Música

O Músico já estava acostumado a passar o aniversário sozinho. E naquele dia, 15 de Junho, não seria diferente. Trinta e sete anos antes ele era apenas um projeto. Agora, era a consequência de toda a arquitetura e engenharia do mundo ao seu redor. Não era perfeito, tinha inúmeras falhas, mas era um projeto em que se podia acreditar, ainda que ele mesmo tivesse inúmeras dúvidas.

Sempre, nesses dias de comemoração solitária, ele relembrava do que havia deixado para trás quando resolvera acreditar num sonho. Ele quis que a família pudesse entendê-lo mas foram poucos os que lhe estenderam a mão. Na época ele ainda era novo, um garoto com um talento que poucos reconheciam, nem seus pais acreditavam no enorme potencial do fruto que geraram, preferiam que ele seguisse o curso natural das coisas, leis e diagnósticos, Direito ou Medicina, qualquer coisa que não o matasse de fome nem a seus filhos. Mas, Música? Ainda mais sem formação, apenas acreditando na palavra de homens? Não. Não poderia dar certo.

E assim dezessete anos se passaram sem que ele pudesse mostrar a eles as suas conquistas. Conquistas materiais, nem tantas, pessoais, eram muitas. Eles estavam longe, o haviam desprezado talvez por ser pobre diante do que almejavam pra ele. Talvez por orgulho. Todos os outros filhos de seus pais eram bem-sucedidos, um advogado, uma médica e uma diretora de empresa. Eles não quiseram acreditar que poderia ser possível, que ele poderia colher frutos, embora dinheiro não fosse o principal, mas eles não quiseram acreditar que isso o faria feliz. Eles não entenderiam. O Músico sentia compaixão pela cegueira deles. E então ele partiu. Milhares de quilômetros longe do lar. Já não importava se o tesouro que procurava houvesse sido encontrado ou não, para ele, tratava-se de haver agarrado com todas as forças a única chance de poder ser o que tinha de ser, de fazer e tentar viver do que dele emanava. Música. Ele, era Músico. O tesouro, era o próprio caminho.

Ainda muito jovem pra ver que talento e ouro não são sinônimos. Há a sobrevivência. Ele desejou ser o melhor e fora, mas não estava armado contra as armadilhas. O abrigo que lhe ofereceram quando era jovem era penas uma emboscada para que se fartassem com seu talento. Levou anos pra que ele percebesse. Ele havia sido feliz, foi muito feliz enquanto acreditou cegamente no seu potencial, enquanto ainda não havia percebido os lobos. Conheceu lugares, viveu amores... E sua família não o perdoou. Para eles, ele havia jogado tudo no lixo. E então a saudade foi se habituando a ser aceita, confessando ao orgulho que talvez ele houvesse nascido pra ser só. Um projeto inacabado?

A caminho de mais uma noite de trabalho, no dia de seu aniversário, as notas musicais preenchiam sua mente, um novo repertório era repassado. Seria também o aniversário de uma senhora de muitas décadas. Oitenta e sete anos. Havia sido contratado pela filha mais velha dentre quatro irmãos. A contratante lhe dissera que seus irmãos viriam de longe, cada um de uma cidade diferente, era a única data em que se reuniam para celebrar mais um ano da matriarca. O repertório seria popular, não mais que duas horas. Seu tom foi decidido e exigente. Disse ao Músico que quem o sugerira tinha crédito com ela mas não revelou quem havia sido. O Músico tinha infinitos contatos.

E com seu violão nas costas, ele divagava. Como estaria sua mãe agora? Será que continuava bonita? Será que pensava nele? E seu pai? Será que ainda acompanhava as notícias no jornal impresso resmungando sozinho? Será que ainda o amavam? Já haviam amado? “Pois é minha véia... quanto falta eu sinto de como era...”. Memórias muito antigas, desbotadas. Era reconfortante pensar que era assim, mas haviam tantas outras coisas. E o tempo. Não. As coisas eram muito diferentes. Agora era o repertório o que mais importava. Sem ele não haveria como saciar a fome. Todo o talento resumido a algumas horas de entretenimento e algumas poucas cédulas, nada de palco, nada de reconhecimento. Ainda tinha a refeição, nem sempre acontecia de ter uma. Como era uma festa, comida e bebida eram coisas que certamente não faltariam, eles eram de posses. E os músicos sempre dão um jeito de filar alguma coisa. O repertório se desenrolava na cabeça dele mas uma palavra a tanto esquecida insistia em reaparecer por entre os acordes imaginários; Família.

Era nisso que havia pensado nos últimos dias, enganando-se por achar que era devido ao seu aniversário. Não era um homem de sentimentalismos ou qualquer pieguice, era um músico de verdade, e suas lembranças eram como melodias. Por isso pensava neles, em com eles estariam. Família... Talvez não tivesse percebido o quanto era só... Mas por que agora? Por que parecia ter esquecido de quando seu sonho fora chutado e todos os pratos de comida esfregados na sua cara? Por que esqueceria as lágrimas?

