes” displicentes ficavam jogando, bebendo e se drogando e, só no final da noite ia até a faculdade para assinar a lista de presença ou participar de uma ou outra aula. Naquela noite Otávio estava apressado porque precisava fazer a prova e depois ir correndo para a Igreja, onde os irmãos mais novos fariam uma apresentação. Ele levava muito a sério o fato de ser o responsável legal dos irmãos e nunca faltava às reuniões escolares, apresentações e quaisquer outras datas importantes para eles, sem é claro, se descuidar de orientá-los segundo os preceitos bíblicos, tal qual sua mãe sempre fez. Ao descer as escadas correndo, ele deu de encontro com Cassandra, e ela que estava bêbada caiu com o impacto. Antes, porém, ele sentiu seu peito queimar com o cigarro que ela segurava e fora apagado nele. Ela sem hesitar não poupou xingamentos, mas Otávio muito constrangido se desculpava sem parar tentando levantá-la, ao que ela dava pontapés gritando que saísse... Finalmente ele conseguiu colocá-la em pé e ela, mascando chiclete de forma displicente o estapeou... Ainda assim ele perguntou se poderia ajudar, se ela queria que ele a levasse a algum lugar...
— Que tipo de imbecil você é cara? Não tá vendo que eu não preciso de ajuda, especialmente de um idiota como você... Sai pra lá babaca. – Disse Cassandra o empurrando e indo para sua sala cambaleante.
Otávio finalmente preocupou-se com a dor no peito provocada pela queimadura do cigarro e percebeu que a camisa que ele teria que ir para a apresentação estava queimada, porém, não tinha tempo para se preocupar consigo mesmo, apenas colocando a mochila de modo a tapar o furo e seguindo para sua classe para fazer a prova, o que já estava bem atrasado. Após terminar a prova teve que ir à pé e correndo até a Igreja, pois acabara demorando mais do que o previsto para concluir a prova e perdeu o ônibus, sendo que o próximo só viria após uma hora... Chegou na Igreja todo suado, seus irmãos estavam na porta apreensivos com sua demora. Entraram e ele se sentou para assistir a apresentação e, percebendo que seu suor incomodava as pessoas ao seu lado do banco, levantou-se e assistiu a apresentação em pé. Apesar do cansaço não murmurou e como lhe era peculiar agradeceu a Deus por tudo e, em especial pelo orgulho que sentia ao ver seus irmãos cantando tão divinamente, pensando em como sua mãe ficaria feliz em ouvi-los. Depois, no caminho de casa, passaram em uma padaria e compraram um pote de sorvete de chocolate para comemorar aquela noite. Quando finalmente os irmãos foram deitar-se, ele foi tomar banho permitindo finalmente cuidar da queimadura pelo cigarro que era um pouco profunda e a dor que provocava bem intensa, especialmente quando a água tocava, mesmo assim ela não era maior do que a alegria por ouvir os irmãos e a lembrança do rosto de Cassandra. Era um misto de preocupação com o fato de uma jovem tão bonita estar naquele estado e uma sensação que ele nunca sentira antes, não compreendia, mas queria estar com ela novamente, ainda que soubesse que ela não quereria... Daquele dia em diante pensou em Cassandra todos os segundos, orando por ela de forma incessante e procurando-a pelos corredores da faculdade, mas nunca a encontrando. Porém, quinze dias depois quando ele saía para ir para casa, enquanto atravessava o estacionamento viu que um homem segurava uma moça sobre um carro de luxo e ela o xingava e gritava para que a soltasse. Imediatamente ele reconheceu aquela voz, seu coração disparou e ele correu para ajudar. Apesar de não ser do seu feitio envolver-se em brigas, ele era um homem forte, Deus o havia dado não apenas inteligência, bondade e retidão, mas beleza, força e formosura, não foi difícil render o homem que era bem menor e mais fraco do que ele, que por sinal acabou fugindo dele sem muita dificuldade... Mas enquanto ele rendia o tal homem, Cassandra já havia entrado no carro e estava prestes a sair sem sequer agradecê-lo por salvá-la. Otávio corre até a janela do carro e pergunta: — Você está bem?
— Estou, seu babaca, não tá vendo? — Ela responde mascando seu chiclete de forma irreverente, que provavelmente o fazia para tentar disfarçar o bafo de álcool, o que era em vão.
