Doce Pecado

Aquela mulher me contou sua história. Ela estava se sentindo solitária e muitas vezes incompreendida. Seu companheiro falecera recentemente e ela estava ainda vivendo seu luto. Falava como se quisesse justificar sua vida e atitudes ou como quem quer mostrar ao mundo sua coragem.

“Eu nasci na década de 1930, mais precisamente no ano de 1934, numa pequena e conservadora cidade do interior.

Minha família era numerosa. Eu tinha muitos irmãos e irmãs. Era uma família tradicional e respeitada na cidade.

Aos quinze anos eu me casei com um homem escolhido por meu pai e quinze anos mais velho que eu. Eu era uma garota inocente e nem sabia o que significava me casar, nem sabia das intimidades de um casal.

Meu marido nunca se preocupou em me agradar em nada. Já na primeira noite eu me senti assustada e desrespeitada. Chorei baixinho por muito tempo depois que meu marido “me usou” e depois virou-se pro lado e dormiu.

Aos dezesseis anos eu já estava com um filho nos braços e nem sabia o que fazer com aquela criança. Sentia-me sozinha e abandonada pela família e meu marido só pensava nele mesmo. Eu chorava sozinha e me sentia cada vez mais infeliz e insatisfeita.

Eu fui levando a vida. Não sentia nenhum amor por meu marido e ele nunca fez nunca pra mudar esta situação. Eu me entregava a ele sem nenhuma vontade. Apenas fazia as vontades dele.

Aos trinta anos eu já tinha quatro filhos e minha vida cada vez mais se tornava um fardo. Aquele casamento infeliz me deixava deprimida. Sentia-me apenas como uma escrava daquele homem. Nunca me senti sua esposa. Cada vez mais eu o detestava. Servia a ele como a um carrasco. Ele muitas vezes voltava para casa tarde, bêbado e cheirando a perfume barato. Sabia que ele tinha outras mulheres. Mas isto não me incomodava. Pelo menos assim ele me deixava em paz.

Por esta época, em uma festa familiar, eu notei que um homem me olhava com insistência. Ele estava com uma mulher que eu não sabia quem era. Eu senti uma grande atração por ele e me senti envaidecida com o seus olhares. Pela primeira vez eu senti que era uma mulher e que podia despertar o interesse de um homem.

Deste dia em diante eu passei a sonhar com aquele homem. E quando meu marido me usava, que era como eu me sentia, eu sentia menos nojo. Fechava os olhos e fingia que era aquele homem que estava comigo.

Eu vi aquele homem muitas outras vezes. E ele sempre me olhava de uma maneira desconcertante. Discretamente procurei saber quem era ele. Soube que ele era casado e que não tinha filhos. Fiquei decepcionada. Mas não deixei de sonhar com ele.

Um dia eu estava sozinha e o vi. Ele me olhou e eu ousei olhar pra ele com a mesma intensidade. Entrei na Igreja e ele foi atrás de mim. Conversamos. Ele falou do seu interesse por mim. Eu disse que era casada e ele falou que sabia disto. Eu disse que sabia que ele também era casado. Ele me disse que nunca foi feliz em seu casamento e que sabia que eu também não era feliz.

De repente ele pegou minha mão e um frio percorreu meu corpo. Eu me senti confusa mas feliz. Nunca meu marido me tocou com tanta ternura e carinho.

Eu fui embora. Nos próximos dias eu pensava nele e me sentia feliz. Minha vida ficou mais tolerável.

Ele começou a passar na porta de minha casa. Eu sempre esperava por isto e saia na janela para vê-lo. Ele me olhava e eu sorria discretamente.

Nossa atração foi ficando incontrolável. Um dia ele fez chegar até mim um bilhete pedindo que eu o encontrasse num lugar isolado onde pudéssemos conversar com calma. Indicou o lugar e eu discretamente consegui chegar até lá. Conversamos, ele se declarou pra mim e me beijou. Um beijo tão terno e carinhoso que eu me derreti. Nunca soube o que era isto até aquele dia. Meu marido nunca tinha me feito um carinho tão sincero e amoroso assim. Rapidamente eu me desvencilhei dele e saí correndo.

Mais tarde neste dia eu olhava para meus filhos e chorava. Jamais poderia viver aquele amor e isto me atormentava. Eu estava completamente apaixonada por aquele homem, mas tinha quatro filhos e um marido. Precisava ser responsável, precisava pensar em meus filhos.

O tempo foi passando e da felicidade que eu sentia com aquele sentimento eu fui me tornando amarga por não poder viver aquele amor. Sempre me encontrava escondido com ele até que um dia nós demos vazão àquele sentimento e nos entregamos. Eu fiquei extasiada. Nunca senti nada daquilo com meu marido. Sabia que não viveria mais sem aquele homem. Encontramos outras vezes e cada vez era melhor. Não suportava mais ser tocada por meu marido. Minha vida se tornou definitivamente insuportável em minha casa.

