VIDA E MORTE DE VANDA
O tempo levara o sol e a tarde juntos para além do rio Parnaíba. Para além do encontro das águas. Para além das sete Marias virgens. Para além das barragens e da foz. À noite, carinhosamente, cobrira a cidade com seu manto escuro e impiedoso, cheio de lembranças com a certeza de mais um dia de trabalho acerbado. O amanhã pode ser uma ameaça, um desafio infindável, mas também se refaz em esperança constante. Uns rezam outros se desesperam e choram, mas amanhecem com o sol.
É assim que a Vila se prepara para mais uma noite de sono, tranquila para uns e de muitas preocupações para outros. Corpos suados, arfantes e cansados dos afazeres diurnos recebem a recompensa do carinho amado. O sexo parece ser a única fuga razoável, capaz de fazer o tempo parar dentro do homem por alguns segundos, e transformá-lo em rei na terra do nada. São espíritos angustiados pelas inquietudes das luxúrias pueris. São mentes fadadas que nem se olham mais, envergonham-se de si mesmas. Assim a noite vem chegando, indubitavelmente, calada empurrada pelo silêncio, como diz o poeta Drummond, “A noite é mortal, completa, sem reticências, a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer”. E é sofrendo que vamos encontrar Vanda. Sozinha, em seu pequeno quarto, chorando sobre a cama. O guarda-roupa com as portas abertas, e um lado, completamente vazio, era o indício triste de uma partida fugidia. As roupas do marido, como num passe de mágica, sumiram sem que ela percebesse. Hoje, ele não voltará de sua farra. Esta noite, e muitas outras, Vanda dormirá sozinha em sua cama, trancada em um espaço completamente desconhecido e atormentador. Não se reconheceria mais, nem mesmo como gente, porque amara mais ao outro do que a si mesma. O choro foi sumindo, pouco a pouco, porque o sentido de tudo se perdia na infinidade de tantos pensamentos. O corpo, esmaecido, vencido pelo cansaço, adormece na imensidão da cama. Pela manhã, de olhos encharcados e fixos, fita o teto como se estivesse em busca de uma explicação, a mais simples que fosse, ou mais cruel que encontrasse. Qualquer coisa, qualquer coisa que arrancasse aquela dor do peito e trouxesse sua vida de volta, o seu homem de volta. Foram tantos os anos de dedicação, sempre fazendo suas vontades, nunca lhe faltou nada, comida na mesa, roupa limpa. Era uma boa dona de casa, nunca olhou para outro homem, só tinha olhos para o marido. Sim, estava certa de ter feito tudo direito. Suportou sua bebedeira, cada vez mais constante nas últimas semanas. Seu nervosismo sem muitas explicações. Satisfez todos os seus caprichos cretinos na cama, quando chegava bêbedo. Sem dúvidas, aquele safado não tinha motivos para sair de casa desse jeito. A menos que tenha arrumado uma vagabunda por aí. Só podia ser, e que diferença isso fazia agora. Homem não presta, mesmo, disso, ela já sabia. Se alguém deveria sentir culpa, esse alguém era ele. Aquele covarde, que nem coragem teve para dar uma explicação. Não era homem, mesmo, era um covarde, UM COVARDE! Vanda se levantou rapidamente e fechou as portas do guarda-roupa com força. Depois deu uma volta pela casa como se estivesse procurando alguma coisa, ia e vinha o tempo todo agitada, com as mãos na cintura. Voltou para o quarto e viu um pedaço de papel dobrado, em cima da cômoda, feito carta fora do envelope, desdobrou-o nervosamente, e a cada palavra que lia o rosto tomava nova expressão de espanto, dor, angústia, raiva:
“Querida Vanda, não fique magoada, pois o problema não é seu. Eu é que sou um fraco. Não posso mais levar essa vida sem graça. Parece que o nosso casamento não é mais o mesmo. Não sinto mais a mesma paixão por você. Só te tenho muita amizade. Te quero muito bem.
Olha, conheci uma pessoa mais nova que realmente gosta de mim e resolvi tentar viver com ela.
Desejo que tu sejas muito feliz!