— Moça, eu quero ajudar apenas, você não está em condições de diri... – Ele mal terminara a frase e Cassandra solta uma risada de deboche e sai de ré cantando o pneu. Assustado e temeroso ele sabe que tudo que pode fazer por ela é orar para que nada aconteça, nem a ela nem a alguém que com ela cruzar no caminho. Nos dias que se seguem, sempre que ele tem uma aula vaga vai procurar por ela. Agora ele conhece seu carro e sabe que se ela costuma beber, sem dúvida frequenta um dos bares do entorno da faculdade, onde alguns amigos sempre o chamavam para ir até lá, mas ele nunca fora até então. Agora, entretanto, era diferente, pois ele queria ver Cassandra, cuidar dela, ainda que a distância e sempre que tinha alguma aula vaga o fazia. Era sempre a mesma coisa: bebida, drogas, jogatina e homens sem nenhum critério... O coração dele se entristecia a cada dia, não entendendo aquele comportamento tão inconsequente, mas ainda assim pensava mais e mais nela e um amor inexplicavelmente puro foi crescendo dentro dele. Uma noite, em uma de suas aulas vagas, ele estava a caminho do bar para procurá-la e, quando ouve alguém chorando, caminha então na direção do choro e a encontra caída no chão.
— Olá, você está bem? — Ele fala ajoelhando-se ao lado dela para ajudá-la. – Você não desiste, não é babaca? Apesar de falar assim, sua fala não é como antes, ela se mostra feliz em vê-lo, ele a pega no colo e a carrega até o banco do outro lado da rua. Ele percebe que ela está muito bêbada e dopada. Apesar disso, ela se sente tão acolhida em seus braços protetores que aquela sensação tão nova faz um bem tremendo para Cassandra. Otávio abre sua mochila e retira uma garrafinha de água e oferece para ela...
— É whisky? – Pergunta ela de forma debochada. – Ele finge não ouvir e apenas insiste para que ela beba, depois retira um lenço, molhando com um pouco de água e colocando na testa e no pescoço dela, segurando suas mãos e jogando água em seus punhos...
— Você é algum tipo de psicopata que gosta de perseguir mulheres bêbadas? – Otávio sorri e diz que não com sua voz rouca e mansa. – Você sabe sorrir, pensei que você só soubesse pedir desculpas e perguntar se eu preciso de algo. — Ele sorri novamente e pergunta — Que tal tomarmos um café? Ela meneia a cabeça em concordância, mas não aqui, vamos para a cidade. — Otávio não costuma perder suas aulas, mas aquela era uma situação especial, ele precisava entender melhor aquela mulher que tanto o intrigava e por quem se apaixonara. – Vamos tomar o ônibus então... Diz ele puxando-a para se levantar. — Não! Vamos no meu carro! Sei que vai dizer que não estou em condições de dirigir, então dirija você. – Diz ela entregando as chaves para ele. Apesar de não ter carro, Otávio tirara habilitação há alguns meses por exigência do trabalho e mesmo não se sentindo confortável em dirigir o carro dela, não tinha outra saída. Assim que ele sai, ela reclina o banco e dorme. Quando chegam à cafeteria ele a acorda, ela resiste e pede que ele pegue o café e quando ele volta ela pede para irem tomar o café na praia. Eles vão, sentam-se na areia e finalmente com o café e a maré ela desperta e começam conversar sobre seus nomes, que até então não sabiam, sobre o que fazem e falam amenidades, riem juntos, depois ela corre para a água e ele vai buscá-la, ela o beija, mas ele não quer ser mais um homem na vida dela, seu sonho é ser o único homem na vida de Cassandra. — Vamos embora! - ele diz e ela pergunta irritada — Qual é? Você não gosta de mulher? Quer apenas ser o bom samaritano? – Não, o que eu não gosto é de aventuras. – Ele responde e ela mais irritada ainda sai da água e diz que quer ir embora. Ela entra no carro do lado do motorista, mas ele diz que a leva em casa, e como ele está com a chave ela concorda. Lá chegando ele fica assustado com a suntuosidade da mansão onde ela mora. Após o grande portão há um longo caminho com árvores de ambos os lados até chegar na entrada principal. Naquele momento, ele se entristece ao perceber a distância entre as realidades de ambos e imaginar que os pais dela provavelmente não concordariam com o relacionamento deles. Vai embora caminhando e chega em casa já de madrugada. Naquela noite Otávio ora para que Deus cuide de Cassandra, pois ele não é capaz de fazer isto. Ao ler Isaías 40:31 que diz “mas os que esperam no Senhor renovarão as suas forças; subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão; andarão, e não se fatigarão”, ele tem a certeza de que Deus o capacitará, então adormece tranquilo.
