Conto das terças-feiras - No amor e na guerra
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, Ceará, 23 de novembro de 2021
O coração da jovem indígena delirava de alegria ao pressentir que o marido estava de volta da pesca. Moravam em uma aldeia perto de um rio; usavam canoas para se deslocarem e viviam da pesca, da coleta de crustáceos e moluscos, da criação de animais e da extração de vegetais. A terra e o rio lhes garantiam o sustento e, para ambos, devolviam o que não precisavam. Eram governados por um Cacique, que desempenhava importantes funções dentro de uma tribo indígena, como aplicar as regras da tribo, definir punições, resolver conflitos, definir guerra e organizar a caça. Eram protegidos por tupã e pelo pajé de sua tribo. A vida religiosa era festejada em cerimônias e rituais de acordo com as crenças professadas e, do ponto de vista espiritual, acreditavam nas forças da Natureza e nos espíritos dos antepassados.
A jovem, pertencente a etnia Potiguara, vivera na metade do século XVI, habitara a margem esquerda do rio Potengi. Fora casada com Antônio Felipe Camarão, o índio Poti, da mesma etnia da jovem, herói da guerra contra os invasores holandeses. Há relatos divergentes sobre o nascimento do índio Poti, para alguns ele teria nascido no Rio Grande do Norte, outros dão sua origem como sendo de Pernambuco. Esse indígena viveu e foi doutrinado na fé católica em uma missão jesuíta. Falava muito bem o português e tinha noções de latim, era educado e muito religioso e isso fascinava a jovem índia, Clara.
O encantamento entre os dois se dera ainda na adolescência. Felipe Camarão sempre olhara para aquela bela jovem mulher com muito carinho e afeto. Em todas as oportunidades trazia-lhe flores para enfeitar os belos, compridos e sedosos cabelos de sua amada. Um dia teve coragem e se chegou ao pai dela e a pediu em casamento. A aceitação fora imediata, embora ele contasse com vários adversários pretendentes ao coração da bela indígena. Ele era forte, belo e despontava como aguerrido guerreiro. O amor entre os dois fora aprovado por toda a tribo, já o aclamavam chefe dos índios guerreiros.
Eles sabiam desde que se conheceram que para viver um amor verdadeiro, com carinho e comprometimento total na relação a dois, era necessário muito companheirismo e uma relação com confiança e muito amor. A partir desse entendimento os dois resolveram se casar e ter uma vida independente dos pais. O casamento fora realizado segundo os rituais cristãos.
Da vida pacata vivida na aldeia, ao se casar, Clara Camarão passou a acompanhar o marido, obedecendo a tradição entre algumas nações indígenas brasileiras, que obrigavam as mulheres acompanhar seus pais e maridos, nos tempos de paz e nas guerras. Não foi difícil para ela, ambos se amavam verdadeiramente. Assim, Clara seguiu o marido, afastando-se do convívio familiar, para participar das batalhas em curso. Conhecedora da arte de guerra sabia muito bem manejar o arco e a flecha, o tacape e a lança.
Corajosa e destemida, essa jovem senhora e seu grupo de guerreiras indígenas lutou continuadamente ao lado do marido contra os holandeses, aplicando todos os ensinamentos indispensáveis ao exercício da atividade de guerrear, adquiridos de seu amado esposo, que liderava um grupo de guerreiros indígenas, culminando com a expulsão dos holandeses de terras brasileira. Como os costumes tribais não permitiam que ela lutasse ao lado dos guerreiros homens, ela se tornou líder de um pelotão feminino, e os dois grupos lutavam juntos, sob o comando de Felipe Camarão.
Clara era vista sempre montada em seu cavalo, investindo contra as espadas e arcabuzes dos inimigos, honrando assim a sua alcunha de heroína brasileira da guerra contra os estrangeiros. Clara e Felipe Camarão participaram de vários confrontos contra o domínio holandês. Um dos mais famosos foi a batalha de Porto Calvo, em 1637.
Pelas participações nas campanhas contra o inimigo invasor, ela gozou de regalias do título de “Dona”, somente concedido às senhoras pertencentes às famílias nobres de Portugal e do Brasil. Seu destaque em capítulo da história brasileira deu-se por estar sempre ao lado do marido lutando em batalhas homéricas, respondendo a uma necessidade pessoal de defender a sua terra das mãos dos estrangeiros, muito ao agrado e admiração dos portugueses.
Infelizmente, sua coragem e destemor não foram suficientes para impedir a morte do marido, motivada por doença, pouco tempo após a batalha dos Guararapes. Desolada pela perda de seu amor e não podendo tê-lo mais ao seu lado durante as próximas batalhas, ela se retirou do movimento guerrilheiro e da vida social. Não existindo registros da vida de Clara Camarão após a morte do marido, perdeu-se, assim, grande parte da história dessa heroína brasileira.