Chegou no endereço às 19:20, 30 minutos antes do horário combinado, gostava de se deixar acostumar com a atmosfera do ambiente onde se apresentaria, além de ter tempo suficiente para todos os preparativos técnicos. A residência estava localizada num residencial de luxo bastante conhecido por ser morada de inúmeras personalidades, em sua maioria políticos, que na verdade são os maiores artistas de todos. Os guardas na portaria já haviam sido informados e ele não precisou passar por revista.

- É no bloco C do Ômega, Nº 157.

- Obrigado senhores, bom trabalho.

Eram apenas ele e seu violão, e um universo musical guardado em seu íntimo. Ao chegar à casa após uma curta caminhada por um ambiente que se contrastava de tal forma à realidade além da muralha que o protegia, ele pensou estar em outra parte do mundo. Era uma das maravilhas que só o ouro podia oferecer. A casa era imensa, uma mansão, dois andares, os carros importados estacionados davam pistas do porte de seus proprietários, a elegância do conjunto não o incomodava mas fazia soar em sua alma um acorde triste, não pela ostentação que o cercava, mas sim pelo fato de tudo aquilo o remeter à questão principal daquela noite de comemoração solitária. Era o aniversário de ambos. Eles eram uma família. Ele, era só ele...

Uma senhora elegante atendeu a porta após dois toques da campainha e se apresentou como a governanta.

- Olá, boa noite! Acho que você é o músico... Chegou cedo heim? Sim, venha. - Pediu pra que ele entrasse e o acomodou em um estofado que mais parecia feito de plumas, situado numa sala decorada com várias porcelanas e ornamentos arabescos, inúmeros quadros e fotografias onde em quase todos ele percebeu a presença de uma mulher que ele deduziu ser a aniversariante, e uma lareira com fogo baixo e tépido. As fotos pareciam seguir uma ordem cronológica tão bem organizada que após um olhar um pouco mais crítico ele concluiu por fim que aquela senhora de cabelos brancos nos últimos quadros era como um pilar naquela família. Em algumas, ela pousava segurando um pequeno martelo e vestida de preto, mantinha o olhar firme e decidido.

Após alguns minutos na elegante sala, ouvindo vozes que conversavam ao longe em outro cômodo da espaçosa casa, a governanta voltou e de maneira fria passou-lhe as informações a pedido da contratante. Ela disse-lhe que as músicas deveriam ser tocadas na ordem em que lhe foram passadas, com intervalos de no máximo trinta segundos entre elas, que dispensasse apresentações sobre ele e apenas tocasse, caso lhe fosse solicitada alguma canção que não estivesse inclusa no repertório passado por sua patroa, ele receberia por cada música extra. Era de extrema importância que ele seguisse as ordens, o pagamento seria feito logo após ele encerrar seu jantar, e fez questão de frisar que o jantar era uma demonstração de cortesia dos anfitriões.

Ele ouviu em silêncio as instruções mas não deixou de se admirar com a diferença que houve entre seu primeiro contato com a pessoa que se dizia filha da aniversariante, e que ele ainda não conhecera, para aquele segundo tão burocrático. Perguntou apenas se seria preciso utilizar microfones para o ambiente e a governanta o informou que a acústica do salão particular não necessitava de nenhum tipo de amplificação. Que ele era perfeito. Ela olhou para ele dos pés à cabeça e disse que esperava que ele fosse bom mesmo porque sua patroa era muito exigente, por isso pagava tão bem. Pediu que ele estivesse pronto e que assim que fosse solicitado a entrar, ela o levaria até onde seria feita a apresentação. Os olhos dela não paravam de percorrer o Músico que não estava em seu melhor traje, já que não havia tal traje.

Ele aguardou calmamente repassando as músicas solicitadas em silêncio, não eram músicas de difícil execução, em sua maioria eram músicas populares e algumas delas sucessos atuais nas rádios. Algumas ele gostava. “Ando... tão perdido em meus pensamentos... longe... já se vão os meus dias de paz...”. Totalizavam quarenta canções. Sua dificuldade consistia em memorizar todas as letras já que não costumava ouvir determinados gêneros musicais em seu dia-a-dia a não ser quando precisava se apresentar. Mas ele se sentia seguro, como sempre, confiava em seu talento, sabia que não dispensaria um terço de suas habilidades para receber aquele cachê.

A governanta entrou na pequena sala e anunciou que a apresentação começaria em cinco minutos.

- Já está pronto? Se não, esteja. - Ele se levantou continuando a sentir as plumas do estofado em suas costas e a acompanhou pela imensidão da mansão que aos olhos de um simples mortal parecia uma catedral napoleônica. Móveis rústicos se espalhavam emoldurando a visão como numa viagem ao passado, as luzes fracas de lamparinas a gás sugeriam que naquela casa prezava-se pelas origens. A mistura entre o moderno e o antigo fazia com que se percebesse bem os efeitos do tempo e o poder do ouro. Ouro. Ele viu que o ambiente era dourado.

