A Companhia Trevisana

Aquela era sem duvida a parte do dia que mais gostava. Ou pelo menos uma delas. O sol se punha preguiçosamente no horizonte, como se estivesse simplesmente dando um mergulho no mar azul e calmo.

O lugar em que estava dava ainda mais beleza aquela cena. Um dos pontos mais altos de Veneza, a maior cidade em que já se apresentara com o teatro itinerante. Piero era completamente apaixonado por aquele lugar.

Enquanto tons rosas e alaranjados tomavam seus olhos, o jovem se levantou batendo a poeira das vestes. Estava ligeiramente atrasado para ajudar na montagem do picadeiro, mas não podia perder essa visão apaixonante. Sabia que essa seria uma inspiração inigualável para criar os versos que usaria no espetáculo noturno.

Correu um pouco, e logo estava atando cordas, carregando vigas e estendendo lonas. Não era uma montagem complexa. Com os anos de experiências, tinham desenvolvido um mecanismo simples onde montavam um palco não muito grande, uma cobertura de lona segura por vigas fortes, que sustentavam alguns aparatos de teto essenciais para as apresentações.

Em geral, preferiam se apresentar em noites claras. A maior parte da plateia sentava-se no chão frio, sem qualquer cobertura. Apenas os figurões das grandes cidades ganhavam cadeiras de madeira e podiam se sentar bem à frente do palco, cobertos pela grande lona colorida.

A companhia de teatro Trevisana existia há pouco mais de 7 anos. Piero juntara-se a ela há 4. Ouviram-no nas ruas de Piemonte declamando uma de suas poesias. Escrevia fábulas, contos e odes desde que aprendera a nobre arte da escrita. Adorava conta-las e interpretá-las apenas por diversão, mas assim que percebeu que havia quem gostava de ouvi-lo e estava disposto a dar-lhe alguns florins pelo entretenimento, tornou do hobbie sua ocupação.

Foi o Signor Gallo, o fundador da companhia quem o viu pela primeira vez nas ruas de Piemonte. Um homem grande e robusto, dono de uma vasta bigodeira preta, cabelos ralos e uma barriga saliente. Aproximou-se despretensiosamente da pequena multidão que assistia Piero contar uma história animada cheia de rimas e reviravoltas. Assim que chegou, abriu um largo sorriso e acompanhou a salva de palmas e gargalhadas que o resto da plateia dava.

Ao fim do espetáculo, ao invés de apenas jogar florins no largo chapéu bufante do artista de rua, chamou-o para conversar, pagou seu jantar e ofereceu lugar em sua companhia itinerante. Piero o avisou que se aceitasse, não iria sozinho. Anna era sua companheira desde que se entendia por gente. Ajudava-o com a maquiagem, e muitas vezes representava o papel feminino em suas pequenas obras.

O Signor Gallo não viu problema algum. Mandou-o buscar a companheira, juntar seus pertences, despedir-se dos amigos e se preparar para viver os anos mais incríveis, divertidos e lucrativos de sua vida ao lado da Grande companhia de teatro Trevisana. Piero achou estar vivendo um sonho.

Percebeu logo de inicio que as promessas de lucros não eram assim tão vantajosas. Mas cada nova experiência e cultura que vivia e aprendia em cada cidade que visitavam, fazia a oferta valer a pena. Além disso, ganhara uma família juntamente como restante da companhia.

Mas Anna tinha planos diferentes, almejava coisas maiores. Era extremamente astuta, uma artista nata, e Piero acreditou no seu potencial. Apostou em suas pinturas, sabia que hora ou outra eram suas obras que sustentariam a casa, mas enquanto não conseguisse um lugar para expô-las, eram as poesias do rapaz que podiam trazer pães para a mesa. Ela aceitou fazer a primeira viagem com ele, mas assim que conseguisse uma galeria ou um mecenas, ficaria pela cidade, cuidando da própria arte.

A Companhia de teatro Trevisana reunia malabaristas, cantores, acrobatas, dançarinos e palhaços. “Um bando de desajustados com talentos incomuns e fantásticos” era como Pasquale, um velho ilusionista, gostava de chama-la.

Piero se encontrou logo de cara. Adotou uma nova persona. Escreveu novos versos, novos contos e a cada espetáculo maquiava-se de forma diferente, com roupas pitorescas e espalhafatosas, de acordo com o número apresentado. Anna o acompanhava sempre, e embora não gostasse tanto assim da vida itinerante, divertia-se com toda a atmosfera que rodeava a companhia.

Nas noites eles eram as artistas, adorados pelo publico. De dia, ajudavam-se em tarefas cotidianas, como se vivessem em uma pequena vila que mudava de lugar a cada semana.

Mas Anna sempre deixara claro o sonho de viver de suas pinturas, e embora seu coração se quebrasse ao ouvi-la falar em deixa-lo, Piero entendia perfeitamente quanto a arte era importante para ela, (Assim como sua própria poesia era fundamental para ele). Deu, assim, todo apoio necessário quando um mecenas finalmente se encantou pelos traços de sua companheira. Ela seria a primeira mulher a expor em uma conhecida galeria. Ficou em Mikonos depois de dois anos acompanhando a companhia.

Desde então, Piero perdera um pouco de sua inspiração. Passara a adotar quase sempre o personagem soturno que se vestia de preto e branco, com metade do rosto pintado com uma estranha careta alegre e a outra triste, com uma pequena lágrima de tinta escorrendo na bochecha esquerda. Declama poemas lindíssimos, que tocavam a alma dos que os ouviam, mas eram quase sempre tristes.

Apenas Veneza era capaz de mudar isso. A atmosfera dos grandes e agitados portos, os viajantes de roupas esvoaçantes e coloridas, e a beleza dos canais sempre o animavam. Os espetáculos em Veneza eram sempre memoráveis, em grande parte por conta das apresentações de Piero, mas eles tinham muitos lugares para visitar. Apareciam em Veneza no máximo duas vezes por ano.

- Devíamos vir mais a esse lugar, Gallo. – Disse Matteo, animado, como sempre.

Matteo era um dos poucos remanescentes do elenco inicial. O acrobata forte, de rosto liso e cabelos longos era sempre otimista, e por ter ajudado o Signor Gallo a fundar sua companhia, tornara-se grande amigo do chefe.

- Não, não, meu caro Matteo. O sucesso aqui se deve à grande saudade que sentem de nós. Se ficássemos aqui semanas sem fim, logo se cansariam. Até mesmo Piero se enjoaria da vista e seus belos textos perderiam a alma.