Nas próximas semanas, Otávio está atarefado com as provas e trabalhos do bimestre e procura focar só nisto, até porque, desde que orou entregando a situação a Deus, descansou n’Ele. Ele e um colega estavam preparando a maquete que deveria ser apresentada na aula seguinte quando Cassandra entra na classe.
— Posso falar com você? - Um tanto atribulado com o término da maquete ele pede licença ao colega.
— Olá, tudo bem com você? Pergunta ele.
— Sim e você? Desistiu de me perseguir? É estranho não ter meu guarda-costas maníaco a postos... - Ela sorri.
– As provas bimestrais são puxadas... Pode me esperar na quarta aula? Eu realmente tenho que terminar meu trabalho, não posso me demorar, mas fiquei muito feliz por ter vindo e quero muito conversar com você.
— Não sei, vou pensar. - Ela se vira e vai saindo, mas ele a puxa pela mão delicadamente. – Por favor. Diz ele com um olhar enternecido.
— Ok. Estarei lá no estacionamento.
— Ok. Até lá. - Assim que termina a apresentação ele desce correndo com medo de não a encontrar, mas a vê sentada no capô do carro.
— Olá, que bom que me esperou. - Ela está mascando chicletes, mas não o faz com a irreverência de antes. Aliás de modo geral ela parece outra pessoa. Não usa as roupas extravagantes de antes, nem a maquiagem carregada e nem o cabelo está todo desarrumado com tererês, pelo contrário, ela está com um lindo vestido branco e um chinelo de dedo feito de crochê, uma trança nos longos cabelos loiros, seus olhos não estão vermelhos pela bebida e droga e ele pode perceber como são lindos, seu rosto é calmo e tranquilo.
— Que tal tomarmos um café na praia novamente? – Pergunta ela com um sorriso nos lábios.
— Podemos conversar um pouco em alguma padaria a caminho da sua casa, mas hoje não dá para irmos à praia, enquanto as provas não terminarem preciso chegar em casa o quanto antes, pois ainda terei que estudar hoje. Perdoe-me!
— Você leva sua vida muito a sério, não é mesmo? Por que você é assim sendo tão novo? Não pensa em curtir a vida?
— Porque é assim que temos que ser, brincar na hora de brincar e ser sério na hora de ser sério... - Sorri Otávio. – E eu curto minha vida de forma fantástica, Deus é tão maravilhoso que me deu uma vida esplêndida para ser vivida.
— Está bem Senhor Bom Samaritano, então eu que vou levar você para casa, não estou bêbada, pode ficar tranquilo... – Cassandra dá uma risada gostosa.
— Aceitarei a carona com uma condição, que me permita ficar lhe devendo o café na praia ou uma ida ao cinema.
— Fechado! – Quando chegam na casa dele, Otávio brinca: — Esta é a minha mansão.
— Uma casa onde habita amor e paz é a melhor mansão que alguém pode ter e isso tenho certeza de que você tem de sobra. - diz Cassandra com uma expressão de tristeza, provavelmente pensando na sua mansão que mais se parece com um casebre aos seus olhos...
— Concordo. Graças a Deus aqui tenho tudo que preciso. – Ele agradece e se vira para sair, mas Cassandra diz:
— Hei! Não mereço um beijo?
— Sim, claro que merece. - Ele, segurando no queixo dela inclina sua cabeça para baixo de modo a poder beijar-lhe a testa. Cassandra fica muito impressionada, ela jamais em toda sua vida tinha sido beijada na testa e bem sabia que um beijo na testa era um sinal de respeito, nem seu pai jamais lhe dera um beijo assim. Em um relacionamento normal um beijo na testa não teria grande importância, uma mulher com um comportamento como o que Cassandra tinha quando se conheceram seria motivo suficiente para afastar um homem, mas quando Deus tem um propósito em uma vida ele age de forma a confundir até os sábios, como diz a bíblia: “Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes”. Desde então os dois começaram a se encontrar com frequência, Cassandra mudou pouco a pouco seu comportamento e abandonou a rebeldia, porém não tinham começado a namorar, ainda que ambos desejassem muito isso. Otávio procurava dar um passo de cada vez, até que sentiu que era hora de pedir permissão ao pai de Cassandra para namorá-la.
— Olá Cassi! - apelido carinhoso que ele lhe dera. - Quero que me responda não apenas com seu corpo, mas com seu coração – Porque era óbvio que ambos sentiam um grande desejo pelo outro, mas que os princípios dele não permitiam que isso sobrepujasse o amor e o respeito a Deus ou a ela - Você aceita namorar comigo?