Caminhou ao lado da mulher que exalava comando dos poros até chegar à uma porta feita de carvalho envernizado. A mulher abriu a porta com uma chave escolhida com exatidão num molho que puxara do bolso e ele adentrou num recinto com baixa iluminação, semelhante a um pequeno teatro. À sua frente, acima de uma pequena plataforma, um banquinho de madeira estava posicionado sob o olhar de um grupo formado por mais ou menos quinze pessoas, dentre elas, ele pôde perceber, haviam três crianças.

E silêncio.

Estava no salão particular da família, reservado especialmente às apresentações artísticas ou reuniões emergenciais. Um piano repousava à sua esquerda e as pessoas ao o virem entrar trataram de se acomodar nas cadeiras dispostas em frente ao banco, a maioria segurava uma taça com vinho, as crianças pareciam estar ali contra a vontade. Se beliscavam e recebiam advertências dos pais. No meio da pequena multidão, sentada numa cadeira de rodas motorizada, que ele julgou ser banhada a ouro, uma senhora de cabelo branco cortado bem curto vestida num vestido preto simples e com um cachecol envolto no pescoço, olhava-o com o mesmo olhar firme que ele vira nas fotos. Todos estavam ao seu redor com sorrisos frouxos nos lábios, pareciam esperar dela algum tipo de aprovação. Sua expressão era impassível. Aquilo não parecia uma festa. Era um teste.

Ele sentou e fez soar um primeiro acorde de seu violão, um instrumento antigo, excelente, que nunca o abandonou. Todos o olhavam e pela primeira vez em anos ele se sentiu um pouco oprimido diante de uma apresentação. Estendeu a folha com a sequência das músicas no chão próxima a seus pés, desejou boa noite a todos e iniciou a apresentação sem nenhum tipo de apresentação pessoal, como havia sido instruído. A primeira canção arrancou um sorriso gigantesco de um dos homens que cercava a senhora na cadeira de rodas, porém não houve reação por parte de mais ninguém, apenas ele parecia admirar a execução impecável com que o Músico tocava. O tal homem olhava a todo o tempo para o Músico e para a senhora, e ficou claro que aquelas quatro pessoas que cercavam a aniversariante se tratavam de seus filhos. Uma única mulher entre três homens mantinha um olhar que lhe pareceu de reprovação, e ele deduziu que foi com ela que ele havia tido o primeiro contato. Ela se parecia demais com a velha imóvel. As demais pessoas, um pouco mais atrás, eram três mulheres, um homem de terno laranja e expressão cínica, e as três crianças. Duas menininhas e um menino emburrado. Haviam mais algumas pessoas que vestiam uniformes.

A sensação de opressão perdurou durante toda a apresentação, porém ele manteve a excelência a todo o momento, seu talento era inquestionável. Durante duas horas, cantando quarenta músicas divididas em blocos de dez, nenhuma nota havia saído da escala, nenhuma sensação de insegurança surgiu embora ele tivesse tido apenas dois dias para se preparar. Em suas mãos as músicas ganhavam novas cores. Joe Pass o daria sua benção se o visse tocar. Nos intervalos entre as músicas, o que pra ele não duravam dez segundos, ele ouviu poucos aplausos, muitas vezes era possível ouvir que eles pareciam discutir com classe sobre a letra da música em questão, como se as músicas fossem uma prova do bom gosto e da superioridade de quem as havia escolhido para aquela ocasião. A velha parecia não se importar com a apresentação, por diversas vezes ele a viu cochilar com a cabeça pendurada, enquanto a filha a erguia calmamente e ela então abria os olhos, olhava firme para ele enquanto se apresentava e então voltava a cochilar. Era perceptível sua indiferença quanto aquilo tudo, e ele não via a hora de encerrar o repertório.

No fim da última canção da lista, “Despedida”, de Roberto Carlos, os rostos que o encaravam estavam fechados e com a nítida expressão de discórdia entre eles. A filha mais velha gesticulava para os outros três de maneira veemente e eles se calavam, então um deles voltava a falar algo e os gestos voltavam mais contundentes, e a canção ia chegando ao fim como uma trilha sonora de um filme dramático. A velha permanecia estática, uma estátua contemplando mais um ano de existência. Mas ele percebeu, quando harpejou o último acorde, que ela o olhava profundamente nos olhos, seu rosto enrugado tremelicando como se a discussão que se desenrolava ao seu redor de maneira sucinta, a estivesse trazendo algum tipo de agonia. Então sua cabeça despencou mais uma vez e ela quase virou da cadeira. A filha que discutia agora sem fazer gestos com um dos irmãos, voltou-se imediatamente para a mãe e a ergueu com cuidado, passou-lhe a mão pelo cabelo curto e branco e disse sem jeito “Mãezinha tá muito dorminhoca ultimamente... Acorda mamãe... Mãe?”, e a velha acordou. A filha fez um sinal de positivo com a cabeça para ele e antes que ele pudesse sinalizar de volta a governanta tocou em seu ombro e pediu que a acompanhasse. Havia acabado a apresentação, e o alívio por isso era indescritível, ele só não entendia por que sentia isso. O salão se esvaziou em segundos.

