Dança.

Você se lembra da primeira vez que dançamos? Tudo era tão brilhante naquela noite que os olhos quase doíam, mas nada que nos fizesse reclamar, ou esquecer um do outro. O baile da escola estava quase acabando, mas a pista de dança ainda estava cheia de almas enquanto tocava alguma balada setentista. Lembra que me declarei pra ti na semana anterior? Meu coração palpitava quando você disse “sim”, e acho que no baile foi a primeira vez que estivemos de fato juntos na escola. Você teve a ideia de procurarmos umas cervejas na sala dos professores, e eu achei um absurdo até o momento que abrimos a geladeira e realmente encontramos bebida lá. O álcool viajava lentamente pelas nossas veias, enquanto eu e você viajamos no pensamento um do outro.

Te puxei pra uma dança, que você aceitou relutante. Nenhum de nós sabia se ritmar com a canção calma, nenhum de nós sabia os passos, mas isso não impediu de nos trançarmos bem ali no meio da quadra bem iluminada. Lembra do meu sorriso? Ele só surgia quando, em meio às risadas inocentes e leves, eu parava pra notar o seu. Seu sorriso tranquilo ao mesmo tempo ativo, instigante, curioso me fazia sorrir de volta. Eu tocava seus longos cabelos e me apaixonava por cada fio. Não sei como eu conseguia ter essas noções de amor tão sinceras em minha mente, tendo em vista o quanto éramos jovens naquela época.

Eu te beijei no meio da dança, e você, com seus braços de garota serena, me abraçou forte. Com os olhos fechados, e talvez até mesmo cego, eu conseguia ver um pequeno, mas forte brilho que você liberava a cada sorriso, a cada risada que dávamos juntos, a cada olhar. Era um momento, assim como muitos e muitos que viriam no futuro, onde nós imaginávamos que seria para sempre. Quando eu te olhava, você me fazia não imaginar o quanto o mundo seria cruel conosco.

E você se lembra da última vez que dançamos? Estava tudo tão escuro, que eu sequer conseguia ver os móveis em nossa casa. Os quartos e cômodos cheios de móveis eram agora mais vazios que nunca, e há tempos parecia que não havia alma ali. Acho que fazia algumas semanas que não nos olhávamos cara a cara, a não ser para assuntos sérios ou assinar alguns papéis que jaziam frios na mesa da sala. Nós bebíamos como se fosse ajudar em algo, mas no fundo o álcool não fazia diferença nenhuma, não sentíamos nada.

Te chamei algumas vezes para dançar, e você aceitou sem muita vontade. Não tocava música alguma e nós sabíamos vários passos, mas mesmo assim parecíamos descartáveis um pro outro naquela sala escura. Eu não conseguia sorrir, e você também não. Só os nossos rostos sisudos existiam agora, pois seu sorriso que um dia foi tudo, se tornou não mais que uma expressão cansada. Eu sentia todos os pesos de uma existência ali, na nossa falta de proximidade, nos seus cabelos que, como os meus, agora já eram grisalhos e caíam, em cada pequeno detalhe que percebo agora que sou velho.

Abracei-te no meio da dança, e você, com seus braços de mulher já vivida, me afastou lentamente. Meus olhos estavam mais abertos que nunca, mas eu não conseguia enxergar nada naquela escuridão. Nenhum de nós brilha mais. Não haviam sorrisos, não haviam risadas nem olhares profundos que os jovens tanto prezam. Foi um momento, assim como muitos outros que vieram antes, em que nós percebemos que isso iria morrer, que não somos mais que uma relação humana. Quando eu te olho agora, só consigo ver o quando a vida nos fez mal.

Este conto foi inspirado na música “Last dance” da banda britânica The Cure.

Guidosan
Enviado por Guidosan em 11/03/2021
Reeditado em 11/03/2021
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