O REENCONTRO

Houve um tempo em que aquela rua parecia-lhe mais curta. Pudera, era mais moço e mais ágil na época. Mas isso já fazia muito tempo...

Sempre caminhou por ali, mas naquele dia começou a perceber que o tempo tornara as ruas mais largas... mais compridas. O cansaço trazido pela idade torna o mundo maior.

Aquele poderia ter sido mais um dia como todos os outros, não fosse aquela velha senhora com quem se cruzou pelo caminho. De longe a avistou trazendo uma criança pela mão.

A julgar pelas aparências não poderia ser mãe e filha, mas as semelhanças explicitaram os extremos de mais de uma geração. Possivelmente avó e neta..., mais provavelmente bisneta.

A princípio nada havia de incomum naquele quadro tão corriqueiro, mas logo foi percebendo algo de familiar naquela frágil figura arqueada de cabelos brancos a caminhar, vagarosamente, em sua direção.

Teve a impressão de que já a havia visto alguma vez em algum lugar. A criança não. A criança era nova demais para estar em suas tão antigas lembranças, entretanto não pôde deixar de notar que aquela criança herdara de seus ascendentes um olhar expressivo e inconfundivelmente singular que imediatamente lhe reconstituiu as imagens de um longínquo passado.

...Sim, não havia dúvidas — era ela! Jamais esperou revê-la novamente depois de tantos anos.

Atônito, talvez um pouco assustado por aquela inesperada aparição, sentiu-se como que de volta aos tempos em que vivenciava fortes emoções. Havia sido dias de grandes expectativas, tinha mais fé em suas convicções, acreditava na vida, a felicidade se lhe apresentava como algo tangível.

Passado o choque do momento, logo tornou à sua realidade. Mais de 40 anos já haviam se passado desde aquela noite em que ela repentinamente começou a evitá-lo sem nenhum motivo aparente. Dias depois desaparecera definitivamente.

Até hoje nunca soube a razão de tão inesperada atitude. Por muito tempo esperou inutilmente que ela retornasse. Não retornou.

Foram longos dias..., até que finalmente convenceu-se de que a havia perdido para sempre.

Na verdade, não saberia dizer exatamente o quê havia perdido. Não o amor. Não se perde o amor nunca. É impossível perdê-lo, mesmo quando se perde o ser amado, porque se ama mesmo na sua ausência. O amor sobrevive à perda de seu alvo, e por isso não se perde, nem se finda, antes se transmuta, pulveriza-se no ar em sons e perfumes que evocam, mais tarde, lembranças antigas que ocupam o vazio deixado por uma ausência, tentando fazer valer o tempo vivido, quase todo perdido em vãs interrogações que buscam justificar o rumo dos acontecimentos.

...Sempre teve a certeza de que não fora um simples abandono, mas sim um misterioso caso de renúncia. Pois pôde notar por aqueles dias, que a situação havia sido provocada por algum motivo que ela intencionalmente lhe ocultara. Podia sentir seu enorme esforço em se deixar afastar nos dias que se sucederam. Era como se a vida estivesse se esvaindo desesperadamente, como na situação de um trem que parte deixando a estação, dilacerando a alma num conflito desesperado de quem parte querendo ficar, e daquele que fica na ânsia de querer partir também.

Fez-se vagarosamente uma situação em que o rompimento não poderia se cristalizar devido à lentidão do distanciamento, deixando-lhe apenas uma confusa mescla de dor, saudade, e esperança de recomeçar, de recompor a vida fragmentada por uma súbita falta de significação.

Mas tudo isso agora eram reminiscências de um passado muito distante.

As muitas mágoas, que ficaram, testemunhavam sentimentos puros, fortes e sinceros que certa vez dedicara a alguém tão ternamente. Às vezes sentia-se até satisfeito por trazer tantas mágoas. Porque a mágoa é inerente ao amor. Perdoar mágoas é o rito dos amantes. Só quem ama se magoa, e só o amado é capaz de provocá-la mesmo sem saber. E a culpa dessa dor, cai invariavelmente sobre aquele que ama, por esperar do seu amado mais do que este tem para lhe dar. Assim o amor jamais será perfeito a não ser que encontremos a coincidência absoluta dos nossos anseios.