Com o violão nas costas ele acompanhou a governanta pelo mesmo caminho em que veio até a sala onde aguardara na chegada, mas não observou nada ao seu redor, uma sensação de que havia sido mais uma vez usado, espremido, acariciava o seu orgulho. Não foi isso que desejou muitos anos antes, e essa não era uma boa noite pra se embriagar em recordações. Aniversário... Queria sair dali e sonhar com o que não havia sido, pensar na família que o esqueceu, pensar na família que também não construíra. Por que mesmo ele era só? Até quando seria usado como uma prostituta que poderia ser uma ótima esposa? E se ele decidisse voltar? Era preciso sobreviver e a única coisa que tinha era o seu talento, um talento que hoje em dia só ele via. Melhor mesmo era aceitar o ouro esmolado.

A governanta reapareceu e ele já não a olhava com indiferença, sabia que ela era uma escrava leal, sem perceber, sem se defender, sem se enxergar, que histórias tristes como a dele ela não escondia? Foi informado por ela que seu jantar seria posto na cozinha dos funcionários, e que a acompanhasse. Ele respondeu que não queria jantar e perguntou se o dinheiro estava com ela para que ele fosse embora. Ela disse que o pagamento seria feito por sua patroa mas que naquele exato momento ela estava em reunião com seus irmãos e não poderia ser perturbada, que dentro de alguns minutos viria pagar-lhe. Acrescentou que sua patroa garantiu que qualquer tipo de incômodo seria ressarcido. Incômodo? Ele precisava muito daquele dinheiro. E estava com fome. Já havia sido um dia e tanto, comer não lhe cairia mal.

Eles saíram da sala e a casa se abriu num enorme palácio vitoriano. Ele jamais viu com seus olhos como o ouro, que para muitos não compra a felicidade, podia indubitavelmente comprar algo que a pudesse substituir. Sentiu-se pequeno caminhando por aqueles cômodos reluzentes, notou o ar empoado da governanta e sentiu-se mais triste por perceber que nem todos viam o que ele via. Ele estava cansado... Ela era uma feliz serviçal, ele era como um bobo da corte, ambos admirados com a misericórdia de seus senhores por permitir que eles contemplassem aquilo tudo, mas não manchassem o ambiente deles com seus fracassos. Eles deveriam estar sempre cientes de sua posição no mundo. Eles, os fracos, eram a força, seus senhores, os nobres, os fortes.

Chegaram a uma sala onde uma mesa estava sendo preparada para o jantar. A governanta repassou algumas instruções para criados que montavam os utensílios, com tom autoritário, e seguiu em direção a um longo corredor, onde o informou, ficava a cozinha dos empregados. Quando ele começou a caminhar rumo ao destino solicitado um som mecânico foi ouvido vindo de trás do corredor e ele voltou-se para olhar. A velha na cadeira de rodas o fitava com o olhar imóvel das fotografias.

Ele se sentiu um pouco desconfortável e quando ia abrir a boca para a cumprimentar ela levantou a mão e fez um sinal com o dedo pra que ele se aproximasse. Ele se inclinou para ouvi-la, ela disse-lhe que sua voz estava fraca... que não era como antes... e pediu pra que ele a acompanhasse.

Voltaram para a sala, a velha manobrando a cadeira com precisão. Quando estavam de volta a governanta o viu e de imediato o perguntou se ele não havia entendido a ordem para ficar na cozinha, se tinha algum problema auditivo, não tão educadamente assim. A velha a olhou e a expressão no rosto da governanta pareceu derreter num semblante temeroso e confuso. Ela então se afastou e os dois, a velha e o Músico, seguiram para um estofado numa sala de estar ao lado da sala de jantar.

Sentado e observando a dificuldade que a velha sentia ao tentar se preparar para se comunicar, o Músico aguardou até que o silêncio foi quebrado por uma voz que ao mesmo tempo soava débil e impositiva.

- Você é bom rapaz, por que se submete a isso? - os ouvidos treinados do Músico ficaram em alerta ao serem pegos desprevenidos, ele esperava inúmeras outras coisas. Como não houve resposta por parte dele, afinal a velha não lhe transmitia nenhum sinal de simpatia, ela permaneceu imóvel por alguns instantes e quando resolveu falar-lhe sua voz adquiriu um estrondoso impacto. Era a voz de uma mulher que sabia o que dizia. Era a voz de alguém habituado a julgar.

- Vê tudo isso ao nosso redor? É tudo meu... só meu... mas nada disso será meu sempre. E sabe por que rapaz? Porque eu cometi um crime. Conquistei tudo isso cometendo apenas um único crime... E essa é a minha condenação... Ter que ter isso e ao mesmo tempo sentir que não tenho nada... Mesmo no fim da vida, é difícil saber que você não foi melhor do que todos aqueles que você julgou e condenou - enquanto falava a senhora adquirira uma postura ereta sobre a cadeira de rodas, seus olhos brilhavam e o Músico se sentia mais perdido do que antes.