- Como sempre o senhor tem razão, Signor Gallo. Mas pelo que vejo, a saudade do povo está bem grande. Veja só. – Disse apontando para o canto oposto da praça onde montavam o picadeiro. – Nem terminamos de montar as coisas e já há toda uma multidão nos esperando.

- É, pelo que vejo não teremos lugares vazios.

- Espero que Piero esteja inspirado.

- Mesmo que não esteja, muitos estão aqui pela nossa mais nova atração. Não se esqueça, Veneza ainda não conhece Viktorie.

Fora do picadeiro, Viktorie olhava para o horizonte com os olhos brilhosos. O sol agora não era mais que um contorno indistinto afundado nas aguas cristalinas do mar Adriático. Ela adorava essa vista. Era sem duvida sua hora favorita do dia.

Naquele momento ela se imaginava no palco. Cores, formas, gritos, aplausos. Cada movimento e cada reação que esperava sempre invadiam sua mente, um prelúdio do que estaria por vir.

Desde muito nova, na Polônia, sonhava em se apresentar na maior cidade do mundo. Os palcos de Veneza eram o sonho de qualquer artista. Se acostumara com teatros luxuosos, apinhados de distintas damas e cavalheiros em roupas de gala assistindo seus espetáculos em Varsóvia. Mas a oportunidade de ser ovacionada pelos grandes públicos do ocidente era irrecusável.

Convenceu seu marido e mecenas a acompanha-la mesmo em uma companhia de teatro itinerante. Largar as inúmeras terras da família para acompanhar a esposa em uma aventura não pareceu uma grande ideia para Kristof, nem para seus pais. Mas deixar de realizar o sonho de sua amada parecia uma ideia ainda pior.

Grande conhecedor de números, ele passou a ajudar o Signor Gallo na administração da companhia. Seus contatos influentes também eram de grande ajuda, mas a falta dos confortos com os quais estava acostumado faziam dele um homem constantemente mal humorado, algo que destoava um pouco do restante da companhia.

Viktorie havia o visto sorrir uma única vez desde sua saída de Varsóvia. Quando haviam se apresentado em Roma. O teatro não era uma arte tão popular por lá, mas a dançarina polaca tinha sido estupenda. A plateia ficou fascinada pela dança envolvente com todos os panos coloridos que ela própria desenhara como suas vestimentas, e Kristof também. Durou pouco tempo, é verdade, mas aquele sorriso era tudo que a garota queria naquele instante.

Tinha completa dúvida sobre as decisões que tomara até então. Muito mais por causa dele, é verdade, para ela, aquele ambiente correspondia quase em exatidão às visões que tinha de suas futuras apresentações. Além disso, se dera muito bem com toda a trupe. Estava fazendo bons amigos, considerava todos eles artistas competentes, em especial o poeta. Nunca fora muito adepta às leituras, mas as palavras de Piero a tocavam de uma forma que ela mal sabia explicar.

A noite chegou. A praça foi se enchendo de espectadores. O número inicial, como de costume, era de Matteo. O acrobata encantava o publico com sua força, elasticidade e equilíbrio. Piero foi para o canto do palco, de onde gostava de assistir seus companheiros até o momento de sua apresentação. Logo depois, os músicos do grupo começaram uma música mais animada. Uma grande corda se estendeu a, pelo menos, 2 metros de altura. As luzes se voltaram para lá, e então, Viktorie subiu, erguida pelo próprio Matteo.

Estava simplesmente deslumbrante. Um vestido de cores vivas ressaltava cada movimento, cada suave curva. Mesmo a mais de dois metros de altura, mantinha a graça no andar. Parecia caminhar suavemente em uma praia.

Girava, rodava, voava e mantinha a graça ao pousar e ainda por cima sorria, como se aquilo fosse a coisa mais simples do mundo. Piero não conseguia parar de olhá-la. Estava encantado com aquele sorriso, hipnotizado por aquela mulher. Por mais de uma vez tentou enxergar seus olhos mesmo à grande distância. Eles pareciam brilhar.

- Essas cores são incríveis, não são? Sabia que é ela quem desenha as próprias roupas. – Disse uma voz feminina atrás dele.

Piero pareceu despertar de um sonho fantástico.

- Que? Quem? – perguntou ele, desnorteado.

-Viktorie, a dançarina acrobata. Ela é incrível não é. E ainda por cima ela mesma cria as próprias roupas, acredita? – Anna apoiara-se em seu ombro assistindo-a também.

- Meu amor. Está aqui?! Veio me ver. – Disse Piero sorrindo, como há muito não fazia.

- Soube que estariam em Veneza, aproveitei para pintar as mais belas paisagens que meus olhos já haviam visto. Darão belíssimas obras para a galeria.

O sorriso de Piero se fechou quase imediatamente.

- Não perderia sua apresentação em Veneza por nada. – Disse ela sussurrando em seu ouvido, ambos voltando a olhar para o palco onde Viktorie se apresentava.

Um sorriso inconsciente voltava a tomar sua face.

- Posso apenas servir como abertura para o “Bis” dela, mas dessa vez vou tentar apresentar algo muito melhor do que em Roma. O clima deve acabar em aplausos e risos, concorda?

- É ótimo ouvi-lo falar assim. Quer que eu tire as lágrimas da sua maquiagem? Temos de nos apressar.

- Não é necessário, meu amor. As lágrimas ainda ficam, mas...

Os olhos do poeta não se desviaram até que a dançarina saísse de sua corda suspensa. Sob um véu de fumaça, a bela mulher cheia das roupas coloridas deu lugar ao velho ilusionista. Pasquale despertava a plateia de sua própria hipnose com suas pequenas explosões.

Cada momento do show era pensado para que as reações mudassem de forma chocante. A audiência mantinha olhos e corações concentrados completamente naquele pequeno palco montado sobre uma grande lona. O final, em geral, cabia às mais puras emoções extraídas por Piero com suas interpretações, embora, desde a chegada da nova integrante da trupe, sempre coubesse um “bis” de Viktorie.

Por conta disso, os textos melancólicos e reflexivos pareceram deixar de fazer sentido. Ainda eram belos, é verdade, mas faltava paixão que alegrasse os olhos de quem depois assistiria uma obra de arte, pintada ao vivo, em três dimensões.

Piero teve uma súbita inspiração. Subiu ao palco ao fim do incrível malabarismo pirotécnico dos irmãos Le Fou, que nem mesmo apagaram suas tochas, estranhando os trajes, e maquiagem nunca dantes vistas cobrindo o rosto do poeta. O lado esquerdo era cinzento, com maquiagem pálida e a típica lágrima escorrendo em tinta preta. Já no lado direito, ele amarrara panos multicoloridos nas calças, a maquiagem branca se completava com um traço vermelho no lábio onde um sorriso parecia se abrir, e ao redor dos olhos, azul e verde pareciam se fundir.

