Estranhos-Alison Silva- Conto premiado em 2° Lugar Troféu Jacaré

Nunca imaginei viver uma pandemia, assim como nunca imaginei conseguir ter de tudo um pouco do que eu desejei. Você pode conquistar as maravilhas do mundo, quem ou o que você quiser. Mas mantê-las em suas mãos não depende de você, nem do seu poder aquisitivo. As coisas acabam, ficam velhas, viram pó ou passado. As pessoas são mais breves ainda, se vão, quando encontram outra pessoa, outra rua, outra história para viver.

-É isto o que esta acontecendo com a gente?

-Não, não é!

-Então o que é?

-Não sei.

Lembrei-me então de quando nos conhecemos, apenas nos encontramos num piscar de olhos e tudo parecia tão familiar, que parecia que sempre nos conhecíamos... Levantei para olhar no espelho, olho no olho, querendo encontrar uma resposta. Mas minha visão embaçou e nos vi dançando, como um casal apaixonado, como uma xícara de café bem forte e bem quente, hoje nossos beijos são frios nossos abraços sem braços.

Queria poder encontrar aquela rua novamente, aquela placa torta com o nome daquela rua, queria encontrar aquela esquina de onde você saiu, queria te conhecer de novo, mas acho que nunca conheci. Naquele momento o pensamento ficou eufórico, e perguntei:

-Eu te conheci de verdade?

-Mas é claro que sim, tão verdadeiramente como você se conhece.

Mas pensei que as pessoas sempre partissem, ou para a morte, ou encontra um norte, onde a intimidade que dividiram em um, se torna passado, estranhos num encontro coincidente, como naquele dia que nos encontramos no ônibus, a vi passar por mim, sem me olhar, nem eu olhei, apenas passou, sentou, e eu levantei e desci. Então me disse:

-Aquele dia já faz muito tempo.

-Mas para mim, não. Para mim parecia que foi ontem a última noite.

-A última noite é esta.

A partir daquele momento comecei a suar frio, minhas mãos tão trêmulas, que mal podia segurar o copo, que caiu e despedaçou-se. A madrugada estava avançada, silenciosa e calma, fria, tão fria quanto aquele teu olhar. Meu medo viraram lágrimas e fui para o banho. Sem acreditar, e sem sentir as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Não lembrava mais onde a havia deixado, se no quarto ou na sala, ou na cozinha. Não sabia mais naquele momento quando havia partido de mim realmente.

-Mas você me deixaria partir. Você deixou as portas, as janelas abertas, tão abertas quanto quando o céu está azul.

-Mas hoje eu as fechei, assim como o céu desta noite estão fechados.

Naquele momento de estranheza, observei-te, e não a reconheci, pois não estava mais em mim ou eu não estava mais em você. Estava tudo tão estranho, que sai do chuveiro, me sequei, fui até a cozinha, abri mais uma garrafa de vinho, e bebi mais um copo. Percebi minhas mãos trêmulas ainda, e meu suor frio. Me disse:

-Se você me quer, me beija como bebe este vinho.

-Não posso, nunca pude, estou em quarentena.

-Mas você já não me tem? Já não me conhece?

-Sim, mas eu não posso.

Acho que o amor tem dessas coisas. O amor cria uma ilusão surreal; naquela noite, fazia um ano que ela tinha ido embora. E depois daquela taça, quando acordei, pensei que tivesse sido um pesadelo, mas a xícara de café estava à mesa, o copo vazio, a toalha no chão e eu estava nu. Só você não estava mais e nem esteve na última noite, eu estive comigo, estranho, como somos hoje, dois estranhos e seu nome, agora deve ser Solidão.

Alison Silva

Jacareí/SP

O prêmio Troféu Jacaré é realizado pela Academia Jacarehyense de Letras de Jacareí/SP

Alison Silva
Enviado por Alison Silva em 04/07/2021
Código do texto: T7292332
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