Você me daria um beijo?
Poderia ter sido apenas mais uma noite de trabalho no bar Tróia, mas foi a noite da minha vida, a noite que mudou tudo que eu pensava sobre o mundo e sobre mim. A noite que me transformou em quem sou.
Eu estava, como de rotina, servindo bebidas aos clientes do bar, frequentadores da deusa noite, quando a deusa da minha vida surgiu entre os olhares noturnos. Lá estava a linda morena, jovem como eu, magra, de longos cabelos negros. A nova contratada da casa para atender as pessoas nas mesas.
Ela chamou minha atenção desde o primeiro momento em que meus olhos viram sua luz. Com destreza de menina, a jovem caminhava entre as mesas e, atenciosamente, atendia um a um. Mal sabia ela que, um dia, estaria sendo servida pelo meu eterno amor.
No clube, no canto do recinto, todas as sextas-feiras uma banda de música popular tocava para os corações boêmios. A maioria do repertório consistia em clássicos das rádios. Eu escutava a cada som, enquanto desejava, cada dia mais ardentemente, dividir uma dança e a minha vida com a dona do ritmo de meu coração. Porém, uma canção em especial mexia muito comigo, e com minha flor da noite.
Lembro até hoje da letra do refrão, que dizia: “corações soando num só ritmo, você me daria um beijo?”. Cada vez que os músicos executavam essa parte da letra, involuntariamente, eu olhava para a menina, e ela sorria sozinha. Seu sorriso solitário suscitava dúvidas, pois será que seu rosto alegrava-se por pensar em mim? Será que emanava sua felicidade por alguém que recebesse seu amor, em algum lugar?
As horas passavam ininterruptamente. Eu queria apenas que o tempo parasse para dizer o que sentia. Não tinha coragem de lhe perguntar. Eu servia a cada cliente e a seu sorriso, escravo de um amor cada vez mais intenso. As luzes das lâmpadas do bar, da lua, direcionavam-se apenas para ela, mesclando-se ao brilho daquele olhar.
Como eu queria ser aqueles clientes, e ouvir a doce voz da minha menina, da minha musa. Como eu queria ser a comanda na qual ela anotava os pedidos, com suas mãos suaves. A garota atendia os clientes, mas sem saber, ela já marcava meu coração e minha vida.
Numa noite, com o peito explodindo uma canção de amor, a banda começou a tocar a música que a fazia sorrir:
“Corações soando num só ritmo, você me daria um beijo?”
Num gesto inesperado e desejado, finalmente nossos olhares se cruzaram. Pela primeira vez pude olhar no fundo dos olhos da garota e, em silêncio ardente gritar: eu te amo. Desta vez, seu sorriso lindo eu sabia que foi entregue a mim.
Estimulado pela situação, discretamente, peguei um guardanapo sobre o balcão, e nele escrevi: “você me daria um beijo?”. E quando ela estava no balcão ao lado, entregando a comanda de um grupo de clientes na cozinha, dei a ela o papel, saindo para não atrapalhar seu trabalho, nem o meu, nem minha ânsia por um sim apesar do medo de um não.
No final do expediente, eram quase seis horas da manhã. Eu estava fora do bar esperando o transporte, a fim de voltar para casa, triste por não ter recebido nenhuma resposta da moça. Será que já tinha um namorado? Será que tinha alguém que a amasse como ela deveria ser amada? Mais perguntas sem respostas...
Meu ônibus foi chegando, ajeitei minha mochila nas costas e, logo atrás de mim, aveludadamente, ouvi:
- Sim...
Naquele momento, nos beijamos. Senti meu coração explodir no peito. Suas mãos, incrivelmente, tremiam como as minhas, e aquele beijo marcou o verdadeiro começo da minha vida.
Foi o início de uma linda história. Juntos, tivemos um namoro com flores e espinhos. Conhecemos de perto o amor, e provamos o gosto de sua dor. Lado a lado, aprendemos que a vida é ser feliz, e ter um ao outro era poder realizar esse desejo. Descobri seu medo de escuro, e ela descobriu que costumo deixar as coisas atiradas por aí, e às vezes nem sei onde procurar o que preciso. Ela cansou de me explicar que os preços estão sempre em alta por causa dos impostos, e eu ensinei tudo sobre futebol, mesmo sabendo que ela não lembraria de muitos detalhes até o próximo jogo.
Visitamos nossas mães, nossos tios, primos e dormimos em várias casas. Um dia, resolvemos ter nossa casa, e nos casamos.
Deste casamento, nasceu uma menina morena e linda como a mãe, e juntos fizemos mais inúmeras descobertas: trocar fraldas, ensinar a pequena a caminhar, falar, vestir, alimentar, brincar e voltamos a ser crianças. Três crianças felizes sobre o tapete, a cama e nos parques da cidade. Nossa vida era nossa linda filha, para a qual todas as noites contávamos, juntos, uma história sobre fadas e príncipes sobre cavalos brancos, sobre reis e rainhas e sobre o dia que nos conhecemos e nos demos o primeiro beijo no nascer da madrugada.
Quando dávamos boa noite para nossa menina, chegava a hora de descansar. Nunca dormíamos sem nos dizer “eu te amo”, e agradecer pelo amor que um sentia pelo outro. O grande amor que ela sentia por mim. O eterno amor que sinto por ela.
Uma tarde, enquanto eu trabalhava, minha linda mulher estava indo buscar nossa filhinha na escola. Era véspera do dia das mães, e a pequena ansiava que sua mãe a buscasse para receber uma lembrancinha, feita por ela.
O trânsito do final da tarde era intenso, e ela aguardava, com os olhos transbordando emoção, para que o sinal do semáforo fechasse logo, e ela pudesse atravessar a rua, abraçar nossa menina. Finalmente ficou vermelho e, no meio de sua travessia, um carro desgovernado, dirigido por um homem alcoolizado, ignorou a sinalização... Já faz dois anos.
Hoje minha filha e eu vamos levar flores para a mamãe, e dizer para ela que todas as noites, a eterna pequena continua dizendo “boa noite mamãe” antes de dormir, e que eu, a cada final de madrugada lembro dela. Eu levo as flores para que ela lembre de mim, e saiba que direi eternamente que a amo, escrevendo, em bilhetes no meu coração, como da primeira vez:
“Você me daria um beijo?”