A dor passou. A saudade não (achava que não). A única saudade que sentia, era a de si mesmo, de um tempo tão distante que já nem sabia mais por que razão havia sido tão melhor do que o seu presente. Ter saudades de si mesmo é não ter saudades de ninguém, é ter saudades do que já não "é" mais, e por isso mesmo insaciável na impossibilidade de trazer-se para si mesmo. A vida recompôs (recompôs? Tinha ainda suas dúvidas), as cicatrizes ficaram.

O tempo havia lhe refeito. Teria valido a pena? Acreditava que fosse um pouco tarde para se questionar. Mesmo porque, além do tempo curar muitas chagas, também destrói outras tantas coisas boas. Pois, quantos sonhos já não temos deixado para trás ao longo dos anos?! E além do mais, passado tantos anos, e ainda ter sobrevivido a tantas adversidades, pouco lhe importava se a vida teria valido a pena ou não já que a morte era a sua única certeza e agora cada vez mais próxima. Quanto tempo ainda teria? (Alguns dias, talvez? Alguns meses, para ser mais otimista? Que inevitável destino! Concluiu).

...Mas teria ela lhe reconhecido por trás de tantos anos que trazia marcado em seu rosto? Obviamente que sim, pois seus olhos furtivos hesitaram antes de fingirem não lhe reconhecer.

Entretanto não puderam esconder um ínfimo e amargurado contentamento por aquele reencontro traspassado por mais de quatro décadas de solidão e falsa alegria. Fez-se, contudo, perceptível naquele momentâneo olhar, o triste abandono da conformidade, do apenas "deixar estar", da plena aceitação de ter perdido uma vida, talvez, mais gratificante; ou talvez, de ter perdido um mundo não somente de alegrias, de um mútuo oferecimento idílico, mas um mundo no mínimo suportável.

Que estranha exultação era aquela de poder reviver, mesmo por um breve segundo, o tácito acordo de amor selado por mil palavras ocultas nas entrelinhas dos infindáveis diálogos! E agora com tanta indiferença nos olhos, conseguiam despojar do mútuo e inefável silêncio, a sua maior significação.

Mesmo assim, se olharam, num momento tão fugaz quanto um piscar de olhos, apenas o instante de duas pessoas se cruzarem pelo caminho. Olharam-se com profundidade e quase com o desespero de numa última tentativa recolher o que havia restado de uma felicidade fragmentada cuja promessa não se cumprira em suas vidas. Mas como saber das benesses que realmente perdemos na vida quando nem ao menos chegamos a possuí-las?

Quão terrível e inútil é lamentarmos, invariavelmente, não por tudo que sofremos, mas pelo que poderia ter sido absolutamente melhor!

...Enfim, no vazio de um reencontro, um olhar de despedida. Uma despedida que nunca aconteceu, o fim de uma história interrompida e que há muito, perdera-se no tempo. Tinha agora o seu ponto final naqueles passos vagarosos que os distanciavam novamente, mas agora para sempre. Não mais como numa despedida de quem parte numa viagem de trem, mas num cortejo fúnebre em seus passos cansados, pois não havia mais tempo. Não sabia dizer se felizmente ou infelizmente não dispunham mais de muita vida. Porque se tivessem ainda muito tempo, isso lhe significaria mais tempo de sofrimento. Por outro lado, se tivesse pouco tempo, estaria inexoravelmente sepultando seus sonhos novamente. Talvez tivesse ainda tempo para chorar, finalmente, algumas mágoas, — mas haviam sido tantas que na hora não saberia mais por quais delas estaria chorando.

...houve um tempo em que aquela rua..., o mundo..., lhe parecia menor..., melhor..., e mais bonito.

Almarik
Enviado por Almarik em 31/07/2021
Reeditado em 31/07/2021
Código do texto: T7311357
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