- Senhora, me perdoe, mas não consigo entender por que me fala tudo isso... seus filhos... por que não fala a eles o que sente? Eles são sua família, eu sou apenas um músico contratado para entretê-los - o Músico sentia crescer o incômodo e lembrou das palavras da governanta sobre ser ressarcido por qualquer tipo, começava a perceber que sua noite poderia ser longa. E atípica.

- Quer saber qual foi meu crime jovem? E mais, saber por que eu estou te confessando ele? Acredito que está confuso mas deixe que lhe fale um pouco sobre meus filhos antes. Nesse momento, eles certamente estão planejando inúmeras formas de tirar a vida uns aos outros enquanto pagam pelas músicas que escolheram. Estão tentando me agradar. Sabem de minha história, de meu amor. Mas eles querem mais. Sempre mais. Cada um pagará apenas pelas dez que escolheu, são mecânicos e sem nenhum talento, mas eles sabem que um dia eu fiz o meu melhor pra que eles não fossem como eu. Mas eu os amo... do meu jeito. Afinal são meus filhos, mas são livres. Eu tentei salvá-los. Mas vejo que não consegui. É o dinheiro... O repertório que você tocou decidirá a quem pertencerá a maior parte disso tudo que você vê filho... estou morrendo... - ela retirou o cachecol e tossiu algumas vezes, a governanta pôs a cabeça sorrateira em direção aos dois que conversavam mas a retirou com velocidade quando percebeu o movimento da velha com intenção de ver o que lhe passava às costas.

- Bem, vejo que não teremos muito tempo até que eles retornem e as coisas precisem continuar sendo o que são. Então, como estava abrindo meu velho coração decrépito e insólito pra você, devo continuar dizendo que já tive um grande talento um dia. Me escute... Já fui uma pianista mergulhada no universo dos sons. Mas eu era tão nova, tão pura... não sabia nada além de tocar. E eu era feliz... feliz por não saber que o futuro viria, e com ele meu crime inevitável; a renúncia. - Seus olhos firmes examinaram o Músico com um aspecto triste, ele que agora se sentia envolvido pela situação tão imprevista quanto opressora daquela confissão. Encostando o violão no estofado ao seu lado, ele se inclinou e fez um movimento tenso com as mãos procurando se sentir mais confortável. Assentiu com a cabeça e a velha continuou seu monólogo inesperado. O que aquilo era para ele?

- A renúncia me fez ser o que sou. E também o que não sou. É uma longa história... Eu reneguei a única coisa a que pude atribuir o sentido da palavra felicidade, neguei meus desejos mais puros da juventude para construir isso que te rodeia. A fortaleza de concreto... as carruagens motorizadas... as sentinelas que protegem a todo tempo, o poder de romper as fronteiras... tudo isso, isso que tantos almejam e passam a vida toda numa busca incessante, eu consegui! Mas, e por dentro? O que construí dentro de mim após minha renúncia? Nada! Eu fui eu até renegar a Música... Hoje, não passo apenas de uma réplica de extremo mau gosto do que um dia eu sonhei pra o meu futuro... - ela deixou baixar o olhar por uns instantes, o Músico agora percebia que aquela velha senhora com meio século a mais em sua história que ele, estava apenas querendo conversar sobre algo que somente ele dentre todos que ali estavam conseguiria entender. Ele sabia do que ela sentia porque a Música um dia por ele quase fora abandonada... mas ele fez diferente, mesmo que as coisas houvessem se desequilibrado irremediavelmente...

- E eu daria tudo filho... daria tudo pra poder sentir de novo... pra poder mergulhar outra vez nas profundezas dos meus desejos inocentes, pra poder olhar pra trás e sentir que mesmo sendo o que sou hoje, eu mereço também o perdão... Depois de toda uma vida de condenações e de tão poucas absolvições, essas que em nada se diferenciaram de condenações, eu gostaria muito de bater o martelo pra mim mesma e me sentenciar a reviver... Isso parecia impossível. Até eu te ver tocar... você me lembrou alguém filho, alguém que com toda sua bondade me ensinou a ver com os ouvidos, a enxergar com o coração. Alguém que eu decepcionei quando reneguei a tudo pra ter isso. Alguém que amei... mas isso foi há tanto tempo... - ela enxugou os olhos com o cachecol e agora a atmosfera do imenso cômodo não mais era sufocante, havia algo de primaveril no ar, um leve cheiro de orvalho parecia invadir o ambiente.

- Sabe, filho, lembranças são como melodias... - ela falou e tossiu com força, era perceptível o esforço a que se submetia pra impostar uma voz a tanto enfraquecida. Apertou os olhos por alguns segundos, e a governanta caminhou como se nada quisesse apenas para ver o que os dois faziam.

- Senhora, o que posso fazer por você? - se há convicção, foi armado com ela que o Músico fez a pergunta. Suas lembranças também eram como melodias.