Ele entrou no palco de cócoras, escondendo a metade triste do rosto.

- Há Cem horas, e sem dores apresento-me em palcos de todo mundo conhecido. Mas há belezas que nem mesmo olhos tão bem treinados e uma mente tão criativa como a de Piero é capaz de criar.

A voz de Piero soara ampliada, com volumes e texturas se alternando, chamando atenção e causando arrepios. Os trejeitos no palco mostravam algo diferente, mesmo para aqueles que já o tinham ouvido recitar seus poemas, fosse com a companhia, fosse nas ruas italianas.

- A beleza veneziana sempre me despertou emoção. O por do sol e sua calmaria, as gondolas e seus apaixonados, as mulheres de rosto corado e pelos arrepiados ao ouvir minha bela voz... e alguns homens também, é claro. Piero desperta os sentimentos mais inapropriados e inoportunos em qualquer ser humano.

A plateia gargalhou sem nem ao menos notar que se deixava envolver por todas as nuanças daquele espetáculo. Gallo, Matteo, e os demais membros da trupe não conseguiram seguir seus afazeres. Pararam tudo e voltaram olhos e ouvidos para o poeta.

- Mas então, lembrei-me da chuva! – Piero virou o lado cinzento do rosto para a plateia, fazendo uma careta medonha, e nesse mesmo instante um estrondo como o de um trovão soou vindo de algum lugar. (Anna é mesmo incrível, pensou ele, capta meus pensamentos e entende as deixas desse insano).

De seu camarim improvisado, Viktorie ouviu o trovão seguir os risos e então ouviu o susto. Sem se conter, seguiu seu instinto e foi até a beira do palco ver Piero mais de perto.

- A chuva é cinzenta, monótona, triste? Não se pode dizer isso. Ela é bela como a vida que é capaz de trazer. Mas mais do que isso, não se esqueçam, é com a chuva que vem o arco íris.

Os dois segundos de deixa foram o bastante para Pasquale entender Piero e girar seu prisma na frente da fonte de luz, criando no alto do picadeiro uma formação multicolorida fantástica.

- Somos homens da terra, os pés descalços sempre tocando o chão, mas há belezas que só podem ser vistas no alto. – O rosto do Piero se voltava de um lado para o outro enquanto apontava com um gesto lento e dramático para o topo da lona.

- Os pingos gelados de chuva e o cheiro de terra molhada nos fazem sentir vivos! Mas é o brilho do arco íris que nos permite sonhar. – Os olhos verdes do poeta se voltaram instintivamente para Viktorie.

Ela não podia imaginar como ele sabia exatamente onde ela estaria. Mas de alguma forma aqueles olhos a buscaram, e numa mensagem muda, mas extremante clara, ela entendeu que o “bis” deveria começar antes mesmo que a plateia o pedisse. Piero a estava intimando a subir novamente em sua corda.

Parecia que o próprio universo decidira entender e ajudar Piero. A alma de poeta devia trazer algum tipo de mágica junto a ela. Finas gotas de chuva, mesmo naquele dia quente começaram a cair. Com elas, o doce som da água batendo no mar, e a brisa salgada misturada à terra molhada e o doce som do vento tornaram-se ingredientes daquela apresentação.

- Vento e sol! Luz apagada no farol. (As tochas dos irmãos Le Fou ao lado do palco foram apagadas).

- Noite escura! Onde foi que se escondeu a lua? (Piero levantara-se e olhava a plateia de um lado ao outro com a mão sobre a testa).

- Sob o mar! E de lá vem o sol iluminar!

- Sol e chuva! As cores sobem, mostram suas curvas! (Matteo ergueu Victorie sobre sua corda, e todas as luzes se voltaram para ela).

- E as cores dançam sob o céu estrelado,

Apagam o dia nublado, bailando de frente pro mar!

Que apaixonado entrega as coisas mais belas,

Tesouros piratas e velas, donzelas, pra hipnotizar!

Os músicos começaram a tocar seus violinos seguindo o ritmo das palavras de Piero. Viktorie bailava em transe no alto de seu picadeiro, envolvida por cada palavra, cada nota. O publico mal parecia acreditar. Tudo era um espetáculo!

- Onde já se viu o mar apaixonar-se por uma menina? (Piero olhou para o alto, e cada par de olhos naquela praça acompanhou seu olhar).

- Mas quem de nós seria capaz de não se apaixonar? (e voltando-se de novo para seus espectadores novamente bradou mais alto).

- Por que é que o céu, não se ilumina a tarde toda?

- Porque essas cores fazem o escuro brilhar! E Viktorie girou com todas as suas cores em um salto mortal. Iluminada por todas as luzes do picadeiro, por um instante se fez arco íris. Enquanto a plateia tinha os olhos cheios de lágrimas, ela se arrepiava, sentindo-se parte dos mais belos versos que já ouvira da boca do poeta.

Foi o próprio Piero que notou o momento mais propicio para o Grand Finale, com todas as luzes em Viktorie e suas ultimas palavras ainda ecoando, correu até as fontes de luz e apagou-as a todas, com exceção da luz do prisma de Pasquale. Deixando Viktorie dançar por mais um instante sob as luzes do arco íris enquanto os violinos a acompanhavam.

Piero desceu do palco e junto à plateia e puxou um “Viva” ensurdecedor, que logo foi seguido por centenas de aplausos. As luzes foram voltando ao normal, e do alto de seu posto, Viktorie agradeceu junto aos colegas que entravam novamente no palco, para o reconhecimento final.

A noite fora o maior sucesso que A companhia Trevisana já havia tido. Por todos os bares de Veneza falou-se nisso por dias e dias a fio. Naquela noite, ao fim do espetáculo, toda a trupe bebeu junta em comemoração aos florins e aos aplausos recebidos, ou quase toda, Kristoff permaneceu um dos bares da cidade e por lá ficaria mais alguns dias, fechando importantes negócios, mas poucos deram conta de sua falta. Ainda estavam encantados com o número final, com como puderam se entender quase telepaticamente para conceber aquela grandessíssima obra de arte.

Ao fim da noite, alegres, trôpegos e felizes, cada membro da trupe foi se retirando para seus aposentos. Piero decidiu ficar mais um pouco. Sombras da maquiagem ainda evidentes em seu rosto. Ele olhava para o palco ainda montado sonhador. Percebeu a presença de Viktorie antes de realmente vê-la. Estava atrás do palco terminando de enrolar a corda sobre a qual se apresentava.

