Signore Garibaldi Cabernet
O Ford Ka 2015 deixava o motel, parando uns poucos metros depois, em frente a uma padaria. Ricardo saiu do carro. Foi até sua moto estacionada. Antes de colocar o capacete, voltou-se para Jéssica, levantou a mão timidamente, despedindo-se. Jéssica não o olhou, ela nunca o olhava depois do sexo. Jéssica, com as mãos cravadas no volante, logo seguiu seu caminho, abandonando Ricardo com sua moto, sua mão estendida, sua solidão.
Jéssica passou direto pela Avenida Padre Anchieta, ladeada por pequenos sobrados de ambos os lados. Mais alguns metros, e dobrou a esquerda, chegava a Avenida Piraporinha. Muito mais movimentada que a anterior, os sobrados rareavam e a paisagem ia sendo dominada por pequenas fábricas, lojas de autopeças, alguns supermercados. Sua mente, como sempre acontecia, começava a imaginar que algum conhecido a teria visto saindo do motel. Impossível. Ninguém a conhecia naquele bairro. Alguém na padaria, talvez? Ricardo hoje estava estranho. Não importa.
O Sol ia sendo coberto por pesadas nuvens negras, o dia ensolarado ia se tornando, pouco a pouco sombrio e triste, uma fina garoa principiava em seu árduo labor de encharcar a cidade. Decidiu parar num supermercado. Uns poucos cães vadios perambulavam em meio aos carros no estacionamento. Mendigavam um pouco de comida ou carinho. Jéssica, indiferente, passou pelos animais, buscou um carrinho. Entrou no supermercado. Demorou-se bastante na sessão de doces, comprou um chocolate, depois foi a parte onde ficavam os vinhos. Presenteou-se com um tinto. Garibaldi Cabernet. Agradável, aveludado, suave. 120 reais. Antes de sair do mercado, revisou o celular, duas mensagens do grupo do trabalho. Ela era gerente, Ricardo trainee, bonito e esforçado, uma bela carreira pela frente. Ligou para o marido, perguntou se ele queria algo do supermercado. Já estou indo para casa. Sim, aquele vinho para hoje a noite, está fazendo um jantar especial, amor? Talharins? Amo. Desligou o telefone. Foi ao caixa, pequena fila, pagou no crédito.
Passou uma vez mais pelos cães, entrou no carro, deixou as compras no assento do passageiro, revisou o celular novamente. Duas novas mensagens no grupo da família. Deixou o supermercado, enfrentou um pouco de trânsito no caminho para casa. O marido já a estaria esperando para jantar, conversas rotineiras. Como foi seu dia, amor? Ele insultaria o chefe como sempre faz nas segundas-feiras, nos outros dias, esperançado com o fim de semana que se aproximava, ia mais ou menos se conformando com a vida. Na sexta até elogiava o carrasco insultado da segunda. Queria ter um filho, um filho com a carinha de Ricardo e a barriguinha do marido. Sempre gostou de homem com barriga. Barriga e barba. Ricardo era desprovido das duas coisas. O jovem quase imberbe tinha o corpo trabalhado pelas longas horas na academia.
Acercava-se as cinco torres de edifícios que emergiam solitárias em meio às muitas casinhas carentes de reboco e pintura. O apartamento foi comprado assim que o casal mudou-se para São Paulo. Ela era paraibana, sobrinha-neta de Ariano Suassuna, ele das Alagoas. Conheceram-se na federal de Campina Grande. Queria trocar o piso do apartamento. Tacos de madeira. Nas férias iriam para Maragogipe, onde o marido tinha uma casa, herança do pai, morto anos antes numa briga por terra no interior do estado.
Jéssica passou horas dando voltas em torno dos edifícios, e já era noite quando decidiu tomar o acesso à Imigrantes. Sentiu-se aliviada a cada quilômetro em que se distanciava do apartamento, do marido, de Ricardo, que já deveria estar na casa em que compartia com uma amiga em Santo André.
Seguiu por muitos quilômetros pela rodovia, cruzando a Serra do Mar, com sua mata exuberante iluminada pelo lua, e imaginava como seria bom passar a noite na praia, em companhia do único que realmente necessitava: o Signore Garibaldi Cabernet, que, feliz, a observava por um buraco no saco plástico, acomodado no banco do passageiro.