— Sim, claro que sim. Pensei que jamais perguntaria. - Ela pula no pescoço dele ficando pendurada por ser bem baixinha perto dele. Eles se beijam e então ele diz que quer pedir autorização ao pai dela.
— Que bobagem! – Ela retruca, sabendo que os pais são intransigentes e não concordarão pela diferença da posição social deles.
— Eu faço questão, quero fazer tudo às claras... – Está bem... Diz Cassandra e complementa – mas vamos esperar uns dois meses para fazer isso, meus pais estão saindo de viagem para Europa e quando eles voltarem falaremos. – Você tem certeza de que isso é o melhor a se fazer? Você vai ficar sozinha aqui, acho que é bom que eles saibam logo das minhas intenções...
— Não, se falarmos agora eles pensarão que vamos aproveitar a ausência deles para fazermos tudo que nos der na telha. Quando eles voltarem, falaremos, ok?
— Está bem, mas assim que voltarem vamos falar...
E assim foi, namoraram durante os dois meses e, apesar da insistência para que ele ficasse na casa dela durante a ausência dos pais, Otávio não concordou. Ele insistia em incutir nela seus princípios, mas para Cassandra se os dois se amavam deveriam ficar juntos de vez. Ao final dos dois meses os pais ligaram avisando que iriam prolongar sua viagem por mais um mês e ela se viu aliviada, pois sabia que teria mais um mês antes de apresentar Otávio aos pais, não que ela se envergonhasse dele, muito pelo contrário, mas sabia que eles fariam tudo que pudessem para separar os dois, o que ela não aceitaria, mas temia que Otávio a deixasse, já que para ele tudo tinha que ser certinho. E como ela temia aconteceu. Os pais retornaram, ela ainda tentou enrolar Otávio, mas não teve jeito, ele insistiu tanto que ela foi obrigada a concordar, fizeram um jantar para conhecê-lo finalmente. Cassandra comprou uma roupa para que ele fosse ao jantar, mas ele não concordou, agradeceu o presente, mas disse que se vestiria com suas próprias roupas. Não que ele andasse malvestido, sujo ou roto, mas era óbvio que suas roupas eram compradas em loja sem qualquer requinte. Quando ele chegou o mordomo o olhou de cima embaixo antes de mandar que entrasse e o conduzisse pelo grande hall até a sala onde os pais dela o aguardavam. Eles o olharam com mais arrogância do que o mordomo, mas Otávio não se importou, ele nunca se sentiu menor do que ninguém na vida por ser pobre, nem teve pena de si mesmo, pelo contrário, sempre se considerou uma pessoa rica em sabedoria e abençoada por Deus.
— Boa noite! Meu nome é Otávio, muito prazer em conhecê-los.
Os pais de Cassandra apenas deram a mão para Otávio.
— De que família mesmo você é? Perguntou a mãe de Cassandra.
— Meu sobrenome é Souza se é o que quer saber senhora.
— Souza dos Souza Diniz?
— Não senhora, apenas Souza, venho de uma família humilde, com certeza a senhora não conhece.
— Entendo. Retruca a mãe com ar de desdém. E o pai pergunta:
— O que faz meu jovem?
— Estou no terceiro semestre de engenharia civil e durante o dia trabalho em um escritório de engenharia.
— Interessante. Que escritório? Alguma empresa de renome?
— Na verdade é uma pequena empresa de construção civil, chama-se Mendes Engenharia.
— Nunca ouvi falar.
— Com certeza não, mas isso não tira o valor da empresa, que é muito séria em tudo que faz.
— Não tenho dúvida meu jovem.
— Cassandra entra na sala. Ela está linda, toda produzida e chique e em nada se parece com a sua amada Cassandra. Ele percebe que aparência é o que de fato importa para eles. Não foram capazes de perceber a mudança da filha nos últimos meses, talvez nem imaginem que ela vivia bêbada e drogada pelos bares, passando de mão em mão como uma qualquer. Ele sentia pena deles e compreendia a rebeldia de Cassandra, porque mesmo com o pai violento que ele teve, nos momentos de lucidez seu pai sabia quem eram seus filhos e sua mãe então como os amou a todo instante, mas o que era aquilo, que relacionamento mais estranho o da família de Cassandra.
— Olá Cassi...
— Cassi? Pergunta a mãe de forma intransigente. Não usamos apelidos aqui, por favor.
— Desculpe-me senhora. Não tive a intenção de ofender as tradições da família. – Cassandra que até então tentara se conter para que os pais tratassem Otávio bem, desiste.
— Tá, por favor continue me chamando de Cassi. Sabe que gosto que me chame assim... E mãe, deixe suas intransigências um pouco de lado.
