Redobro
Toc-toc.
Era a batida familiar de Ariel. Aquela já há dias desaparecida, inconfundível. Ah, que saudades sentira!
Poucas semanas antes das festas de final de ano eu o conhecera. Aliás, eu já o conhecia há alguns anos de vista. Que anos! Que Deus os leve e não os traga de volta. Se Deus existir; e, se não existir, aceito a boa ação de qualquer outra boa divindade. Anos que eu vivera com Henrique... Henrique, tão belo, Henrique... O rosto angulado, ariano, a franja loura que teimava na testa, a testa altiva... Henrique alto, forte. Acima de tudo, mesmo, ariano. Que suava no cinema, não entendia o filme e odiava me ouvir contar estórias. Henrique que contava piadas e trabalhava sério. Henrique que me amava, a sua maneira... Que me fizera chorar tanto nos últimos meses que ficamos juntos.
Adeus, Henrique! Cansara-me dele. Ou, antes, ele de mim. Fora-se para melhores vidas, para o sul do país. Fato é que se fora, e eu, que já tanto o quisera como marido, não lhe guardara sequer espaço para amigo.
Mentira. Verdade é que amava muito Henrique e ter a prova diária de que a reciprocidade era estéril só confirmava as teorias de Platão, fazendo-me um livro em páginas em branco... “... você partiu levando nós dois e eu fiquei só comigo...” cantava um daqueles rapazes de voz baixa com o violão. Isso. Um livro de páginas em banco, e ele desistira de tentar escrever algo comigo, rude que era para as letras. Era isso: antes aventura que suspense.
O começo fora difícil. Mas o tempo... Os amigos parcos tinham bons conselhos: ocupar-me e esquecer. E muitos exercícios.
Fizera.
Ariel batera na porta e entrara barulhento pedindo um pouco, claro, de açúcar.
– Eu só uso adoçante. – disse-lhe, sem tirar a atenção dos papéis.
– Escute, você me convidou pra tomar chá há algumas semanas e...
– Meses. – corrigi.
– Então. Como é impossível tomar chá com adoçante...
– É impossível tomar chá com açúcar. – comecei a morder o lápis.
– Vou lhe dizer a verdade. – aproximou-se. – Eu te vi anteontem na janela, olhando o céu, as estrelas, dico voador, nave espacial...sei lá! Parecia tão... tão distante... Pensei em visitá-la e... Ora, eu estou aqui! – abriu os braços sorrindo.
Tirei os óculos e passei a mão pelo rosto, largando pela escrivaninha a pilha de provas acumuladas.
– Então somente os cientistas e os astrólogos podem olhar o céu à noite?
– Não sei dos astrólogos, ou dos cientistas em geral.... – agora ele me tomara um dos papéis e fizera um canudo com ele e rodava, olhando através dele os pontos mais distantes do apartamento. – Mas, nós, físicos, usamos algum tipo de instrumento apropriado: um telescópio, uma luneta, um binóculo... – agora eu era o foco. – E você estava sem óculos, dava pra ver do meu prédio. E eu sei que você sem óculos...
– Escute, – perdera a paciência e me levantara – eu não tenho açúcar. Peça a outro vizinho, vizinha, como queira. Pare de assistir a filmes norte-americanos e me deixe trabalhar.
Ariel continuou para, com a folha e a xícara na mão, sem saber o que fazer com o bom-humor que lhe sobrara. Eu via a sombra de seu cabelo ondulado e pensava na fala de um personagem judeu, muito ingênuo, em um filme que vira recentemente: “por trás de toda maldade, há uma boa ação”.
– Desculpe, Ariel. Não quis te ofender. – sentei-me novamente. – Ando um pouco preocupada com o final do ano. Tenho problemas pra resolver... Como todo mundo.
O rosto moreno se aproximou, sorrindo novamente:
– Então aceita o chá. Sem açúcar!
Passamos semanas como dois bons amigos, de infância. Nunca nos tocáramos de outra forma, nunca um abraço mais longo, exceto há duas semanas, quando nos despedíramos: ele partira para Minas para visitar o pai.
– Se eu não tivesse de ir, juro que ficaria aqui.
Era a primeira vez que o via sério assim e isso me desconcertou.
– Uma amiga minha sempre diz que se um problema não tem solução é porque não há problema.
– Isso é Duchamp!
– Mas o problema não!
Rimos. Ele demorou o abraço apertado e suspirou:
– Lembra-se do postal que você me enviou, no Natal passado? Sim? Desde o dia que o recebi pensei que você poderia ser o meu beschert.
Soltei-me do abraço para olhá-lo.
– Seu o quê?
– Meu beschert... Meu... Olhe, o que você deve saber é que é muito importante para mim.
