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UM AMOR ETERNO


 
Ao fim de algum tempo de conversa, o anfitrião, o Dr. António, colocou cálices  na mesa à frente dos seus três convidados e perguntou-lhes o que queriam beber. As senhoras quiseram um Porto Velho, o Dr. Miguel preferiu um whisky. O Dr. António, de pé, serviu primeiro as interessadas no vinho do Porto e depois deitou uma porção de whisky para si e para o outro médico presente.
D. Ana bebeu um gole e depois reiniciou a conversa, focando o assunto que interrompera:
-
Eu acho que só as mulheres têm a capacidade de amar e perdoar. Tanto quanto sei, os homens são menos tolerantes, têm menos capacidade de sacrifício, resumindo, são mais egoístas.
O Dr. António tomou a palavra, concordando com a intervenção da D. Ana:
 -
Regra geral tem razão, minha cara amiga. No entanto, há umas semanas atrás, contei à nossa prezada D. Eduarda uma história que introduz exceções a essa regra.  
A D. Eduarda assentiu, recordando-se dessa narrativa.
O Dr. António retomou a palavra:

- Hoje conto-vos uma outra história, também real, constatada na minha vida profissional. Vocês tirarão as vossas conclusões. O caso relata-se rapidamente: Convivi com um casal idoso durante muitos anos, acho que mais de quarenta, sempre muito unidos. Eram meus pacientes, segui-lhes os problemas de saúde. Viviam sozinhos, não tinham filhos nem parentes próximos. Um dia ela adoeceu, era muito franzina e os seus pulmões não suportavam grandes humidades, de inverno tinha sempre crises. Essas crises foram-se avolumando, até que teve uma sucessão de AVC´s que a deixaram completamente paralisada, tetraplégica. O esposo esteve sempre ao seu lado, gastando o que não tinha para que nada faltasse à esposa enferma. Os gastos atingiram tal nível que teve de dispensar a criada. Passou ele a cozinhar, a limpar a casa, tratar das roupas e sobretudo a cuidar dela. Teve mesmo que vender mobiliário para conseguir enfrentar as despesas. Mais de uma vez, nos dias de visita ao seu lar, constatei a ternura com que ele lhe pegava ao colo e a levava à pequena divisão onde lhe dava banho. Eu aguardava na sala ao lado, mas imaginava o amor, a doçura que sempre uniu aqueles dois seres. 
Os dias foram passando até que uma forte crise de asma, aliada a outros problemas que como eu disse, já se arrastavam há bastante tempo, a levaram do nosso meio.
O funeral foi triste, foi das cenas mais pungentes que presenciei em toda a minha vida. Vê-lo abraçado ao caixão, com meia dúzia de pessoas presentes, certamente vizinhos, ou conhecidos, emocionou-me muito. Virei o rosto para não me verem chorar.

Ele só lhe sobreviveu um mês, morreu a dormir. Fui eu que lhe paguei o funeral, senti essa obrigação moral. Nunca vi amor assim, tão dedicado e com total entrega. Mas a vida é mesmo  deste jeito.

A D. Eduarda fungou ruidosamente para um lenço de mão e bebeu um gole de Porto, para disfarçar a emoção que sentira.
A D. Ana limpou os olhos e tocou na mão do Dr. António.
-
Sempre achei que o Dr. possui um coração de ouro. Olhe para o meu marido, adormeceu durante a sua narrativa... Só come e dorme, emoção nenhuma...
- Deixe-o lá, amiga, estava cansado e a lareira convida mesmo ao cochilo. Então ainda acha que só as mulheres têm essa capacidade de entrega? Sinceramente, acho que o caso que contei é uma exceção, mas as exceções também contam, não é verdade? - E pegando no seu copo, sorveu um golo de whisky e recostou-se na poltrona, olhando para as chamas que crepitavam suavemente por entre a madeira a arder.



Reedição
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 28/03/2021
Reeditado em 28/03/2021
Código do texto: T7217752
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