A última carta
Tu não respondeste nenhuma das minhas cartas, corujinha. É uma pena, uma vez que aqueles foram, um dia, meus mais sinceros sentimentos.
Os acontecimentos deste último mês foram bem conturbados, e hei de expô-los aqui, apesar de não esperar tua leitura, ou tua resposta.
Após as coisas que escrevi em minha última mensagem, voei rápido como uma flecha. Cortava o vento violentamente, enquanto ele, em sua ira, cortava-me de volta.
E este foi meu erro. Em minha euforia por tudo que aprendi, esqueci minhas próprias feridas, que, mesmo cicatrizando, não estavam completamente curadas. E em meio ao turbilhão, todas se abriram.
Brutalmente, fui arrancado dos céus e arremessado ao solo.
Caí em cima duma negra lama. A lama da culpa. Minhas fraquezas estavam novamente expostas, e agora cá estava eu, após tanto esforço, coberto de sangue e escuridão. Mas esta escuridão me era conhecida, esta já fora parte de mim, antes mesmo de te conhecer.
A força do impacto foi brutal. Por dias e noites, mantive-me deitado, estupefato, olhando para o céu. Buscava as estrelas, mas a escuridão cobria meus olhos.
A lama me revestia, e quanto mais eu me debatesse, mais era arrastado para o fundo. Aceitei as sombras e passei a ver por seus olhos. Meu sangue se unia à gosma negra, formando uma massa viva familiar.
Minha alma era sugada, junto de mim, enquanto sentia minha vida se esvair a cada segundo. Meu semblante se tornara vazio, e meus olhos já não brilhavam. Eu estava morto por dentro.
A culpa me consumia, levava tudo de mim. Nada mais me importava, uma vez que minha atitudes me trouxeram até aqui. Minha garras.
Minhas asas doíam uma dor familiar. A dor da alma, que eu não sentia à tempos.
Posso te dizer sem exagero algum, que a morte me pareceu a única saída daquele inferno em minha cabeça. Viver envolvido de culpa não seria mais uma vida, nem mesmo uma sobrevida. Seria uma morte consciente. E a consciência me levaria à loucura.
Tudo o que eu havia feito, todos os meus erros e todas minhas fraquezas, martelavam constantemente. Um barulho ensurdecedor.
Em meio à essa sinfonia de terror, a lama se levantava, agora viva, graças à meu sangue. Num vórtice sombrio, formava a figura familiar de uma ave.
A culpa agora era um corvo. A culpa agora era eu mesmo.
Encarei as sombras, estupefato. Enquanto isso, elas, que alçavam voo, agora desciam em rasante, na minha direção.
Violentamente, a ave me atacava, ferindo meu corpo, arrancando minhas penas que restavam. A criatura bicava e arranhava com ainda mais afinco as feridas previamente abertas, pois sabia que lá doía mais.
Eu não possuía mais forças. Deixei-me levar. Que esse fosse o fim de uma existência miserável. Uma existência que trazia mágoa e dor àqueles ao meu redor. A existência que te feriu certa vez, pequena.
Enquanto essas coisas aconteciam, pude ouvir, dentro de mim, as palavras daqueles que estiveram comigo durante todo meu percurso nesses últimos meses.
Suas palavras iam, aos poucos, iluminando as trevas dentro de mim.
Aquela culpa não era minha. A verdade é que me amei muito pouco durante todo esse tempo, coruja. Me suprimi, me critiquei, me agredi. Nunca busquei olhar para que eu realmente era, olhando somente para meus erros, olhando somente para aquelas trevas, que na realidade eram fruto de minha insegurança e medo.
Aquilo nunca fui eu. Aquela foi a visão deturpada que as sombras me deram. Mas agora eu vejo. Naquele momento eu vi.
Retirando força das vozes, reagi impetuosamente. Eu não deixaria que aquilo me derrubasse nunca mais. Nunca mais eu seria enganado daquela forma. Ninguém pode me negar o que sou. Nem eu mesmo.
Após uma longa e brutal batalha, a lama negra foi dissolvida, e as trevas acalmadas. Sim, acalmadas, pois até mesmo aquilo é parte de mim. Uma parte que devo olhar com carinho e cuidar para que não machuque a mim, ou à ela mesma. No fim das contas, abracei mais essa parte de mim mesmo.
A culpa foi dissolvida, pequena coruja. Agora eu entendo que fiz tudo o que eu podia para que voássemos juntos. Fiz tudo o que podia para me tornar melhor, buscando que mais uma vez nos empoleirássemos juntos, observando a magia do mundo.
Eu fiz tudo o que podia, e por isso me despeço agora, com certeza no olhar e a consciência tranquila. Tu teve tudo o que eu era capaz de dar. Mas minha falta de amor próprio me fez duvidar de mim mesmo, e assim me perdi.
Com tudo isso em mente, querida, percebo que não posso mais voar em tua direção, tampouco na direção oposta, pois nas duas formas, teria você como referencial.
Nem para um lado, nem para um outro. A partir de agora, devo voar para onde minhas asas desejarem. Voarei para onde eu quiser.
Não há ventos que decidam por ninguém que seja. O amor é somente uma decisão das pessoas. A decisão de cuidar, a decisão de estar próximo.
Não estamos destinados a ficar juntos. Não estamos destinados a estar separados. Não há nada como destino nesse mundo. Tudo o que há são escolhas.
Você tomou sua decisão, e agora tomo eu, a minha. Te desejo toda a sorte do mundo, porque acima de tudo, sou muito grato por ter te conhecido.
Voar contigo me ensinou muita coisa. E todas essas coisas me fizeram quem sou agora.
Muito obrigado, corujinha.
Com olhar renovado, declaro agora, pequena:
Esta é a última carta do Corvo para a Coruja.