O poeta se aproximou vagarosamente, tentando não assustá-la. Mas as palavras escaparam-lhe da boca um pouco mais altas do que gostaria.

- Você é simplesmente fantástica. Sou um tolo por nunca ter falado isso.

A bailarina tomou um leve susto ao vê-lo, mas assim que assimilou as palavras, enrubesceu.

- Obrigada. – Um belo sorriso escapou-lhe. – Também acho seus poemas incríveis. Você é muito bom com as palavras.

- Tão bom quanto a inspiração que me toma.

- E o que é que te inspira, poeta? – Ela não o olhava diretamente nos olhos ao falar. Mas voltava a eles a cada instante.

- Acho que ficou bem claro hoje. A luz em meio à noite. O arco-iris em meio à chuva... – Respondeu ele apontando para os panos coloridos presos à saia dela.

- Fico lisonjeada. De verdade...

Alguns segundo de silêncio, o barulho da chuva começava a apertar sobre o picadeiro.

- Sempre admirei seus poemas, contos e canções. Você parece um homem muito sensível.

- Sensível? Um homem de palavras é um homem frágil? Bom, entendo o que quer dizer.

- Não. Não foi o que quis dizer. Você tem a sensibilidade aflorada. Parece perceber os sentimentos de forma diferente, com pureza, leveza. Seu raciocínio é rápido a ponto de se tornar sempre espontâneo. Nunca o vi trabalhar em um texto enquanto estamos descansando.

- De fato. Em geral eles simplesmente me ocorrem. Mas escrevo com certa frequência, longe dos olhos da maior parte da trupe. Trabalho melhor assim, acho eu.

- Bom, saiba que foi um prazer fazer parte de seu número.

- Eu é que agradeço sua presença. E agradeço ainda mais que tenha entendido tão rápido meu olhar.

- Eu também fiquei surpresa. Geralmente não sou muito boa com isso de entender sinais. Mas algo em seus olhos tornou tudo tão claro. Parecia que estávamos conectados de alguma forma.

- Também senti isso. Bom... Obrigado por me inspirar e por me permitir dar voz à sua maravilhosa arte. Você tem se tornado a grande estrela da companhia. E hoje eu entendi exatamente o motivo de tamanha admiração. Você acaba de ganhar um novo fã, cara senhora.

Com uma mesura, Piero nem esperou resposta alguma. Apenas se retirou seguindo para o tonel de água que usavam como pia para terminar de tirar a maquiagem antes de ir se deitar.

Viktorie permaneceu lá por mais um tempo, olhando de soslaio para o poeta, perdida em pensamentos.

A ordem geral da Companhia Trevisana era um dia de preparação, uma noite de apresentações, um dia em que aproveitavam o que quer que a cidade oferecesse e depois nova viagem. Quase nunca faziam espetáculos em noites consecutivas na mesma cidade. No fim da tarde seguinte, voltaram à estrada, as bolsas mais cheias, os corações mais alegres. Seguiriam para Padova, depois Vincenza, e então, Verona. Anna ficaria mais um dia, e então, voltaria para Mikonos.

Padova não tinha um cenário cultural tão forte, Vincenza também não, embora sempre rendesse bons florins por conta dos mercadores ávidos por diversão, mas Verona tinha algo diferente. Era uma cidade apaixonante, e apaixonada pela arte.

Piero, com ânimos renovados parecia contagiar toda trupe. A trupe acreditava que a simples presença de Anna por uma única noite bastara para que toda a criatividade do poeta voltasse. Ele, de alguma forma, emanava toda a inspiração e paixão que sentia para cada um que se aproximasse. Durante a viagem contava boas histórias, durante os ensaios boas piadas. Passou a conversar muito mais com a bailarina dia após dia. Ambos demoravam a dormir principalmente nas viagens. As conversas cochichadas sobre a carroça à luz do luar tornaram-se constantes. Histórias do passado, pensamentos sobre o mundo. Tinham pontos de vista bem diferentes, mas ainda assim, apreciavam imensamente a companhia e os diálogos noite a dentro.

Passara a assistir a cada apresentação de Viktorie. E a cada ensaio também, mesmo que nem sempre pudesse ser visto. Nas mãos, levava agora um bloquinho. Ao que parecia algumas ideias precisavam ser postas no papel. No bolso, levava uma carta.

“Ela é um espetáculo, não é?” – dizia Anna na carta.

“Sim” – Pensou ele. “Ela é extremamente talentosa”

”Acho que ela devia ser a donzela em Verona. Não poderei estar lá a tempo. Concegui vender as obras que pintei em Veneza, terei de ficar mais alguns dias exibindo-as na galeria, conversando com compradores e etc. Tenho certeza que você entende”. – Continuava ela.

“Sempre entendi. Porque agora seria diferente.” – Pensou ele triste, suspirando mais uma vez ao ler a carta.

Aquilo, de fato, já havia passado na cabeça de Piero. Verona tinha uma peculiaridade. Lá apresentavam uma única grande peça. Cheia de improvisos e com diversos finais que fugiam completamente dos ensaios. A única coisa que permanecia constante eram os estereótipos. Sempre havia um herói bravo e sensível, um vilão sedento por vingança, um bêbado que auxiliava o herói, servindo de alivio cômico, e, é claro, uma donzela.

Em geral a própria Anna interpretava esse papel. Mas ela não estava mais lá. No ano anterior, Piero a deixara apenas como uma alma misteriosa, um rosto e uma voz que mal apareciam, deixando o imaginário do publico terminar aquela construção conforme seus próprios ideais. Foi Pasquale quem fez falsete para imitar a voz da donzela escondida na ultima vez que Anna não esteve presente, mas agora eles tinham Viktorie.

”Mas, Anna é minha donzela.” – Pensou Piero, imediatamente.

Verona os recebeu cheia de amores, como era costume. Era a única cidade em que passavam mais de um dia se preparando para a apresentação. Em geral, ofereciam um belo jantar à trupe assim que a recebiam.

Mais uma vez o jantar veio. Delicioso. Assim que se satisfizeram, reuniram-se para discutir sobre qual seria o enredo apresentado dessa vez. Antes que Piero pudesse falar, o Signor Gallo tomou a palavra.

- Verona mais uma vez! Não temos o mesmo glamour de Veneza por aqui, mas é onde os sentimentos despertam e desabrocham. Temos de ser incríveis. E para tal, sugiro que Viktorie assuma um papel de destaque.

- Apoiado! – Responderam prontamente vários membros da trupe. Piero permaneceu calado, concordava, mesmo que contrariado, com a ideia.