— Está bem Cassandra não precisa ficar brava, só achei importante que ele saiba como nos comportamos...
— Com certeza saberá... Diz Cassandra com um olhar irado para a mãe.
— Por favor Cassandra, é desnecessário agir assim... – Diz Otávio. Ao que a mãe admira, sem admitir, afinal aquilo seria como dar pérolas a porcos, pensa ela.
— O jantar está servido senhora, avisa o mordomo. E a mãe de Cassandra dá com a mão indicando que todos devem se dirigir à sala de Jantar.
Apesar de um jovem humilde, Otávio sempre foi um leitor voraz que se interessava por todo tipo de boa leitura, de tal modo que aprendeu muito com isso, conseguia conversar sobre qualquer assunto, conhecia comidas sofisticadas, como deveria se comportar à mesa e em nada passava apertado. Neste quesito, os pais de Cassandra sem dúvida nenhuma não poderiam lhe dar nada menos do que um dez. Ainda que viajassem pelo mundo todo, fosse o assunto que fosse que tentavam discutir com ele objetivando constrangê-lo não tinham êxito, ele discorria sobre tudo com tanta propriedade como se houvesse viajado muito mais do que eles. Cassandra ficava ali boquiaberta ao ver a desenvoltura do namorado frente aos seus pais, de tal modo que por um momento chegou a pensar que eles poderiam aceitá-lo apesar da diferença social, mas qual nada, no fim do jantar o pai convidou para um drink e ele disse que não bebia e ao contrário do que deveria ser, o fato dele não fumar ou beber não era visto como algo bom, pelo contrário. Ainda assim, Otávio não se intimidou e finalmente fez o pedido sem titubear para que o pai de Cassandra autorizasse o namoro dos dois ao que recebeu a seguinte resposta.
— Olhe meu jovem, não que você não me tenha causado uma boa impressão, se isto fosse uma entrevista de emprego provavelmente eu o admitisse como projetista, mas para namorado da minha filha, sem dúvida você não pode ser aceito. Não posso entregar minha única filha a alguém sem nenhuma estrutura ou tradição familiar, espero que me compreenda e com a retidão e respeito que demonstrou não a procure mais...
Otávio estava abismado com aquela fala absurda. Estrutura familiar? O que aquele homem chamava de estrutura? Por um momento teve vontade de dar uma resposta a altura, mas lembrou-se do que diz Jeremias 9:23 e 24 “Assim diz o Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor.” Então ele aquietou o seu coração e respondeu com toda mansidão:
— Que assim seja senhor. Creio que então eu devo me despedir agora.
— Muito bem meu jovem, gosto de conversar com pessoas que sabem entender as coisas como elas são.
Otávio se despediu da mãe de Cassandra e a moça o acompanhou até a porta.
— Porque quis ir embora tão depressa, meu pai disse algo que o desagradou? Se ele disse vou lá... – Espere Cassandra, não faça nada. Tudo a seu tempo, por favor. Apenas confie e não se esqueça de que eu a amo e não desistirei de você, mas agora preciso que você seja paciente apenas.
— O que ele lhe disse? Ele não pode ofender você. Você não vai me deixar, não é? Por favor diga que não vai me abandonar. Diz Cassandra chorando.
— Cassandra, pare de chorar por favor, eu jamais abandonarei você, eu a amo. E ele não me ofendeu, apenas disse o que pensava, mas se eu acreditasse no que as pessoas pensam ou dizem ao meu respeito eu jamais teria chegado até aqui. Eu sei quem eu sou, sei do que sou capaz e não falo isso para me vangloriar, mas porque Deus me capacitou para ser o que sou. Confie em Deus e em mim, por favor. Só me prometa que fará isso.
— Eu não sei. Você é sempre muito bonzinho, eu não sou assim...
— Mas é assim que devemos ser. Agora eu vou embora e você ficará bem-comportada, por favor. Fique com Deus! Boa noite!
— Não vá! Eu quero um beijo, diz Cassandra. E mais uma vez ele beija sua testa. Cassandra enraivecida retruca. Hoje você deveria era beijar a testa do meu pai...
Otávio se vai sem hesitar. Nos dias que se seguiram eles continuaram conversando ao telefone, ela ligava para ele no escritório, mas não se encontravam na Faculdade. Otávio preferiu se manter fisicamente distante de Cassandra até que Deus lhe mostrasse como agir. Na terça-feira da semana seguinte, seu chefe o chamou e disse que um dos engenheiros havia saído e que, apesar de ele estar cursando o terceiro semestre, seus conhecimentos e experiência permitiam que ele assumisse boa parte das funções do mesmo, naturalmente que tudo passaria por sua supervisão e que as plantas seriam assinadas por ele ou pelo outro engenheiro e, se ele aceitasse, seu salário teria um bom aumento, na verdade dobraria, ele aceitou imediatamente, afinal nunca teve medo dos grandes desafios.
