AMOR A MODA ANTIGA

A beira de uma fogueira, sob a luz ofusca do fogo e brilho do luar, em um terreiro arenoso, jovens se distraem a jogarem conversa fora e brincar. Ali estava João, moço humilde, cheio de palavreado; entre as jovens, Dos Anjos, moça bela, recatada, seus cabelos negros como a noite da cintura já passava, seus olhos verdes e cintilantes brilhavam como vaga-lumes, sua pele branquinha, as bochechas sempre a corar. Ao que parecia aquela era só mais uma noite comum para festejar São João como de costume ano a ano.

Entre histórias, quadrinhas e brincadeiras era tradição aproveitar a ocasião para fogueira passar. Naquela noite de comemoração alguns passavam a ser padrinhos e afilhados, outros compadres e comadres, primos e primas, noivinhos e noivinhas... Em meio à folia, sem desconversar a prosa que se alongava, João convida Dos Anjos a fogueira passar, ela o olha profundamente querendo a intenção desvendar, hesitou, mais em honra a uma amizade construída na infância não poderia deixar João, seu amigo desfeita passar.

E entre palavras trêmulas lhe pergunta:

- E como vamos nos chamar?

Ele com um nó na garganta por medo de ter seu convite recusado pensou que nem pensou, entre palavras desalinhadas, medrosas expôs-lhe o menor dentre os desejos:

- Podemos nos chamar de meu primo e minha prima se ruim tu não achar. E entre acordo e aprovação dos colegas a fogueira foram passar.

“São João dormiu, São Pedro acordou, vou passar fogo com Dos Anjos para ser minha prima, porque São João mandou”.

“São João dormiu, São Pedro acordou, vou passar fogo com João para ser meu primo, porque São João mandou”.

Três vezes repetiram aquela “oração” para o voto sacramentar, aquela amizade de crianças naquele instante esteve a selar.

O tempo passava, aqueles amigos agora “primos de fogueira” cada vez mais amigos, confidentes. Dos Anjos era de João sua amiga e escoteira, levava seus recados as pretendentes, escondia suas trapaças, o defendia com maestria. João, de Dos Anjos era seu capataz, conhecia seus preceitos e propósitos de moça donzela, por isso não deixava folgado nela se encostar, dava palpite e foras para engraçadinho que dela quisesse se aproximar.

João cada vez mais moço passava horas a pensar, no que fazer para de vida mudar, pois tinha muitos sonhos naquele pensar juvenil. Sua infância de menino pobre que escapou a água e farinha, de comer de favor, de ver seu pai trocar suor de uma semana por café, sal, alho e rapadura; entristecido de ver sua mãe lavar, passar, cozinhar e até o filho da comadre amamentar para trazer para casa um punhado de feijão, um pedaço de toucinho e uma cuia de farinha. Olhava desolado aquela família grande, o irmão mais velho já casado morando na mesma casa de taipa e uma nova família se gerando na varanda, e ele mesmo sendo o caçula desejavam tomar outro rumo. E adivinha a quem João opinião vai tomar?

Como era de costume em todo entardecer, andasse por onde andasse, cansado ou descansado, jamais poderia dormir sem na casa de Dos Anjos passar, ás vezes para trocar uma prosa ou simplesmente saber como aquela estimada família estava. Naquela noite o propósito era outro, precisava de um conselho daquela amiga de confiança apesar de já ter consigo uma decisão tomada, precisava de um apoio, de um incentivo ou talvez um consentimento.

Naquele entardecer de agosto, céu azul, desesperançoso, por do sol a laranjar, seguiu a passos miúdos sem saber por onde a conversa começar. Desta vez chegou pensativo sem nada a festejar, deitou-se sobre uma esteira que no terreiro sempre havia de estar, a família daquela casa ainda estava à janta a cear, lhe convidaram a entrar mais João lá fora preferiu ficar a contemplar o dia a se ir e a noite a chegar. Terminando o jantar, um a um no terreiro ia se acomodando e entre uma conversa e outra Dos Anjos de longe observava, via que alguma coisa a seu primo João inquietava. Sua irmã mais velha Luiza amiga de João também era e inquietou-se a perguntar:

-Joãozim, (como carinhosamente o chamava) está acontecendo alguma coisa por lá? Você hoje está muito quieto. Desembuche logo, pode falar!

João, com o olhar sempre para o alto, os braços de travesseiro, com a voz trêmula decidiu logo falar:

- Estou aqui pensando em dar um rumo na vida, pois do jeito que está não vai dar.

Dos Anjos lançou-lhe um olhar de tristeza, pois pelo que conhecia do amigo a notícia não era de alegrar, conteve entre aperto no peito e olhos a marinar, com um gesto de cabeça orientou sua irmã, João investigar. Luiza também intrigada com aquele gesto do amigo retrucou novamente a perguntar:

-Vamos, pois diga logo que rumo é esse que à sua vida vai dar?