Um dia nós conversamos sério e ele disse que queria se separar e queria que eu me separasse também pra que a gente pudesse ficar juntos. Ele disse que aceitaria meus filhos. Que me amava de verdade. Eu disse que isto seria um escândalo e que minha família jamais aceitaria. Tentávamos encontrar um jeito de ficarmos juntos. Mas era um sonho impossível naquela sociedade conservadora e hipócrita.

Um dia estávamos juntos e fomos apanhados. Meu pai e meus irmãos nos pegaram juntos. Bateram nele e em mim. Chamaram-me de prostituta e disseram que eu não pertencia mais à família, que eu era indigna de pertencer à sociedade e de ter uma família. Disseram que meu marido lavaria a honra dele com sangue.

Eles nos deixaram lá e foram embora. Estávamos apavorados.

Combinamos de fugir.

Deixamos tudo para trás. Deixei meus filhos que eu amava tanto.

Chegamos em uma cidade estranha. Estávamos vivendo em pecado, como diziam as pessoas conservadoras. Começamos nossa vida do nada. Eu precisei trabalhar para ajudá-lo a recomeçar sua vida.

Na nossa cidade o escândalo foi geral. Eu era a prostituta que abandonei marido e filhos para viver amasiada com um homem casado. Eu era a vagabunda que destruí o lar daquele homem. Eu era considerada a pior das mulheres.

Sabia que minha família jamais me perdoaria. Mas estava feito. Com este homem eu levava uma vida digna e era feliz. Jamais fui a prostituta, a vagabunda que todos diziam que eu era. Este homem me amou e me respeitou como mulher. E recebeu muito amor e respeito em troca.

Muitos anos se passaram e eu não podia voltar à minha cidade ou ver meus filhos. Não acompanhei o crescimento deles. Sabia que eles me acusavam de abandono.

Meus pais e irmãos nunca me perdoaram. Pra eles eu era a vagabunda adúltera e a mãe desnaturada que abandona os filhos por uma aventura.

Mas eu tenho a consciência tranquila que eu não vivi uma aventura. Eu vivi um grande amor.

Talvez ninguém entenda a minha atitude. Ninguém entende uma mãe abandonar os filhos por amor a um homem. Mas ninguém sabe o que eu sofri por ter abandonado meus filhos. Ninguém sabe a dimensão do amor que sentia por eles.

Ninguém viveu a minha vida. Ninguém sabe a infelicidade e insatisfação que eu sentia naquele casamento.

Não fui eu que tomei esta atitude extrema. Tudo isto começou a acontecer no dia em que meu pai me obrigou a casar, aos quinze anos, com um homem que eu não amava e que não me amava também, apenas me usava. Para aquela sociedade hipócrita e para minha família ele era a vítima e eu a mulher adúltera. Ninguém sabe o que eu passei com aquele homem, ninguém falava das traições dele. Só diziam que eu o abandonei com quatro filhos pra criar. Ninguém sabia a dor na alma que eu sentia por estar longe de meus filhos. Ninguém sabia a dor que eu sentia por saber que todos jogavam meus filhos contra mim.

Nós dois trabalhamos juntos e crescemos em patrimônio e como pessoas. Nós sempre tivemos amor e respeito um pelo outro. Vivemos felizes até a morte dele.

Nunca me arrependi pela atitude ousada que tomei. Eu ousei buscar a minha felicidade. Eu ousei viver um grande amor em um tempo onde as pessoas viviam de aparências e onde as mulheres carregavam o fardo de casamentos sem amor.

Eu não sei se posso dizer que fui uma mulher à frente do meu tempo. Embora sempre tenha sido rotulada por muitos de vagabunda eu não aceito nenhum rótulo. Apenas fui uma mulher que amei e fui amada, uma mulher que não aceitou as imposições da sociedade arcaica da época, uma mulher que não aceitou menos que muito amor por parte de um homem, uma mulher que não soube viver infeliz e foi atrás de sua felicidade.

Muitos anos depois, quando o pai de meus filhos já tinha falecido eu tentei entrar em contato com eles. Aos poucos consegui me reaproximar deles e aos poucos eles, já adultos, entenderam minha posição e minha atitude. Eles me aceitaram e então eu pude viver meu papel de mãe.

Hoje, aos 85 anos, tenho uma história para contar. Não passei pela vida sem viver, não aceitei nenhuma imposição, não abri mão de ser feliz. Paguei um preço alto por isto mas valeu a pena.”

Eu nem sabia o que pensar pois eu também não saberia viver infeliz. Eu não entendo um pai cometer uma violência desta contra a própria filha.

A coragem daquela mulher de desafiar uma sociedade tão conservadora e arcaica despertou a minha admiração. Mas imagino o quanto todos os envolvidos sofreram.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 06/09/2021
Reeditado em 07/09/2021
Código do texto: T7336655
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