O rapaz da companhia aérea fez sinal de que agora não havia mais tempo para despedidas, e Ariel sussurrou:
– Voltarei dia 6 de janeiro, está bem?
Fiz que sim com a cabeça sem poder dizer nada entre suas mãos no meu rosto e o beijo rápido. E ele embarcou.
Duas semanas passam rápido quando há boas coisas a recordar. Quando Henrique se fora, as horas eram dias inteiros, os ponteiros eram cadavéricos, nada era alegre. A vida se arrastava.
Exercício físico, muito exercício físico, dissera um amigo. Exercício físico, bem feito, produz endorfina, que é o hormônio da alegria, dizia e repetia, sem ninguém dar muito crédito a seus músculos de gato castrado. Mas era engraçado.
Escolhi nadar. Nadava para esquecer e era bom, mas também era solitário e fazia-me lembrar.
Henrique. Ele se fora.
Ora, afogue-se Platão!!
Lembrar o riso de Ariel era como encher os pulmões de vida.
Por isso, às vezes, quando as reuniões de professores tornavam-se maçantes demais, eu procurava a imagem de seu rosto. Outras vezes, vinha sem razão alguma a minha mente, como quando eu nadava. O rapaz da raia ao lado parecia-se muito com ele, pensava. Não distinguia seus traços porque o nado peito os distorcia. O rosto moreno, corpo bem feito, o cabelo ondulado... Nadar era bom e fazia-me lembrar.
Agora não pensava.
O corpo pequeno, o ombro largo, o cabelo alisado pelo ir e vir da água. Era como se Ariel estivesse lavando a ala, de encontro a mim.
Toc-toc.
Atrás da porta, os olhos blindados, a poucas braçadas. A porta se abrindo para meu abraço. Ariel com as duas mãos estendidas...
Nunca me esqueceria do dia em que lhe contei a piada tibetana:
– Então, o mineiro gordo veio a São Paulo procurar um mosteiro pra trabalhar, pois em Minas ele andava muito pervertido, sem dinheiro...
– Mineiro? – desconfiado. – Mineiro tibetano, sei...
– Bem, chegando aqui, ele procurou o lama-mor e explicou o drama de sua vida, que cansara de queijo branco e doce de leite, de olhar vaca, de passear nos campos, de estudar física e ter uma vida assim tão cheia de gente ruim e sacanagem...
– Era físico! Que sacanagem!
– Não estou te falando! – concordei.
– Não! Sacanagem comigo! Está falando de mim! – e riu alto.
– Então! Aí o lama-mor diz: “Tudo bem. A vida aqui é difícil Come-se pouco, fala-se pouco, dorme-se pouco e trabalha-se muito. Você pode ficar. Daqui a dez anos pode, em uma cerimônia, escolher partir ou ficar. Se ficar, pode dizer duas palavras. Duas palavras ou ir embora”.
– Duas palavras? E aí? – descruzou as pernas e os pés bem feitos espalmaram descalços no chão.
– Aí, passaram-se dez anos e chegou o dia da cerimônia para ele dizer, no ritual, você sabe, na posição de lótus, ele e o lama-mor. O lama diz: “Você pode dizer duas palavras ou partir. O mineiro, depois de dez anos de silêncio, abaixa a cabeça e diz: “comida fria”.
– É, ai não dá! Ainda mais sendo mineiro! – riu-se Ariel.
– É. Mas ele ficou. Aí, passaram-se mais dez anos, e chegou o dia da cerimônia, naquele mesmo ritual, naquela mesma posição, e o lama-mor lhe diz a mesma coisa... E o mineiro, depois de outros dez anos em silêncio, diz: “cama dura”.
– Ah! Eu já teria ido embora!
– Mas ele ficou. Aí se passaram mais dez anos... tudo de novo... só que desta vez ele se levanta e diz: “vou embora”.
– Iésu! Depois de trinta anos!
– Então, o lama-mor, puto, abre os braços e diz: “Também! Só reclama! Só reclama!”.
Ariel jogou a cabeça para trás e riu alto, batendo com as mãos na mesa, dizendo descompassadamente: “ah, mineiro! ah, mineiro!”. Ainda ria quando cruzou as mãos na nuca e jogou o corpo para trás, parecendo satisfeito, em casa.
Toc-toc.
Agora estava ali, há uma braçada da porta, atrás da porta. A última braçada, de encontro a mim. Ariel tão próximo...
O rapaz respira e me olha na bora da piscina, o braço estendido. A água escorre, lavando-lhe o cabelo, brilhante, refletindo a tarde, e a pele, deslavada... O rapaz na borda da piscina.
Deslavado na porta de casa. O braço estendido. Ariel, Ariel afogado, o riso sumido... Desaparece.
Louro, torneado pelos últimos raios da tarde, ali, na porta, Henrique me estende o anel.