(O dinheiro do aluguel está no lugar de sempre)
Beijos de quem te gosta”
Eclésio
− Cachorro! Cachorro! Sem vergonha, safado! Esbravejava enquanto rasgava o bilhete em vários pedaços. Agora, a raiva ainda crescia mais. Depois de tudo, ainda fazia papel de homem bom e de vítima de um casamento infeliz, que ódio, ai que ódio! Se jogou na cama e começou a soluçar. O choro era de raiva daquele infeliz que não sabia reconhecer toda uma vida de dedicação, aquele bilhete era mesmo o fim, uma humilhação, ele não se conformara em ir embora, tinha que humilhar, fazer com que ela parecesse a última das mulheres, isso não ia ficar assim, não ia ficar assim, ia agora mesmo atrás do safado, cuspiria em sua cara e também na cara da vagabunda que estivesse com ele. Foi assim o dia todo, entre choros, lágrimas, lamentações, xingamentos e uma dor insuportável no peito, a dor da traição, tão implacável quanto a iminente dor da solidão e da morte. Por que não morrer e livrar-se de todo o sofrimento? Seria tão mais humano e menos cruel para o corpo. Libertar a alma dos desejos impuros de vingança e da dor do abandono. Pensou em se matar para provocar peso na consciência do covarde. Não, certamente ele sorriria da minha desgraça, melhor mesmo era ir atrás e matar os dois! Isso, mataria os dois e fugiria para algum lugar distante, lá levaria uma vida normal. Mas... E se fosse descoberta? Seria horrível, desgraçaria sua vida para sempre, tudo por um breve momento de prazer mórbido. E depois, se pelo menos pudesse, sorriria sobre os corpos, sobre os amantes infiéis e cuspiria na cara dela e se deixaria levar para o cárcere feito louca, completamente louca, insaciável de ódio e de vingança até o fim de sua vida.
No dia seguinte a notícia se espalhou pela Vila inteira. Os comentários eram inevitáveis, a fama do marido fujão já era conhecida, quem é que não conhecia? E Vanda, agora, tinha outros sobrenomes, o de coitada, que tristeza, que maldade, a bichinha. Vanda infeliz, todos os nomes e adjetivos que de melhor lhe cabiam em penúria. Ficara difícil levantar a cabeça aos olhos da Vila. Demorava em sair de casa, porta e janela fechadas. Não queria conversa com as amizades falsas, bando de traíras, era tudo covardia, gente falsa que dava nojo. Passou a detestar aquela gente idiota, que cuidassem da própria vida e deixassem-na em paz, essa seria a resposta, a mudez e o desprezo por aquela gentinha.
Assim os contristados se revezavam de casa em casa. E havia os que já sabiam com certo gostinho de prazer: “Eu já sabia”, “Estava na cara”, “Só um cego não via”, “Eu ainda quis avisar, mas não sou de fofocas”.
Foi ser consolada pela amiga Lúcia.
− Ele foi embora porque não prestava mesmo. Não merece você. Quem já se viu, abandonar uma mulher feito você? Eu aposto que essa outra zinha deve ser uma piranha de vida fácil. Homem é mesmo tudo igual. Mas por sorte que você ainda é uma mulher jovem, pode tocar sua vida de outro jeito, sem depender desse cafajeste. Se você precisar de alguma coisa pode pedir, eu vou ajudar no que puder, mas não fraqueja, não, que homem não merece choro de mulher alguma, é tudo uma cambada só, é só ver uma perna grossa e sai tudo correndo atrás, e se eu já sabia não te contei só pra não te magoar, mas morria de vontade. Naquele dia, sabe, que a gente conversou até tarde, lá no quarto, mas como é que eu ia te contar, podia, hem podia? Tu não ia ouvir, ia? Eu sei que não ia, mas agora te dou todo apoio. Ai minha amiga, não fica assim, levanta essa cabeça mulher.
Vanda não respondia, ficava calada, com olhar perdido, distante, mas tinha uma certeza, queria se vingar, não tinha amigas... queria bater naquele desgraçado até não poder mais levantar as mãos, até a exaustão completa. Mas não se perdoava por ter deixado tudo acontecer bem debaixo do seu nariz, sem que desconfiasse de nada. Tudo agora começava a fazer sentido, as peças começavam a se juntar. Toda aquela indiferença na cama. As brigas sem motivo aparente. A falta de carinho ao sair e ao chegar do trabalho. A falta de atenção nas conversas, impaciência, intolerância com coisas pequenas, perguntas sem respostas, a desconversa sem nexo. Há meses que não saíam juntos, há meses que não ouvia um só elogio, uma gentileza por mais simples que fosse. Aquele namoro gostoso, os flertes do dia a dia. Já não caminhavam mais de mãos dadas, nem se quer almoçavam mais juntos. Era cada um no seu canto. Foram tantas as pistas que não quisera ver o quão difícil seria enumerá-las. E outra vez veio a autocondenação.