Naquela noite ele nem foi para a Faculdade, preferiu comemorar a vitória com seus irmãos e foram comer fora. Quando voltaram para casa Cassandra estava sentada no portão com uma mochila.
— O que aconteceu Cassandra. Por que está aqui com esta mochila? Você está bem?
— Eu não volto mais para minha casa, não me mande embora, por favor... – Ela tinha um olho roxo. Imediatamente ele se lembrou da mãe...
— Por favor, entre e me conte o que aconteceu?
— Eu saí de casa, quero ficar com você, não quero esperar nada. Só quero ficar com você! Me deixe morar aqui, por favor. E chorava copiosamente.
Ele a abraçou e ela desfaleceu em seus braços.
— Cassandra, Cassandra! O que você tem? – Otávio a carregou e deitou-a no sofá. Ela voltou a si e disse que estava fraca, não comera mais nada desde a noite do jantar, isso há cinco dias. Eu disse ao meu pai que se ele não o aceitasse eu preferiria morrer e parei de comer desde então. Ontem ele disse que me mandaria para fora do país. Eu disse que jamais iria e ele me espancou e trancou-me no quarto e disse que se eu insistisse no que ele chamou de loucura, que ele esqueceria que um dia teve uma filha, inclusive me deserdaria. Pouco me importa isso. Eu fugi pela janela...
Otávio pede aos irmãos que preparem algo para ela comer e procura consolá-la.
— Minha menina, fique calma. Ninguém vai lhe fazer mal, eu estou com você agora. Se você tem certeza de que quer ficar comigo, vamos nos casar, ok? Mas você terá que pensar muito bem se é isto que quer, porque terá que viver nesta casa simples, comigo e meus irmãos, nem preciso dizer que não temos qualquer luxo. Você vai dormir no meu quarto até que pense e tome sua decisão. Meus irmãos e eu ficaremos aqui na sala. Tudo que posso prometer é que farei o possível para fazer você feliz e que a amarei todos os dias mais e mais enquanto eu viver, no mais me esforçarei para lhe dar conforto que conseguir com a graça de Deus, mas comparado a sua vida atual terá uma vida bem difícil até que tudo melhore.
— Eu não preciso pensar em nada só quero ficar com você, nem precisaríamos casar, mas sei que você não gosta de nada pela metade, então eu tenho certeza de que quero ser sua esposa e em viver aqui, uma vida simples, a mais feliz que já tive. Não quero viver mais a vida fútil, inconsequente e triste que sempre vivi.
Otávio então deu entrada nos papéis e estranhou que os pais de Cassandra não a procuraram, para ele aquela pressão não passava de uma forma de pressioná-la, mas ele estava enganado. Eles de fato não se importavam com ela. Sete anos após se casarem, quando ele já estava formado e era um engenheiro bem-sucedido, ele se encontrou com o pai dela em uma reunião de um grande empreendimento para o qual ele havia sido contratado. O pai de forma irônica disse: - Então o boy se tornou mesmo um engenheiro e casou-se com a princesa sem castelo? – Desta vez Otávio não hesitou em responder. – Pois é, e a princesa mesmo sem castelo é feliz como nunca foi quando vivia presa na torre... E se o senhor quer saber? Como eu prometi a ela, mesmo antes de nos casarmos eu farei tudo que estiver ao meu alcance para que ela não sofra, não precise ser alguém que não é e a amarei mais e mais a cada dia até o fim dos meus dias.
— Muito bem! Vocês se merecem... Disse o pai de Cassandra dando dois tapinhas nas costas de Otávio e virando-se... – Otávio o chamou e disse retirando um cartão do bolso. – Se quiser vê-la é só ligar, creio que ela ficaria feliz em rever os pais. – Minha esposa e eu não temos nenhuma filha para fazer qualquer visita meu jovem - e saiu. Otávio achou por bem não comentar este triste episódio com Cassandra.
A única coisa que nos primeiros anos de casada entristeceram muito Cassandra foi o fato de não terem filhos e após exames ela descobriu que ficara estéril após um aborto que fez muito antes de conhecer Otávio. Com o passar do tempo, o amor e carinho do marido e com as sessões de terapia ela conseguiu se perdoar pelo que fizera e por se sentir inferior sendo estéril. Como prometeu, Otávio a amou sem medida, disse que se ela quisesse adotariam, mas ela não quis, optaram então por desenvolver trabalhos voluntários com crianças na Igreja, em especial Cassandra, que ensinava crianças carentes tudo que sabia, música, artes, ajudava na escola e principalmente dava a eles o carinho que ela não pudera dar a um filho.