- Não é a primeira vez que me confesso... Ninguém pôde realizar meu desejo, minha despedida... mas pela primeira vez sinto que há uma chance porque eu sei que você é diferente, você é bom rapaz, você está acima da média, você é real... - ela estendeu a mão e o Músico a tomou. Naquele instante, com todas as diferenças possíveis entre dois mundos tão desiguais, eles puderam se conhecer, mesmo nunca tendo se encontrado antes, porque havia algo, algo que mesmo esquecido por um, havia sido o mesmo para os dois. Havia a Música. Não importava o ouro. Eles sabiam.

- Preciso pedir perdão... a ele... ele que me ensinou e eu o rejeitei. Ele que me entregou a chave pra felicidade e eu a arremessei ao mar. Ele que sempre me tocava com a mesma música, me pedia pra fechar os olhos e imaginar o meu futuro. E eu imaginava... não era isso... não... Ele que onde quer que esteja agora, precisa saber que sinto muito... sinto muito por não ter vivido o que ele me pediu ao tocar pra mim tantas vezes tal música... com tanta segurança... - lágrimas escorriam tímidas do rosto da velha mas ela não soltava a mão do Músico, que agora sentia seu sangue correr depressa movido pelo instinto.

- Qual canção senhora? Me peça... talvez eu... - um resvalar de dúvida atravessou os pensamentos do Músico mas o reluzir de seu talento o tornou sereno. Queria poder fazer algo por aquela senhora, mesmo nada sabendo do seu passado ou de todos os erros que havia cometido pra ter o que tinha hoje. Não lhe importava. O que lhe movia era saber que ela era infeliz, infeliz por não ter feito a mesma escolha que um dia ele fez. E ela falou em despedida. Tudo era incomum. Aquilo podia ser algo para ele...

- Toque para mim a ‘Chaconne’ de Bach... Era ela que ele tocava pra mim sempre que queria que eu moldasse meu futuro... Ele acreditava tanto nisso... e hoje... eu também quero acreditar que ainda há um futuro em que se acreditar, nessa ou em outra vida filho... - ao pedir a canção seus olhos baixaram solenes como se ela não acreditasse que ouviria aquela música outra vez, não era a primeira vez que se confessava, talvez a resposta do Músico fosse “Sinto muito...”, mas não havia mal em se ter esperança. Para ela, talvez um “não” fosse parte de sua sentença.

O Músico soltou a mão da velha e tomou seu violão. Abriu o case com tranquilidade sob o olhar impassível dela. Retirou o violão e imediatamente emitiu o som da corda mais grave tornando-a mais grave ainda ao girar uma das tarraxas e soar juntamente a 6º com a 4º corda, posicionou-o sobre a perna esquerda. Naquele instante, o Músico estava totalmente imerso em suas próprias lembranças, em suas próprias melodias... A música pedida separava os músicos dos Músicos, não pela dificuldade absurda de sua execução, que consistia num verdadeiro sacrifício técnico e intuitivo, mas sim pela entrega total que se precisa para fazer soar as verdades ocultas nos sons magistrais. A música o recordou dos motivos que o fizeram sair de casa e ser o que era hoje. Ela seria como uma ponte pra o mundo que um dia ele também havia projetado... Ele era o que era, a Música era parte dele. Ele era apenas um instrumento para ela, assim como o seu violão o era pra ele.

E a música começou.

Silêncio.

Naquele momento nada existia além deles três. Réu, Juiz e Advogado. Mestre Segóvia o deu permissão em seus pensamentos...

Durante mais de dez minutos a experiência vivida no amplo cômodo foi além de qualquer explicação plausível. De olhos fechados, a nobre senhora gesticulava como se conversasse a cada ataque preciso do Músico às cordas que emitiam as lembranças em forma de sons. Ela conversava literalmente, e ele não sabia com quem. Era esse seu dom. O Músico, também de olhos fechados, deixava-se guiar pelo sentimento avassalador da composição e sentia a cada acorde sua força crescer. Ele jamais desacreditou de seu talento, naquele momento não havia espaço algum para questionamentos, apenas a certeza de que ele havia feito a melhor das escolhas...

Quando o último dos acordes soou encerrando o encanto, ambos abriram os olhos e por um relance o Músico não viu uma velha sentada à cadeira. Viu uma linda moça em seu piano, os olhos lacrimejantes assentindo para ele silenciosos... Ele também se sentia outro, parecia outra vez o jovem decidido a sair de casa. O fôlego da vida havia passado por ali, ambos sabiam disso.

- Obrigada... Ah Deus... Obrigada filho... meu Deus... - a velha estendeu as duas mãos em direção ao Músico que retribuiu o gesto. Ela, ao tocar-lhe as mãos, fez um esforço para se levantar e ele a ajudou. Um abraço de desconhecidos naquele momento era como um presente para ambos, porque assim são as coisas que não entendemos na vida, apenas acontecem. É preciso senti-las...

- Espere um instante - ela moveu a cadeira sem a mesma precisão de antes, acertando um pequeno centro de sala, recuou e seguiu mansão a dentro sob o olhar paralisado de alguns funcionários. Ao passar por eles pediu que providenciassem mais um lugar à mesa e quatro funcionários responderam e se dispuseram ao mesmo tempo. O Músico guardou seu violão e aguardou o próximo ato dessa peça desconcertante da qual ele tornara-se um dos personagens principais.

