Vida adulta: copo de veneno
A vida possui uma característica incrível de moldar as pessoas de acordo com o meio em que vivem. Assim foi com Fran, uma criança muito sensível aos assuntos mais delicados possíveis e aos temas mais diversos. Fran, de Francisca, gostava mais de seu apelido, pois acreditava que a pequena sílaba ao ser pronunciada corria solta entre os lábios do enunciador até o ouvido do interlocutor. Pois então, assim seja, Fran.
Fran nasceu em uma fazenda, que se localizava na saída de uma cidadezinha pequena e cheia de mistérios. Criada por suas tias, Marta e Zilda, entre flores, chás e muito trabalho. A fazenda era coberta por plantações das mais variadas flores. Os cheiros se confundiam, mas a beleza da vista era inconfundível. As tias de Fran trabalhavam duro para manter aquela plantação e mantinham os recursos do casarão por meio das vendas dessas flores, possuíam um pequeno salão bem enfeitado - lógico que fora por Fran - na frente da fazenda, onde criavam buquês e Francisca escrevia lindos cartões para os amantes perdidamente apaixonados da cidade.
O pequeno salão possuía as paredes pintadas de bege com detalhes dourados que proporcionavam um ar de cômodo real. Fran também acreditava na majestade das flores e confiava que a escolha dos objetos foi perfeita. As flores chegavam separadas por cores, dessa forma, deixavam a criatividade de Fran para combinar lindos buquês que faziam fama em toda a cidade. E por mais que não pareça, ela tinha apenas 14 anos, mas já conhecia cada palmo da fazenda como se fosse o seu próprio corpo e manuseava as plantas como se penteasse os seus cabelos. Sempre gostou das cores e da beleza das formas, sabia combinar tudo que encontrava em sua frente, até mesmo com as palavras ela possuía um controle surpreendente.
Apaixonada pelos livros e pelas histórias de amor que eles contavam, acreditava em cada palavra. Não duvidava dos sentimentos das pessoas e depositava uma confiança certeira em tudo o que falavam, principalmente nos causos de amor. Escrevia as cartas com suas letras desenhadas com o maior respeito e admiração, sentia-se completa ao dar materialidade às palavras que antes eram apenas sentimentos nos corações.
A grandeza do seu coração era de espantar, pois além de amar o seu ofício, uma parte significante de seus sentimentos era reservada para um jovem o qual ela dedicava inúmeros poemas e horas de seus pensamentos. Era só imaginar o seu rosto que o seu corpo era invadido por uma descarga de sentimentos, carinho, paixão, ardência e aquele calor que somente os adolescentes conseguem sentir.
Francisca conheceu este rapaz na escola, mas sua timidez sempre a impediu de conversar e confessar todo o seu carinho. Ainda não havia chegado ao amor. Os sentimentos, como uma semente, ainda estavam brotando em seu coração, mas a garota já sabia que regando todos os dias, em breve, aquele amor iria florescer. O seu trabalho era uma forma de construir essa paixão, escrevendo cartões e criando poesias. O ofício a deixava distraída, era um dos únicos lugares em que ela conseguia se abstrair de todos os problemas, amores e dores.
Em uma manhã de domingo, acordou bem cedo, sabia que o movimento seria grande, pois aos domingos os amantes sentem-se à vontade para declarar seus amores. Organizou seu quarto, como de costume, e passou horas se enfeitando e escolhendo a sua roupa, sempre falava que precisava estar em perfeito estado ao manusear os sentimentos dos outros. Era questão de respeito. O café da manhã não era a parte mais agradável do seu dia, tinha que dividir a mesa com suas tias e ouvir horas de reclamações sobre os negócios e quando essas reclamações acabavam mudavam de foco para o comportamento de Francisca.
— Você bem sabe que esse batom forte não combina com você. - Marta pronunciava essas palavras sem olhar para Francisca e sua boca arqueava de nojo.
— É impressionante como você decide usar esses sapatos justo hoje, que você sabe, que o movimento é intenso. Antes de ir ao salão vá até seu quarto e tire. - Zilda, a mais velha, falava com autoridade.
— E já aproveita e tira esse batom horroroso.
Francisca suspeitava que suas tias, por não serem mais jovens, queria destruir a sua adolescência. Elas sabiam que a garota não dava um pingo de trabalho com namorados e muito menos com festas e passeios na cidade. Fran subiu até seu quarto e obedeceu às ordens de suas tias.
Ao entrar no salão, acendeu seu incenso para deixar o clima pronto para receber os clientes e se olhou no espelho admirando sua imagem, olhando bem no fundo de seus olhos e pedindo para que o dia fosse produtivo.