Agora que conheceram um pouco de quem foi este homem tão especial, que fez com que a esposa se mantivesse tão tranquila voltemos à notícia... Cassandra, sentindo tão próxima da possibilidade de perder o marido ficou apavorada e perdida. Como ela viveria sem ele? E desfaleceu.
— Cassandra, você está bem? Fale comigo. Disse Otávio dando tapinhas discretos no rosto da esposa para que ela despertasse após o desmaio. Ao retomar o sentido, percebeu que ele a levara para dentro deitando-a no sofá e ajoelhando-se à sua frente como já fizera antes. Um filme passou em sua mente... Em milissegundos reviveu todos os anos de convivência juntos. E então ela disse:
— Por favor, diga que ouvi mal. Que você fará uma viagem ou algo assim, não está doente, não é mesmo? – Perguntou Cassandra enternecida enquanto segurava forte as mãos do marido.
— Infelizmente não posso, não mentiria para você. Tentei evitar contar por mais de um ano, mas agora não há mais jeito. Esta é a terceira cirurgia que farei, segundo o Dr. Holfman se não der certo desta vez, não há mais o que fa... Mal Otávio termina a frase e Cassandra começa socá-lo chorando compulsivamente... – Por quê? Por quê? Você não tem o direito de me deixar assim... Tinha que ter me contado... Por quê? Por quê?
— Acalme-se querida, você sabe que eu faria tudo para que você não sofresse, foi o que eu lhe prometi quando ainda era um jovem estudante pobretão e tirei uma princesinha que vivia em seu palácio para morar comigo e meus irmãos em um quarto e sala...
— Pare de falar assim, você sempre foi o melhor marido que uma mulher poderia ter, mesmo nos tempos difíceis nunca me deixou faltar nada. Trabalhava antes e após a Faculdade para me dar uma vida confortável. Sempre o admirei por isso e por todas as suas qualidades, você passou a vida se doando para mim. E agora sei que até no último ano que eu achei que você tivesse se cansado de mim me surpreende com esta revelação terrível. Cassandra não consegue parar de chorar. São tantos motivos para ficar tremendamente triste, constrangida, arrependida. - Como pude ser tão tola e não perceber que você estava doente? Você pode me perdoar meu amor?
— Não tenho que lhe perdoar por nada querida. Como você saberia se eu não lhe disse nada?
— Teria que ter lhe perguntado mais. Deveria ter percebido os sinais, você emagreceu e eu tola achei que quisesse ficar mais bonito. Você passou a fazer viagens mais frequentes e demoradas, mas eu simplesmente achei que eram novos clientes. Passou a raspar o cabelo e quando nossos amigos perguntavam você sorria dizendo que era para aparentar mais jovem, que a calvície e os cabelos brancos não lhe caíam bem... O Mendes sabia, não é mesmo?
— Sim, sabia. Ele me acompanhou muitas vezes. Outras vezes, o Davi, Lucas e até mesmo a Alexandra me auxiliou em uma das recidivas. Mas agora não vamos falar nem pensar nisto. Quero curtir o dia de hoje com você, pode ser? Só nós dois, sem mais ninguém... Como nos velhos tempos quando saíamos pelas ruas de mãos dadas, gargalhando e dando beijos estalados. Correr como antes já não conseguirei, mas amar você, amo mais do que nunca...
Ainda chorando, Cassandra compreende que não pode perder mais esta oportunidade, quem sabe se conseguirão fazer isso outras vezes, mas ela quer aproveitar cada milissegundo que puder ao lado do marido. – Vamos, vou tirar essa roupa de trabalho e procurar uma bem confortável como as que costumávamos usar naquela época que começamos a namorar. — Venha me ajudar a escolher. — Diz ela com um sorriso nos lábios enquanto se dirige para o sótão onde está o baú com roupas que usava quando eram solteiros. Escolhe o vestido branco, no estilo hippie que ele mais amava, o chinelo de dedo feito de crochê e pergunta – Que tal?
— Lindíssima. Eu a amo tanto! Saem felizes rumo a velha sorveteria no fim da rua direita. Há tantos anos não iam até lá que mal sabiam que tudo estava mudado, não havia mais a sorveteria, mas isso não os deixava tristes. Olham-se e se beijam. O que importa que não exista mais nada se o amor de um para com outro só aumentou...