− Eu sou uma burra, mesmo. Como é que não desconfiei de nada.
− Essas coisas não têm como a gente saber. Homem é bicho danado, retorquia Lúcia, na intenção de confortar sua amiga, Deus há de ajudar, tenha fé, mulher. Homem a gente arruma em todo canto, e bem melhor do que esse. Pare com essa cara de choramingado que ele não merece, e não fique se culpando que a vítima aqui é você. Foi assim o dia todo, Vanda procurava motivos para se culpar, porque achara mais fácil se culpar por algum erro ou descuido no trato com o marido, era o seu único mecanismo de defesa para encobrir as verdades outras, reprimir a sua farta gordura, o desleixo doentil, a indolência com a própria aparência, era muito difícil mesmo admitir as mudanças, por outro lado aquele homem também não era mais o mesmo, ficara irreconhecível, bebia demasiadamente, era obsceno, pegara a mania de soltar gases pela casa, e quando fazia amor era bruto, só se preocupava com ele mesmo. A costureira correu até o armário, pegou uma caixinha de sapatos e de lá retirou vinte e cinco reais e rumou para a casa da cartomante.
− Olha aqui minha filha as cartas não mentem se veio aqui só pra especular não tenho tempo pra isso, eu te avisei do perigo que tu corria, não quis me ouvir, agora é tarde, o que tá feito tá feito, minha filha.
− Por favor mãe Diná, olha, eu trouxe o dinheiro que a senhora pediu, posso até pagar mais, mas eu preciso saber daquela desgraçada que roubou meu homem, senão não fico sossegada, tenho que tirar isso da cabeça...
− O que tu tem aí agora, minha filha, é um par de chifres, mas olha, vou te ajudar, mas o valor agora vai ser maior, bem maior. Faço trabalho bom de amarração definitiva e teu homem volta mansinho mansinho. Espera só sete dias que é o tempo que os Orixás precisa. Tu fica tranquila, aqui não, lá no terreiro do pai, lá os Orixás são mais fortes, pega aqui a relação do material que precisa, Iansã guerreira resolve o teu caso, minha filha, ela tem ajuda de Xangô, vai dar tudo certo.
− E o nome dela, eu quero o nome dela, a safada tem que sofrer algum mal, tem sim!
− Isso eu não faço, já é por tua conta, não trabalho com essa coisa do mal, isso até ofende o terreiro dos Orixás, vige Maria! Deixa ver o dinheiro, agora vá, vá minha santinha, vá logo.
As rezas foram feitam, as oferendas foram bem arrumadas, os sete dias se foram, Vanda voltou à casa da mãe Diná, e esta lhe explicou que o marido devia estar protegido por alguma entidade superior, muito poderosa mesmo, talvez fosse Oxóssi, deus da caça ou Ogun, deus da guerra, esperasse mais um pouco pra ver os resultados, não perdesse as esperanças que os deuses iam se entender, é que às vezes eles gostam de brincar com a gente aqui de baixo.
As semanas se passaram e Vanda nunca mais foi a mesma. Andava sempre muito calada, só Lúcia conseguia arrancar-lhe algumas poucas palavras, que, na maioria das vezes, não passavam de resmungados. O golpe afetara-lhe tenazmente. Os primeiros dias de solidão eram cruéis, havia um turbilhão de interrogações que consumiam lentamente o consciente, era preciso adentrar ainda mais o espírito, a alma. Vasculhar cada centímetro do subconsciente para achar as respostas, mas elas não vinham com satisfação, eram grotescas, machucavam profundamente cada centímetro do corpo, e só a angústia respondia por não ter o que dizer. A culpa foi minha, minha.