- Você tem algo novo para nós, poeta. – Perguntou Matteo olhando diretamente para Piero.

- Por que, raios, você espera que todas as ideias partam de mim? – Perguntou ele debochado.

- Porque enquanto eu sou todo músculos, graça e talento, é você quem tem a maior cabeça e possivelmente o maior coração. Pode amar Veneza, meu caro, mas é em Verona que realmente apreciam esses seus gracejos ridículos com as palavras.

O riso no rosto de ambos deixava clara a camaradagem da trupe. Piero fez-se de ofendido, a princípio, assustando Viktorie que não estava habituada àquele tipo de afrontas, mas o riso logo se fez presente.

- Surpreendendo a todos, você está certo. E, deveras, tenho as melhores ideias. Fique tranquilo, Signor Gallo, Viktorie é a musa dessas ideias, por hora. – disse debochado. – Mas como sempre, aceito cada sugestão que vier depois que eu contar o que tenho em mente.

Passaram quase a noite toda em claro combinando detalhes, papeis e outras tantas coisas necessárias. Conforme as horas passavam e a lua começava a se esconder, apenas Piero e Viktorie seguiram conversando.

O tempo começara a esfriar. Eles estavam agachados junto a uma das carroças de transporte, cobertos por uma única manta, cada um com uma caneca de bebida fumegante nas mãos.

- Não vou ser uma dessas donzelas que aguarda um herói em uma torre. Nunca fui assim. E não é num palco, pra toda Verona que interpretarei esse papel. Aliás, eu nunca interpretei papel algum. Não sei se tenho esse talento.

- Imaginei que diria isso. Mas a ideia não é mais a da donzela misteriosa que se esconde em uma torre. Você deve brilhar! Nada além do que você já fez em cada um dos palcos em que passamos.

- Como não? Eu sou sempre Viktorie. Nunca fingi ser outra pessoa no palco. – Ela levantou a cabeça e jogou os cabelos para trás, olhando diretamente nos olhos de Piero.

- E não precisa. Basta ser você. Qualquer máscara que vestimos nada mais é do que uma face nova que não costumamos revelar. Temos múltiplas possibilidades de ser. No intimo, somos um pouco de tudo. – Os olhos de Piero mantiveram-se fixos nela. Ambos pareciam brilhar.

- Olha você de novo com essas frases profundas cheias de efeito. – Disse ela virando o rosto por um instante. - Não estou acostumada a me esconder atrás de uma maquiagem e revelar apenas pequenas partes de mim. Eu sou oito ou oitenta. Tudo ou nada.

- Pois seja tudo no palco! E ao mesmo tempo, não seja nada. Perca as palavras quando tiver que perder, chore quando tiver de chorar, viva! Apenas não pare. É tudo que quero de você.

- Acho que você espera demais de mim. Nem sempre minha intensidade tem um lado bom.

- Estou pronto para conhecer qualquer lado que queira mostrar. Quanto a isso fique tranquila, Confio no seu talento.

- Fico feliz em saber disso. – Respondeu ela risonha.

A peça não tinha falas a serem decoradas ou um roteiro exato a ser seguido. Uma situação inicial seria proposta, e os números tinham momentos específicos para acontecer, mas as falas e o andamento dependeriam do improviso de cada membro da trupe. Eles adoravam isso. Fizeram dois ensaios gerais. Nenhum deles teve nem mesmo uma cena igual. E em nenhum deles Piero gastou as notas que escrevera. Iria guarda-las para a apresentação final, se é que haveria espaço para elas.

A proposta inicial era que Matteo seria o vilão vingativo. Teria o casamento arranjado com Viktorie, a filha de um grande mercador, o próprio Signor Gallo, que ao ver as apresentações de um jovem ator, Piero, ela se apaixonaria por ele.

Eles faziam diversos exercícios de improvisação durante os “ensaios”. Eles despertavam risadas, choros, gritos, e aproximavam cada vez mais os atores. Em certo momento, o próprio Signor Gallo percebeu o quanto Piero estava sintonizado à Viktorie. Com um sorriso vermelho e os olhos marejados, o chefe comentou, sussurrando para o poeta:

- Acho que você encontrou, de vez, a sua donzela eterna. Verona vai amá-la!

Aquelas palavras tiveram efeito imediato sobre Piero. Ao ir dormir aquela noite, tentou escrever para Anna, mas era Viktorie quem aparecia em sua mente quando fechava os olhos. O sentimento que o percorria era esquisito. Não sabia explica-lo, e como um homem que sempre tentara reverter sentimentos em palavras, ele se sentiu frustrado.

Não era culpa. Sabia que não havia feito nada de errado. Era incapaz de controlar os pensamentos, que dirá os sentimentos. Ainda amava Anna, é claro, ela fora sua companheira por anos, amiga, parceira. Mas seria possível que estivesse se apaixonando por uma segunda pessoa? Já lera sobre isso em dramas ingleses, mas em geral, tratavam-se de tragédias. Não gostava de pensar nisso.

Sozinha em seu dormitório, Viktorie não conseguia dormir. Sentia-se culpada. Com Kristof longe, não sabia o que achar daquilo tudo. Tudo o que sabia era que adorava a companhia do poeta. Durante um ensaio ela o havia abraçado. Rodopiaram no ar durante uma cena. Uma espécie de energia pareceu fluir, inexplicavelmente. Ela só sabia que em seus braços se sentia viva, leve, feliz.

- Você está bem? – Perguntou Piero, na manhã seguinte, assim que a encontrou pegando frutas para o desjejum.

- Na verdade não sei dizer. Acho que só estou ansiosa para a peça de hoje à noite.

- Confesso que somos dois. Esse frio na barriga é estranho, mas faz tão bem.

Passaram boa parte do dia juntos. Conversando sobre o que esperavam da peça, além de diversas outra trivialidades. A tarde passou mais rápida do que o esperado, e logo a noite caiu e toda a cidade se dirigiu ao picadeiro.

Quando toda a praça estava ocupada pela multidão, o Signor Gallo subiu ao palco, e com sua voz grave e estrondosa, começou a bradar.

- Matteo é o melhor partido da aldeia. É forte, honrado, e cheio de riquezas acumuladas. Não tive dúvidas quando aceitei seu pedido de casamento à minha amada e bela filha. Um grande homem, grande homem. Quem me dera minha amada filha achasse o mesmo.

Várias pequenas apresentações secundárias se seguiram à frase inicial de Gallo.

Matteo demonstrava suas habilidades acrobáticas entre as tochas em chamas dos irmãos LeFou, ou aparecendo no meio das explosões ilusórias de Pasquale. Viktorie apenas o olhava de cima de sua corda, sentada, com um foco de luz sobre seu rosto triste.