O dia passa lentamente como se Deus multiplicasse as horas para que eles pudessem dizer e reviver tantas coisas importantes que haviam ficado esquecidas no último ano. Tomaram sorvete de bola e lambuzaram o rosto um do outro. Sentaram-se na areia, olhando o ir e vir das ondas e repetiram as coisas ditas décadas atrás, as grandes promessas e juras de amor que em nada foram mentiras. Foram comer no velho boteco do seu Zé e quando Cassandra falou, se engasgou com a farinha da comida, enquanto ria das piadas do marido como na primeira vez que comeram ali. Foram visitar a velha casa onde moraram quando se casaram, eram apenas ruínas não havia telhado, e algumas paredes estavam ruindo, ainda assim lembraram dela como antes. No final da tarde voltaram para casa, amaram-se e finalmente arrumaram as coisas para irem para o Hospital, e esta seria a primeira vez que Cassandra acompanharia o marido ao Hospital e como ela queria que não fosse a última, não porque quisesse que ele permanecesse doente, pelo contrário, mas gostaria que a cirurgia fosse um sucesso e assim ele retornaria para dar início ao tratamento que restauraria sua saúde em definitivo, mas não foi assim. Passaram ainda aquela noite juntos naquele quarto de hospital, após terem recebido a visita do Dr. Holfman que explicou a ambos todos os riscos da cirurgia. Antes de dormir, eles oraram pedindo que Deus fizesse tudo segundo Sua vontade e que desse força, resignação, resiliência e sabedoria para que compreendessem fosse como fosse. Dormiram abraçados em uma única cama, ainda que o quarto do hospital fosse amplo e confortável e dispusesse de duas camas. Apesar da situação ser tão delicada foram inundados por uma paz e um sono tranquilo na certeza de que nada ficou para trás.
Pela manhã, quando acordaram Otávio olhou para a esposa e disse:
— Se algo em mim puder ser útil para alguém ou para alguma pesquisa não hesite e lembre-se de que quero ser cremado. – Não diga isso... - Disse Cassandra. Apesar de sentir que aqueles seriam seus últimos momentos ao lado do marido, disse com toda força de sua alma: — Você não imagina como eu amo você. Acompanhou a maca a caminho do Centro Cirúrgico segurando a mão do marido e viu seus olhos abertos, seu sorriso terno e ouviu sua voz rouca e mansa pela última vez: - Cassandra, prometa que você será feliz e viverá sua vida segundo a vontade de Deus, e nunca se esqueça que eu amei mais e mais a cada instante e a amarei enquanto viver...
Cinco horas depois do início da cirurgia, o Dr. Holfman saiu do Centro Cirúrgico cabisbaixo e deu com tristeza a notícia de que infelizmente Otávio não resistira. Cassandra pensou que fosse desfalecer, mas se lembrou do que o marido lhe dissera e foi tomada por uma força que ela não sabia de onde vinha, apertou os lábios que pretendiam chorar, ergueu a cabeça, agradeceu ao Dr. Holfman, deixando-o com os amigos que choravam. Dirigiu-se ao Serviço Social, acompanhada dos cunhados e disse à assistente social de forma surpreendente – Boa tarde! Meu nome é Cassandra Souza, meu esposo Otávio Souza acaba de falecer de um câncer e sua vontade era que se algum de seus órgãos puder ser transplantado em alguém ou usado para estudos deverá ser.
O corpo de Otávio, após a retirada dos órgãos a serem transplantados e utilizados para pesquisa, foi cremado em uma linda manhã de domingo ao som de seu louvor favorito. Cassandra então levou as suas cinzas, sentou-se ao lado da urna na praia e como que conversando com o marido falou que seria absolutamente feliz como ele havia pedido, mas não com um outro homem, porque jamais ninguém poderia tomar seu lugar, mas seguindo seu exemplo de doação e amor sem medida como um verdadeiro seguidor de Jesus. E assim foi a vida de Cassandra Souza que fez da sua casa um Centro de Pesquisa e Reabilitação de Pessoas com Câncer, e investiu todos os bens do casal criando uma instituição para crianças carentes, passando a viver de forma simples até sua morte em decorrência de um infarto fulminante vinte anos depois da morte do marido.
Teresa Azevedo
Presidente de Honra da Associação OndulArte
Coordenadora do Projeto OndulAções
Cadeira 6 na Academia Nacional de Letras do Portal do Poeta Brasileiro
Membro Correspondente da Academia Teófilo Otoni
Trovadora da União Brasileira de Trovadores – Seção Campinas