Os filhos reapareceram antes que ela voltasse e a filha mais velha estranhou a presença do Músico naquele ambiente. “ O que ele faz aqui? Mas o que é isso?” Antes que pudesse indagá-lo sobre seus motivos a governanta se aproximou e sussurrou algo em seu ouvido. A filha o olhou com olhos de reprovação e repúdio e andou em sua direção com um envelope nas mãos o qual o entregou ao se aproximar dizendo que esperava que fosse o suficiente pra que ele saísse imediatamente. Que já não precisava de seus serviços. O Músico abriu o envelope e cinco cédulas do valor mais alto estavam acomodadas em seu interior. O acorde era de três. Ele a agradeceu mas a resposta foi o virar das costas.

Quando a aniversariante voltou seguiu direto passando por todos os filhos até o Músico que já fazia menção de partir. Ela pediu pra que ele sentasse.

- Nada poderá pagar pelo que fez. Tome, guarde e apenas o abra quando estiver longe daqui... esconda... não deixe que vejam... - um pequeno saco de veludo negro amarrado por um cordão dourado lhe foi entregue às escondidas e ele o pôs no bolso imediatamente.

- Agora, jante comigo, assista o fim ao meu lado, por favor - ela o olhou com a mesma firmeza e ele não soube o que dizer a não ser consentir.

Sentado à mesa, rodeado por pessoas desconhecidas, por utensílios que jamais vira, o Músico manteve-se tranquilo porque algo mais parecia espreitar a mesa farta. Os filhos da velha o olhavam com perceptível desprezo, mas não ousaram contrariar o desejo de sua moribunda mãe. Esperavam a resposta dela, quem seria o escolhido. Durante o brinde, palavras e desejos de longa vida e alguns discursos foram feitos, todos direcionados à velha na ponta da mesa, olhos firmes e expressão distante. A mesa repleta de uma infinidade de iguarias não despertava desejo algum no Músico, mesmo com fome, enquanto todos comiam e conversavam sobre negócios, ele remexia os camarões em seu prato e bebericava em pequenos goles o vinho branco. E observava. Analisava o mundo de pessoas que diferente deles dois, a velha e ele, não percebiam o esgotar do tempo.

Passados alguns minutos a cabeça da velha tombou. A filha prontamente se levantou e disse “Mamãe, não vá dormir agora, sua festa está apenas começando”, e enxugou os lábios dela com um guardanapo de tecido suntuoso. A velha parecia atuar, parecia ter perdido completamente a lucidez de momentos antes. Retomaram a conversa e não demorou para que os irmãos e suas respectivas esposas, assim como seus filhos, estivessem envolvidos na mesma conversa, uma conversa sobre quem era melhor sucedido, quem poderia ser mais digno disso ou daquilo, e o clima na mesa foi se enegrecendo. De longe, do lado oposto à cabeceira onde a matriarca se encontrava, o Músico percebera o porquê dele se encontrar ali. Como se estivesse sonolenta, com um leve sorriso no rosto cansado, a velha balançava languidamente a cabeça em direção à mesa, ninguém percebia porque a conversa que já virara uma discussão disfarçada tomava-lhes a atenção. Somente ele, um Músico tão desconhecido como um cão atropelado na estrada, pôde lhe fazer um aceno de despedida. A olhou nos olhos e de longe, desejou-lhe uma boa viagem. Havia feito por ela o que estava ao seu alcance.

Quando a cabeça da velha mergulhou no prato fundo de sopa minestrone, os filhos se assustaram assim como os empregados que estavam afastados esperando qualquer tipo de ordem. Levantaram sua cabeça e a pediram como das as últimas vezes pra que ela acordasse, mas o Músico sabia. Não acordaria. Ela havia falado em despedida... Levantou-se quando o desespero assumiu seu lugar à mesa e caminhou tranquilamente em direção à saída sob os gritos de socorro de vários desconhecidos. Sua apresentação havia acabado naquele momento.

Do lado de fora, de volta ao mundo real, seu mundo real, ele caminhou refazendo o trajeto para casa, já era tarde, mas ainda era o dia de seu aniversário. Tomou um táxi até a orla de Ponta Verde e só então parou pra refletir sobre o que lhe havia acontecido. Não conseguiu. Sentado a poucos minutos da meia-noite, cada vez mais próximo de um novo dia, ele observou o mar, o ir e vir das ondas. Não havia ninguém se banhando àquela hora, o frio fazia da ideia um total absurdo. Mas ele sentiu vontade de fazê-lo. Mergulhar naquelas ondas enquanto ainda podia escolher, enquanto ainda havia vida. Vida... Enquanto podia acordar. A orla naquele momento pertencia apenas aos que possuíam, os bares e restaurantes estavam à toda, tendo como engrenagem pessoas como ele.