Os músicos então começaram a tocar uma melodia lenta e envolvente. Todas as luzes se voltaram para Viktorie, e ela começou a dançar melancólica, os olhos semicerrados. Nenhum sorriso no rosto.

Todas as luzes então se apagaram. E do fundo do palco surge a figura pequena e mirrada de Piero. Ele declama pequenos versos. Alterna os tristes e os cheios de graça, atraindo figurantes da trupe que formam uma pequena multidão para ouvi-lo.

Passa então por Viktorie e declama um poema de amor. Seus olhos encontram os dela e os violinos voltam a tocar. Mas dessa vez a música é mais atraente, mais apaixonante. A garota volta a dançar sobre sua corda bamba, só que, dessa vez, ela sorri. Enquanto gira, pula e roda, os babados de seu vestido parecem se colorir por mágica. Ela encontra a alegria, e como esperado, toda a plateia sorri ao vê-la dançar.

Viktorie é uma figura deslumbrante, e Piero não tira os olhos dela, nem por um segundo, enquanto declama seu poema ao ritmo dos violinos. As cores, os movimentos, tudo nela é encantador. Ela desce de sua corda, pendurando-se me um tecido. Sua mão esticada toca a do poeta, os olhares dizem muito. Ele tira uma rosa do próprio bolso e a entrega a ela, que sorri involuntariamente, e a guarda nas vestes.

Mas então, subitamente, o bumbo soa. A atmosfera parece mudar completamente. Matteo volta à cena, e ao ver a prometida dançando ao som do poema de um artista de rua, minúsculo e fraco, ele ri.

O improviso de Matteo é dolorosamente convencível. O empurrão que dá em Piero é tão forte, que o poeta mal precisa fazer força para dar três cambalhotas para trás e sair de cena.

Matteo encena uma discussão, e demonstra sua força com diversas acrobacias em que ergue Viktorie apenas com um dos braços. O público parece chocado. A atenção de todos completamente presa àquela mulher deslumbrante girando nos braços de um troglodita.

O espetáculo segue cheio de cenas de ação em que Matteo tenta matar o poeta, pontuados por vários momentos cômicos onde o amigo bêbado de Piero cai e rola embolando-se em Matteo, sem qualquer pretensão, frustrando os diversos planos do brutamontes.

Viktorie encontra Piero escondida, dá sinais de que gosta do poeta, apenas para logo em seguida frustrá-lo por medo das reprimendas que ambos possam vir a sofrer. O poeta não a entende, está disposto a fazer tudo para aquela mulher que o ignora por diversas vezes, enquanto a dançarina não compreende como alguém pode passar por todas aquelas coisas, temendo pela própria vida, sem desistir de subir em sua corda para agradá-la.

Os violinos voltam a encher o ambiente. Viktorie mal saiu de seu pedestal. Seu rosto parece realmente preocupado, pois em muitas das cenas improvisadas Piero pareceu se machucar de verdade. O poeta surge trôpego e baqueado na beira do palco. O ator está realmente acabado. Matteo caprichara nas improvisações dessa vez e dava gostosas gargalhadas com o Signor Gallo na cochia.

Até que um foco de luz fraca ilumina a bailarina, e do chão, sob sua corda, o poeta a olha tão intensamente que cada palavra dita soa absolutamente real.

- Não consigo entendê-la. Hora você parece encantada com minhas palavras, hora você parece apenas querer distância.

- Quem disse que há algum encantamento, poeta? – Responeu ela. A voz falhando levemente com a mentira. - E peço que saia logo daqui. Alguém pode vê-lo sob minha janela e contar ao meu futuro esposo. Seria uma tragédia.

- Já escapei de coisas bastante ruins, madame. Isso eu garanto. Mas há razões pelas quais vale a pena se arriscar.

- Por que teima em se arriscar por mim? Mal me conheces.

- Sinto que algo nos uniu alguns dias atrás. Eu jamais saberia explicar, mas já estou envolvido demais.

- Um homem tão bom com as palavras não consegue explicar algo? Estou surpresa.

- Há sentimentos que não podem ser explicados. Apenas sentidos. E por acaso, eu gosto muito de você.

O olhar de Piero era tão penetrante, que por alguns instantes, Viktorie teve dúvidas se aquelas palavras se dirigiam à sua personagem ou a ela mesma.

- Sentimentos? Diz estar apaixonado?

- Quem sabe? E talvez eles sejam recíprocos. Percebo como me olhas.

- Olho porque a multidão o segue, isso desperta minha curiosidade. Mas sentimentos recíprocos? Qual seria a razão para apaixonar-me por um mero artista de rua.

- Nós nos apaixonamos pela forma como nos tratam. Pelo carinho inesperado, a mão que nos toca e o sorriso que nos faz sorrir. Nos apaixonamos pelo tom de voz, pelas palavras e pelos olhares que também se comunicam. Nos apaixonamos, até mesmo, pelo silêncio, que muitas vezes traz conforto e alívio. A paixão é mais simples do que parece, mas quando chega tem o poder de nos tomar por completo.

Viktorie permaneceu calada, boquiaberta, e seguiu assim até que os demais instrumentos passaram a acompanhar os violinos. Piero, por sua vez, não parou.

- Sabe o que acontece aqui, agora?

“Você me confunde, afunda, inunda com o seu olhar

Pode ser carência, ausência em essência, eu nem vou negar

Me desassossega, cega, chega e some, só pra depois voltar

No seu aconchego eu me apego, descarrego, tento me encontrar

Você me bagunça e tumultua tudo em mim

Essa moça ousa, musa, abusa de todo meu sim

Com seus laços descompassa o meu abraço

Te embraço, eu sei, só de te olhar assim.

Você me fascina, anima, alucina, só com um sorriso,

Eu me perco, desconheço meus sentidos, fico indeciso.

Me contento, desatento, com o seu alento em meus ouvidos,

Nem reparo se a hora para, em despreparo eu perco meus sentidos.

Não me importo, ignoro que descubram e me matem porque sabem.

Nem sei se mereço seu apreço, eu só torço pra ficar por perto.

Eu não vou embora, vou jogar conversa fora, só porque me faz bem.

Em meio a um devaneio, eu creio, anseio que dê tudo certo.

Matteo pensou em entrar em cena, mas retesou-se, impressionado pelas palavras. Viktorie desceu por seu tecido, dessa vez com uma acrobacia mais elaborada. Seus olhos estavam fixos em Piero, lágrimas pareciam toma-los, mas um largo sorriso não deixava seu rosto.

- Você realmente sente isso tudo por mim?