Estava ali João com o peito apertado, mais não era homem de duas conversas, encarava as situações de frente e sem mais rodeio, levantando-se para se ir falou em tom já de despedida:

-Vou conhecer São Paulo, ver o que a terra da garoa tem pra me dar. Levantou-se, deu boa noite, naquela noite não dava para palestrar. Tomou o caminho de volta inconformado com a pobreza em que vivia, estava decidido e não esperou desaprovação, nem apelos. Estava mais aliviado pelo anunciado ter feito. No outro dia bem cedo deu parte à sua família, seu pai o aprovou dizendo que o mundo é grande e ficou foi pra se andar. Sua mãe toda chorosa não se conteve a aconselhar:

-Deus te guarde e proteja meu filho! Nossa senhora seja tua companhia! Não esqueça as orações ao deitar e levantar que daqui o meu terço toda noite vou pra ti rezar e sob o olhar da virgem Maria vou te recomendar.

João mais que depressa depois de todo aperreio tratou da viagem arrumar. Tomou dinheiro emprestado para a passagem comprar, em um saco de pano suas coisas pôs a guardar, era três muda de roupa, uma alpercata, um pente, um loção e um lençol de se embrulhar, assim na mesma semana deu seu tchau a família, um adeus salutar a sua amiga Dos Anjos, seus amigos e familiares.

Durante os três dias de viagem, naquela estrada sem fim, João muitas vezes veio a chorar, lembrava da sua mãe de saúde frágil, seu pai velho e cansado, seus irmãos em tamanha pobreza e seus trapaceiros amigos de lida, caçadas e matinês, em especial Dos Anjos a quem tinha muito a considerar, mais seguiu firme no seu propósito de vida melhorar.

Chegar a São Paulo foi pra si uma grande realização, apesar dos aperreios e apuros até se adaptar, às vezes ficava zonzo com aquela correria, foi acolhido em um quartinho de pensão por amigos, trabalho nunca houvera de lhe faltar. Primeiro mês foi de escassez, saudade e preocupação mais completado os trinta dias pode, em fim, se aliviar, recebeu o primeiro salário, louvor a Deus e gratidão, tratou de mandar notícias por um amigo que de volta estava a seu lugar.

João mandou uma carta endereçada a Dos Anjos, que tinha as seguintes recomendações: Esses contos de réis são para meu pai pagar o dinheiro que tomei emprestado para comprar minha passagem, o resto que sobrar é para ele fazer uma feira, é pouco, na próxima oportunidade mando um valor acrescentado. Quero ainda minha amiga que escreva duas cartas pra mim, uma para Fatinha diga que me espere, que vim apressado não deu tempo de me despedir, a outra carta é para Francisca da Serra diga a ela pra não se casar não, senão, quando eu chegar aí vai ter separação. O mais diga a todos que estou bem.

Aquela carta trouxe a Dos Anjos alívio, conformidade. Fez tudo como João lhe pediu, afinal, a amizade supera a distância só não mata a saudade.

Passado alguns meses outras cartas já tinham vindo, algumas já tinham se ido às vezes a cada dois, três meses notícias de João se tinha. Porém há alguns dias seus amigos de quarto o percebiam muito calado e desconsolado, lhe perguntavam o que tinha, só lhes dizia que estava sentindo uma angústia no peito mais devia ser saudade. Chegou um dia do serviço ao anoitecer e tratou de tomar banho na passagem da sala para o banheiro algo estranho lhe aconteceu sentiu um vento frio arrepiar seu corpo, a vista ficou turva, a sensação de um forte abraço, naquela noite João não conseguiu jantar nem dormir.

Sete dias depois do ocorrido João estava numa cadeira a descansar quando percebeu que o carteiro por baixo da porta deixava ali um envelope, aquele fato não era comum, receber correspondência pelos correios nunca tinha lhe acontecido, com aperto no peito encarou a situação e foi examinar. Era um telegrama a ele mesmo endereçado, em poucas linhas lhe dava a notícia que explicava a tristeza daqueles últimos dias: Nota de falecimento: João sua mãe faleceu vítima de falta de ar. Assinado: seu pai.

Aquela notícia bateu como espinho cravando seu peito, chorou por longos dias, desolado, entristecido, tomou consigo uma decisão, no Piauí eu só volto se for pra me casar, pois sem minha mãezinha naquela casa não quero mais morar.

Passado alguns meses do ocorrido João voltou a escrever, desta vez a carta tinha expressa sua ímpar decisão, dizia em curtas linhas: Dos Anjos, meu recado desta vez é só dois: der notícias a minha família que estou bem, o outro é que está em suas mãos a decisão se eu volto logo ao Piauí ou não. Estou lhe pedindo em casamento, tenho por você uma grande afeição e não é de hoje, se aceitar me responda logo que vou no mês que receber sua resposta, se não aceitar não precisa me responder, mais também não sei quando aí vou pisar.

Aquela carta trouxe a Dos Anjos esperança de reencontro, cada palavra lida fazia seu coração disparar, leu por mais de vinte vezes como se quisesse naquele papel enxergar seu amigo de infância, seu companheiro, seu par. Tratou logo de sua carta responder com frases curtas e recatadas, longe dela se parecer moça fácil e oferecida. Escreveu-lhe entre outras frases: Pode vir, quando chegar aqui a gente conversa direito, sinto muita saudade de você. E neste caso pode vir, virou SIM. E agora era só esperar o reencontro para todo amor que tinham um pelo outro revelar.

Entre tantas idas e vindas, com tantos percalços que a vida lhes causara os corpos por necessidade se separaram por inúmeras vezes mais a força do amor que se sobrepõe ao espaço os uniu até a eternidade...

Malu Dionísia

Malu Dionísia
Enviado por Malu Dionísia em 12/04/2021
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