Enquanto se decidia, uma voz de criança cortou o ar frio que soprava do mar. Olhou à sua esquerda e viu uma família de pedintes em volta de uma fogueira, a mãe retirava de uma embalagem algo que dividia com dois filhos e com um homem. A imagem da mulher dividindo com um imenso sorriso no rosto o provável resto de outra pessoa para os filhos trouxe em sua lembrança mais uma vez a palavra que ele não queria lembrar... Família... Eles também eram uma família. Havia visto duas famílias que não eram a sua naquela noite.

Se aproximou da família de pedintes e com compaixão perguntou o que eles iriam comer. O pai, que se acomodava próximo a ferramentas rurais, disse que o dono do restaurante ajudava eles quando podia, que eles não eram da cidade, moravam no interior e queriam voltar mas não tinham dinheiro. O Músico sentiu crescer no peito o mesmo sentimento que movia sua habilidade; a verdade; aquelas pessoas eram verdadeiras. Sem pensar nem pestanejar, chamou o pai das crianças, um homem surrado, vestido em roupas maltrapilhas mas que imediatamente acatou às ordens daquele desconhecido com um violão nas costas, olhou-o nos olhos e contou-lhe que hoje era seu aniversário, mas que não tinha uma família pra comemorar a data. O homem sem entender do que aquele estranho falava, com olhos arregalados segurava o chapéu com as duas mãos encostado ao peito e ouvia esperando que alguma ordem lhe fosse dada para que ao cumpri-la algo pudesse ser ganho em troca. Estava com fome.

- Senhor, eu não o conheço, mas as coisas são assim. Tome, leve sua família pra casa, acredito que isso possa ajudar. Se estiverem com fome, compre algo para seus filhos, não coma restos... e volte pra casa... volte com sua família para a sua família... - ele retirou o envelope do bolso e deu ao homem. Apertou-lhe a mão e voltou para o banco para continuar a olhar o mar, ainda não havia decidido se mergulharia em suas águas negras. O homem ficou parado sem nada entender, mas o Músico pôde ouvir seus passos em corrida em direção de sua família misturados a agradecimentos a Deus em voz alta.

Viu ao longe a família se abraçar entre lágrimas, guardando as coisas imediatamente, arrumando tudo e partindo com pressa deixando a embalagem com as sobras sobre a areia da praia. A menininha mais nova da família correu em sua direção e disse-lhe “Mamãe pediu pra dizer Deus te abençoe...”, o beijou no rosto e correu de volta para os pais que continuavam abraçados e chorando. Logo em seguida todos se aproximaram e lhe beijaram as mãos, ele que apenas os dizia que estava tudo bem, e finalizava com um “Amém!”.

Sentiu-se bem e decidiu mergulhar. Não sabia como aquilo tudo pôde ter acontecido num único dia, que mudança havia se operado em sua vida naquele aniversário. Em seus pensamentos ele sabia que poderiam haver muitos outros dias como aquele ou talvez não, aquele dia talvez fosse o limiar de uma nova vida. Era preciso recomeçar, e ele ainda tinha seu violão, e seu talento não o abandonara. Queria poder fazer mais pelas pessoas, por ele mesmo. Mas naquele dia sabia que muito havia sido feito por ele... e para ele.

O dia estava amanhecendo quando ele decidiu entrar na água. Passara toda a madrugada revivendo seu aniversário no dia anterior, buscando entender o que seria dali em diante. Talvez a velha tivesse conseguido o pedido de perdão... talvez a família de pedintes houvesse voltado pra casa... Talvez o melhor fosse esquecer tudo e entrar no mar. E foi o que ele fez. Tirou a camisa e de calças mergulhou num mar morno e revigorante, um mar que guardava mistérios ancestrais mas que estava ali para ele. Ao sair do mar após um longo tempo, notou algo em seu bolso, um volume que não lembrava do que se tratava. Pôs a mão no bolso e tremendo de frio retirou um pequeno saco de veludo amarrado por uma fita dourada. Retirou o laço e despejou o conteúdo na palma da mão. Cinco pedrinhas transparentes e lapidadas, de um brilho lancinante, reluziram em sua mão sob a luz tímida do nascer do sol. Um presente. Diamantes...

Ele então sentou na areia e observou o mar. Lembrou que ao tocar a despedida pra velha na noite anterior ele pensara em seu futuro, em como moldá-lo, como fazer pra que ele viesse e o abraçasse em vez de o condenar. Mas talvez aquelas pedrinhas não fossem parte do que sonhara... o que queria era algo mais, algo além... algo que elas não poderiam comprar... jamais...

Apanhou uma pedra de mar na areia e a colocou dentro do pequeno saco, amarrou-o com força e o arremessou com ainda mais força em direção ao mar. A chave da felicidade para muitos afundou e em instantes era apenas uma lembrança... uma prova vencida...

Vestiu-se ainda molhado, tomou seu violão e partiu para um novo dia de trabalho, quem sabe ainda poderia continuar salvando vidas à sua maneira. Talvez visitasse sua família... sim...

A Música, o sorriu orgulhosa...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 14/07/2021
Código do texto: T7299266
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