- Não faria tudo o que fiz se não sentisse. E você? Desceu até aqui por sentir o mesmo ou só quis tripudiar do pobre artista.

- E se eu sentir? Mas não deveria. Tudo parece tão errado e confuso.

- É impossível que o amor seja algo errado.

Eles se aproximavam cada vez mais, os rostos cada vez mais próximos. Os olhos de Piero pareciam cada vez mais profundos, assim como suas palavras. Sem saber como, Viktorie acreditava em cada uma delas, e talvez as mesmas palavras a pudessem descrever o que ela mesma sentia.

Matteo então correu para o palco, mais lentamente do que pretendia, ainda prestando atenção à cena, encantado. O amigo bêbado do poeta veio então correndo em seu auxilio, tropeçou no tecido de Viktorie. Deu uma cambalhota no ar e derrubou o brutamontes de cara no chão. Com o impacto, o tecido balançou demais. A dançarina escorregou, e se agarrou a primeira coisa que pode para não cair.

Piero a segurou com força, aninhando-a em seus braços, olhando fixamente em seus olhos. Segurou-a, então, pela cintura, afagou seus cabelos e aproximou seu rosto do dela.

A plateia, hipnotizada começou, então, a aplaudir ruidosamente. Os lábios quase colados ainda não haviam se tocado. Pararam subitamente e voltaram-se para seu publico, sem se afastarem, de fato, um do outro.

-Vocês foram simplesmente brilhantes! Todos vocês! – Bradou Signor Gallo, dando um forte tapa nos ombros de Piero que quase o fez cair no chão.

- Você e Matteo levaram a sério demais o realismo disso. Os dois não cansam de tentar me desmontar.

Gallo riu, acompanhado pelo acrobata e os dois saíram em busca de uma garrafa de vinho.

Viktorie se aproximou...

- Eu...Preciso te perguntar uma coisa.

Ele a olhou por alguns instantes. Ela parecia mais insegura do que normalmente. Ele logo respondeu:

- Você foi fantástica!

- Não, não é sobre minha performance. Eu só preciso falar sobre...Isso tudo, essas palavras, e todo resto, foi real?

Piero travou.

- Você diz sobre eu achar que estou apaixonado por você e você por mim? – Disse ele baixando a voz e se aproximando mais dela. – Por que quer saber?

- Porque eu...talvez...Não sei.

Piero não sabia esconder coisa alguma, principalmente quando se tratava de sentimentos.

- Eu gosto de verdade de você. Não escrevi nenhuma daquelas palavras, elas vieram do meu coração ao olhar seus olhos.

- Você...Eu...Eu também gosto de você.

- Como um poeta? Como um artista? Ou você gosta realmente de mim?

- Você sabe o que quero dizer. Não me faça pronunciar as palavras. Isso eu não farei. É tudo confuso demais.

- De fato é. Mas tudo o que foi dito precisava ser dito.

Os dois estavam bem próximos agora, parcialmente escondidos atrás do palco.

- Você não sai da minha cabeça.

- Isso é errado. E Kristof? E Anna?

- Você acha que sendo capazes de guardar múltiplas possibilidades dentro de nós mesmos, somos capazes de amar apenas uma pessoa de cada vez?

- Eu...Não sei. Mas talvez...

- Não me importam os “Talvez”. Eu sei o que sinto, e isso me basta.

Ele a puxou pela cintura para perto de si e a abraçou, afundando o rosto em seus cabelos sedosos. Seu perfume era incrível. A garota pareceu se arrepiar.

- É errado.

- Me desculpe, mas não consigo ver a paixão como algo errado.

- Pois eu acho. Ainda mais com tanta coisa envolvida.

- Simplesmente aconteceu. Eu não sei como nem porquê, mas aconteceu. É difícil admirar sua dança, sua conversa, seu sorriso sem se apaixonar. É difícil estar tão perto e não se envolver.

- Sim. É difícil estar tão perto e não... – As mãos da dançarina afagaram os cabelos do poeta, seus corpos ainda mais próximos, entrelaçados num abraço. Ela simplesmente perdeu o folego e não conseguiu mais responde-lo.

Foi Viktorie quem o puxou. Ele, por usa vez, afagou seus cabelos e a beijou. Beijou-a com carinho, vontade e paixão. O mudo se paralisou por uns instantes. Nada mais importava. O beijo se encaixou perfeitamente. Viktorie pareceu flutuar enquanto as mãos do rapaz percorriam lhe as costas. Ela o correspondeu. Ambos entraram em um universo paralelo. Por aquele instante, nada os impediria de serem felizes.

O momento se prolongou pelo que pareceu a eternidade, e ao mesmo tempo, acabou muito mais rápido do que gostariam.

- Eu...Não sei se devíamos ter feito isso.

- Nem eu. Mas seria impossível dizer que me arrependo.

- O que vamos fazer? Se alguém...Quando Kristof... Eu não...

- Também não consigo entender ou explicar nada disso. Mas adorei tudo o que aconteceu. Nunca fui corajoso o bastante para simplesmente seguir meu coração, mas agora basta, é minha paixão que me faz ser o que sou, e eu vou seguir apaixonado por você. Independentemente do que venha a seguir.

- Eu tenho medo.

- Eu também tenho, mas é inegável que algo acontece quando estamos juntos. O tempo parece parar, a luz parece surgir. Há uma energia diferente.

- Eu sinto a mesma energia. Isso é inegável. E tudo isso tem sido tão bom. Você tem sido tão bom. Estar nos seus braços me traz paz, é um carinho que eu nunca tinha recebido de absolutamente ninguém. Já tive alguém, além de Kristof, que me cativou, mas nem mesmo aquilo foi como isso está sendo agora. Você realmente se importa comigo, me olha com o coração.

- Me faz bem te ver sorrir, melhor ainda quando eu proporciono esse sorriso.

Abraçaram-se mais uma vez, um abraço que pode ter durado algumas horas, nenhum dos dois sabia dizer, apenas entregaram-se ao momento, ao que sentiam de todo o coração.

Ao pé de seu ouvido, Piero não pode deixar de escutar um sussurro baixinho:

- Eu amo você.

- Eu também amo você.

Kristof apareceu na tenda na manhã seguinte. Olhou desconfiado para a bailarina quando a viu cabisbaixa. Puxou-a pela cintura e sorriu. Contou a ela que conseguira uma proposta irrecusável para que ela se apresentasse nas ilhas ibéricas. Ela esperava por aquilo há anos, mas naquele momento não sabia o que dizer. Kristof a segurou pelos ombros, puxou seu rosto e a beijou apaixonadamente. Seus olhos procuraram imediatamente os olhos de Piero. Do outro lado da tenda, seu olhar se tornou triste ao vê-la conversando com o administrador.