Os domingos eram cada vez mais solitários para Vanda. Não havia mais por quem esperar. Até a janela que tanto lhe dera assunto e motivos de fofocas, hoje já não tinha mais a mesma importância. Estava cada vez mais desleixada consigo mesma. Seus cabelos raramente eram penteados, seus dedos com unhas roídas, o vestido sempre o mesmo, com aspecto sujo. Parecia, mesmo, ter perdido toda a dignidade de ser mulher, toda a elegância feminina. Não havia mais desejo nos olhos. O brilho da vida havia se esvaído junto com o marido. A solidão, agora, não era apenas um estado da condição humana, era uma doença dolorosa, que feria cruelmente por dentro, onde ninguém podia ver. Corroía aquele corpo já tão carcomido pelo desprezo de si mesmo. Tudo consumia aquela alma, cansada. Andava se arrastando com chinelas coladas ao chão, bem devagar ao som da própria respiração ofegante, vez ou outra interrompida por uma tosse seca sempre acompanhada de um escarro. Os amigos aconselhavam, davam palavras de estímulo. Tentavam sacudir o ego daquela criatura, cada vez mais sombria, mais sumida, mais ninguém, mais silêncio. Nada adiantava. Ela se definhava em doentias tristezas. Começou a andar pelas ruas o dia todo e só chegava à noite. Algumas vezes trazia consigo, sacos com pedaços de pão, outras vezes com verduras semi-estragadas, frutas comidas pela metade, e restos de comida. Não se sabe onde ela conseguia essas coisas, se mendigadas ou catadas no lixo. O certo é que os dias iam se passando, e Vanda só piorava. Não aceitava mais favores dos moradores da Vila, “eram todos um bando de traíras.” Só confiava na Lúcia e mais ninguém. Vanda não era mais de casa, era da rua, feito cão que perde o dono e luta desesperadamente pela sobrevivência. Lúcia ofereceu ajuda, mas o marido não concordou que aquela mulher suja viesse morar uns dias com eles, mesmo assim, Lúcia ficou dando refeições regulares para Vanda, mesmo a contragosto do marido, que só concordou porque era um dever cristão e ele era um homem temente a Deus.
Dois dias se passaram sem que Vanda aparecesse para pegar suas refeições, como vinha fazendo já há alguns dias. Lúcia achou estranho, pois não vira a amiga sair de casa nesses dias, resolveu ir até lá. Bateu à porta com força, várias vezes, sem que tivesse qualquer resposta. Alguns vizinhos disseram tê-la visto entrando na casa na noite anterior. Trazia uma sacola na mão, como de costume, e na outra, uma garrafa de cachaça, vício que adquirira há pouco tempo, logo depois que o marido fugira com outra, mas já a consumira de todo. Bateram à porta mais uma vez e como ninguém atendesse, um garoto franzino se ofereceu para pular o muro e dar a volta por trás da casa. Foi verificada a porta da cozinha, mas nada conseguiu. Resolveu-se então chamar a polícia. Duas horas depois os militares chegaram em uma viatura antiga com três policiais gordos, o sargento desceu primeiro e saiu na frente. Fizeram algumas perguntas, e quiseram saber se tinha parente da desaparecida por ali, se era casada, tinha filhos, netos qualquer que fosse o grau de parentesco. Mas nada dera positivo, e concluíram que deveriam arrombar a porta, assim mesmo.
O sargento tomou uma decisão, olhou para frente, pediu que os curiosos se afastassem e fez distância, só um pontapé colocou a porta adentro. Ele mesmo entrou primeiro, e foi seguido por uma porção de curiosos. No interior da casa a cena era deplorável: estava quase vazia, os móveis haviam sumido na sua maioria. Paredes sujas guardavam a umidade da clausura. O chão empoeirado, úmido, exalava um cheiro acre e fétido, o silêncio era rompido pelo zunir das moscas e o atravessar das baratas. Latas, garrafas, restos de alimentos espalhados pelo chão, sendo carregados pelas formigas, que desfraldavam o espelho mísero de uma vida no seu derradeiro suspiro. Mas foi na cozinha onde encontraram o corpo envolto pela penumbra da casa, ao lado da mesa, única mobília do compartimento. Uma forma de mulher em trapos, um gargalo de garrafa. A mão sobre o pescoço ensanguentado denunciava uma tentativa de aplacar a dor, ou de um súbito arrependimento do devaneio. Fosse o que fosse a loucura culminara em seu papel. Havia sangue por todo canto da cozinha, seco ou viscoso, o cheiro era insuportável. Três meses foram o suficiente para a degradação completa daquela pobre alma, condição humana que se transformara em espectro de gente e não suportara a dor do mundo, do abandono, da rejeição, da indiferença, do silêncio e da solidão, e pôs fim ao seu mísero destino sem se dar conta dele, tão perdido fora.