O primeiro cliente entrou como um furacão. Cabelos pretos, pele clara e uma roupa de quem estava saindo da missa. Fran, antes de olhar o rapaz, sentiu seu cheiro. Conseguiu reconhecer quem era com apenas uma respiração profunda. Sentiu que algo era diferente naquele cheiro e ao virar-se ficou encantada com o que tinha visto.
— Francisca? - Uma voz doce, baixa, quase um sussurro percorreu o salão até chegar aos ouvidos atentos da menina.
— Por favor, pode me chamar de Fran. - Surpreendeu-se de como sua voz saíra estranha, baixa como a do moço, mas com uma leve insegurança.
— Fran, cheguei bem cedo para que ninguém ouvisse o que eu tinha a lhe pedir.
Francisca voou com seus pensamentos. Nunca teve medo dass palavras em seu próprio ambiente de trabalho, ali era o espaço onde ela dominava tudo e a todos, entretanto, dessa vez foi diferente, perdeu o controle de seus pensamentos, da firmeza de sua voz e dos seus sentimentos.
— Pode falar, em que posso ajudar.
— Peço, com todo carinho, que você entre em seu jardim e escolha as flores mais lindas que tiver em sua plantação. Faça um arranjo gracioso e, por favor, não economize em seus talentos para deixar esse buquê incrível. - O rapaz olhou para trás para conferir se ninguém estava olhando e continuou - Também sei que você escreve os melhores cartões da cidade, a galera fala muito disso, quero que você escreva um cartão se declarando para uma pessoa, finja que é você quem está apaixonada e está se declarando, pode usar toda a sua magia com as palavras, use o poema que achar mais conveniente.
O rapaz falava de uma só vez olhando os olhos de Francisca, esta percebia a súplica em seus olhos e não movia nem um milímetro de seu olhar.
— Irei entregar para uma pessoa que sou perdidamente apaixonado há anos, mas não tenho coragem de dizer. A minha primeira confissão será por meio de seu cartão. O meu primeiro contato está em suas mãos. Pode anotar o nome dela?
Aquelas últimas palavras ecoaram em seus ouvidos, em sua cabeça, em seu coração até chegar em sua alma. O nome que ele disse não era o dela.
Explosão! Seus sentimentos explodiram e irradiaram em suas atitudes. Depois que o alvo de seu maior carinho disse as últimas palavras e saiu, deixando aquele cheiro inebriante no salão, Francisca correu para o seu jardim e começou a escolher as melhores flores possíveis. Colocou as luvas e pegou a tesoura apropriada para cortar as flores mais delicadas e foi até a sessão das flores brancas colhendo duas e depois flores roxas, colhendo cinco. A dor que sentia estava comandando cada ação, ela sabia que aquele buquê não seria enviado para ela, mas fazia questão em organizar muito bem para surpreender o rapaz.
Ao retornar ao salão, iniciou a montagem do buquê escolhendo os melhores recursos que encontrava. Uma fita lilás juntou as seis flores com um selo específico para amantes, com um desenho de cupido. Retirou do armário um cartão dourado e tentou retirar de sua memória o mais lindo poema que representasse as características que o rapaz havia falado.
Quando iniciou a escrita do cartão, não conseguiu segurar as lágrimas que caíam devagar, mas que conseguia limpar com as costas da mão antes que caíssem e estragassem a beleza de suas letras. Cada palavra escrita representava uma punhalada em seu coração, a dor por ser dispensada era tão grande que machucava o seu físico. O homem que desejou outros dias e em quem depositava todos os sentimentos de paixão e carinho, não sabia de sua estima e ainda desejava outra pessoa que não fosse ela.
Terminando de escrever passou para a revisão, momento em que as lágrimas já secaram e a dor começou a se transformar em amargor. Um gosto terrível percorria sua boca e ia se expandindo para os outros sentidos, seu olfato e depois o seu coração. Pegou um copo de vidro cheio de água que estava na bancada e tomou. Bebeu esperando que tirasse o gosto amargo da boca, mas a vida adulta já havia apresentado o seu sabor.
O veneno do desprezo já fazia parte da sua história Toda a sua sensibilidade com as flores e com seu ofício de florista seria encharcado com essa nova sensação. É estranho como a vida, com o passar dos anos, começa a apresentar seus espinhos e junto com eles o sangue que escorre de nossa alma ao tocá-los. As cicatrizes são eternas. Nem o desamor de suas tias haviam pesado em seu coração, mas naquele momento sentiu um punhal entrando em seu coração e que não havia sido retirado, ainda permanecia em sua carne, fazendo sangrar e depositando o líquido da vida adulta: seu primeiro abandono.