Não se falaram durante aquele dia, mas os pensamentos de Piero durante a noite, permaneceram os mesmos. Via-se abraçado com Viktorie, lembrava daquele único beijo, e desejava mais. O problema maior era que se a cabeça já o confundia, o coração estava completamente dividido, e pareceu se rachar por completo quando Anna o encontrou perdido em pensamentos.

- A cabeça está longe, meu amor?

- Anna?! Que bom que está aqui. Eu não sabia que viria, eu...

- Difícil ver você sem palavras. O que tem tirado seu sono e suas palavras?

Ele a abraçou, incapaz de falar qualquer coisa.

- O que a trouxe para Verona? Eu estou realmente surpreso por te ver aqui.

- Vendi cada uma de minhas obras. Dei-me o direito de descansar por alguns dias antes de recomeçar o trabalho, e não há melhor lugar para descansar do que aqui com você.

Abraçaram-se novamente. Anna deitou no ombro de seu companheiro, sua mão automaticamente acariciando o rosto do amado.

Viktorie não conseguira dormir. A proposta de Kristof a pegou completamente desprevenida. Tinha a vida arranjada, mas como negar aquele sentimento absurdo que a consumia? Saiu de seu quarto e resolveu dar uma volta para pensar. Sua mente repetia em looping os olhos claros e a voz de Piero. Quando passou pelo alojamento do poeta, viu Anna deitada em seu ombro.

Piero jamais fora capaz e mentir para Anna. Enganá-la era o mesmo que enganar a si mesmo. Antes que dissessem mais qualquer palavra, ele contou a sua companheira sobre o que havia acontecido. Disse em meio às lágrimas que um beijo havia acontecido. Disse que a amava, mas que também estava apaixonado por Viktorie. Abriu seu coração como jamais havia feito, a não ser escondido sob suas maquiagens.

Anna o ouviu, respirou fundo e ficou em silêncio por alguns instantes. Se afastou e continuou em silêncio. A madrugada toda se passou sem que a artista dissesse uma única palavra. Assim que o sol nasceu, ela foi até Piero que chorara a noite toda.

- Não posso dizer que entendo como se sente, mas sei que seu coração é grande o bastante para amar duas pessoas, o meu, por sua vez, não tem essa capacidade. Não posso mais ficar com você. Sinto muito.

As lágrimas também tomavam seus olhos, mas ela não chorava. Piero sempre admirou essa força nela, mas dessa vez, isso apenas machucou seu coração de forma impressionante. Como fora capaz de magoar a mulher que mais amara?

Anna foi embora antes que o restante da trupe acordasse. Piero se viu sozinho, sem saber o que fazer. A culpa o consumia, mas ao mesmo tempo, os momentos com Viktorie voltavam a visitar sua mente.

Quando ela finalmente acordou, ele correu até ela. Depois de tantas conversas nas madrugadas, em que aprenderam tanto um sobre o outro, precisava dos ouvidos e dos abraços dela. Ele a amava, e agora sentia uma necessidade absurda de estar com ela.

Viktorie o evitou. Mal olhou em seus olhos quando ela correu para falar com ele.

- Por que me evita? Viktorie, por favor. – Pediu ele, tentando conversar, enquanto a garota desviava o olhar. – O que eu fiz de errado?

- Não quero conversar sobre isso. Nunca fui boa com esse tipo de diálogo.

- Do que está falando?

- O que aconteceu foi errado. Não deveria ter acontecido.

- Mas aconteceu. Nossas energias se conectaram e...

- Eu vi Anna com você ontem.

- Assim como eu vi Kristof te beijar, mas...

- Não há “mas”, Piero. Vou com ele para as ilhas Ibéricas.

- Você? Não me diga isso, por favor. – Disse ele, tomado por um desespero, enquanto mais uma vez as lágrimas tomavam seus olhos.

- Tomei minha decisão. Partiremos hoje de manhã.

O poeta ficou calado por um momento, um nó parecia ter se formado em sua garganta.

- Você disse que me amava...

- Isso não importa mais. Você tem Anna, eu tenho Kristof.

- Anna foi embora pela manhã. Disse que nunca mais quer me ver.

Viktorie pareceu abalada com a resposta melancólica do poeta. Seu coração parecia pulsar em duas batidas diferentes. A bailarina permaneceu calada por vários minutos, até que, finalmente, quebrou o silêncio.

- Eu sinto muito por isso, mas como eu disse, partirei para as ilhas Ibéricas hoje de manhã.

- Foi por amar você que eu... Eu quero ficar com você, Viktorie, você inspira minhas canções, é a musa de meus espetáculos.

- Você não pode colocar essa responsabilidade sobre meus ombros. Não tenho nada a ver com você e Anna. Não quero vê-lo infeliz, mas tomei minha decisão.

E sem, nem ao menos, mais um olhar, Viktorie partiu. Pegou suas malas e despediu-se do Signor Gallo junto com Kristof. Nem mesmo quis ver os demais membros da companhia.

Piero perdera seu chão. Em menos de 24 horas, um beijo o fez perder dois amores. Seu corpo parecia completamente anestesiado, seu coração pesava algumas toneladas. Do dia para a noite, entregou-se para seu sentimento mais profundo, sem querer mentir, contou para sua amada tudo o que sentia. E mesmo assim, agora estava sozinho.

Não era mais capaz de escrever, não era mais capaz de organizar seus sentimentos. Seu coração estava em frangalhos. Pensava em como Anna estava se sentindo. Em como magoara, por completo, o mulher que mais amou, sua parceira por tantos anos de vida. Pensava em como Viktorie estaria. Não achava que ela seria feliz com Kristof, queria protege-la disso, ser seu herói de alguma forma, salvar seu amor, como fizera na peça.

Mal conseguia pensar em si próprio, até porque, pensar em si próprio doía. Naquele momento, ele era todo culpa e rancor. Só queria que aquele sentimento passasse, e não sabia se isso iria acontecer.

Os textos alegres haviam se perdido, as noites sem dormir haviam começado. Enquanto Piero perdera a emoção, o Signor Gallo perdera no mesmo dia sua nova musa e a alma de seu poeta. Tocou a companhia Trevisana como pode, mas os aplausos já não tinham mais a mesma força.

“O espetáculo não pode parar. Mas o sentimento que nasceu e floresceu não é capaz de morrer do nada. Deixe o tempo se encarregar de seu serviço, deixe que o futuro aconteça como deve acontecer. Até lá, eu vou apenas sobreviver!”