A CONTA-GOTAS

@andreaagnus

Meus dedos cruzados apoiavam meu queixo e foi ao erguer minha cabeça, desviando meu olhar do livro sobre a mesa para vê-la adentrar a cafeteria, que fiquei pálido de espanto como no soneto. Onde estava a mulher pela qual esperei durante todos aqueles anos? Dez anos se passaram e eu me fiz outro homem somente para tê-la. Para dar orgulho e coragem a ela, persegui não só uma nova roupagem de mim, como também tudo o que eu podia ser de melhor.

Quando eu tinha vinte e dois anos e ela quarenta e dois, me lembro tão bem, como se aquela cena fosse independente da passagem do tempo para mostrar sua força. Eu de pé na porta da loja de calçados e ela dando-me um bom dia apático, apenas por hábito, se direcionou para escolher uma sandália na vitrine. Seu número era trinta e quatro, seus pés finos e delicados, eu tirei a sapatilha que ela calçava e coloquei uma a uma das cinco sandálias que ela havia escolhido. O ritual era mesmo: esperava-me, levantava, ia até o espelho baixo, analisava o conforto, a forma e perguntava minha opinião. Como vendedor meia boca que eu era, disfarçava minhas considerações verdadeiras, limitava-me apenas em dizer “essa ficou boa” e “essa outra um pouco melhor”. Contudo, o que eu queria dizer de fato era que nunca tinha visto uma mulher tão bela, que eu poderia ficar minha vida inteira diante dos seus pés e para mim bastava contemplar seus olhos verdes, me nutrir do seu sorriso e sonhar com minhas mãos passeando por sua cintura, por sua pele branca e macia.

Talvez meu desejo tenha provocado uma mensagem tão forte pro universo, que ela passou a ir à sapataria pelo menos duas vezes por mês e à medida que foi aumentando a sua frequência, também crescia minha coragem de chamá-la para tomar um café no final do expediente. Mas, a minha juventude e a aliança que ela trazia na mão esquerda fazia com que minha voz falhasse nos momentos propícios. Foi por isso que o primeiro convite partiu dela e dela também vieram todos os outros: o cinema, o restaurante e o motel.

Com apenas um mês de relacionamento, já lhe jurava amor eterno, pedia para ela deixar o esposo que eu cuidaria dela para sempre, escrevia-lhe poesias e cantava ao seu pé do ouvido em nossas pausas de um orgasmo a outro. Assim se passaram três meses e o marido traído descobriu e, tão como, a perdoou. Se eu tivesse uma mulher linda como aquela, lhe daria uma surra pedindo perdão, até beijaria seus pés após cada bofetada.

Ela, em sua ultima atitude de nobreza, veio me dizer adeus. Eu perguntei cabisbaixo e sem motivação para encará-la o porquê dela não me escolher se estávamos tão apaixonados e tudo o que ela se limitou a dizer foi “Ele precisa de mim, muito mais que você, Heitor! Você é jovem e vai encontrar uma mulher que te ame tanto quanto você me amou.” Após ela encerrar sua frase final, eu me limitei a gritar desesperado, “Eu nunca vou te esquecer, me dedicarei aos estudos e vou prosperar como escritor. Não serei vendedor de calçados o resto da vida. Tenho certeza que quando eu tiver o dinheiro do seu marido, talvez você considere ficar comigo, Isadora!”

Após a publicação do meu primeiro livro, recebi um e-mail de uma admiradora. Conheceria sua forma de falar em qualquer bilhete que ela escrevesse. Sentia a ligação de nossas almas e talvez por isso eu tenha conseguido tanto sucesso em meu primeiro romance, uma obra toda dedicada à nossa história de amor e nosso término prematuro. O assunto do e-mail era na verdade um pedido de reencontro. Dez anos se passaram e eu teria o trunfo do meu grande prêmio. Respondi a mensagem dizendo que iria levar um exemplar autografado para ela.

A cafeteria escolhida foi a mesma da primeira vez. Meu coração não me traiu, pois ele disparou quando a vi, mas não pelo motivo de sempre. Agarrei o livro, como se ele pudesse me proteger. Comecei pelos pés. As sandálias em tiras finas e delicadas que ela costumava usar, deram lugar a um calçado plataforma que eu costumava vender para as senhoras em minha época de juventude; os pés roliços caminhavam meio desajeitados, as pernas iam obedecendo à desarmonia das coxas que agora roçavam uma na outra; o vestido era mais curto do que ela poderia usar e não condizia com a numeração correta para aquele corpo esférico e, finalmente, ao tomar coragem para olhar seu rosto claro, o vi cheio como a lua e tudo o que eu reconheci nele foram os olhos de esmeraldas espremidos naquelas bochechas suadas.

Me coloquei de pé. Respirei fundo. Dei-lhe um beijo nas duas faces, meio constrangido, e quando ela insinuou dar-me um abraço usei meu livro para delimitar uma fronteira imaginária entre mim e ela, o segurando por uma extremidade e fiz suas mãos rechonchudas segurarem a outra. Nesse momento, percebi que ela não tinha mais aliança e me senti mal pelo pensamento cruel e sem escrúpulo: caberia um anel naquele dedo?

Comecei a arquitetar uma forma de me sair daquela situação. Entre um gole de café e outro, fui falando unicamente do meu processo de escrita e de como fui galgando minha carreira. Contei das dificuldades de publicação, dentre tantos assuntos que sufocasse qualquer tentativa que a fizesse falar sobre nós, do nosso passado e do motivo daquele convite.

Meu sucesso durou aproximadamente trinta minutos, e assim que ela pronunciou a frase “eu nunca te esqueci, Heitor”, me levantei e fingi que tinha um outro compromisso. Dei-lhe um beijo na testa com carinho e mirei meu olhar para a liberdade da porta de saída. A deixa foi dada pela garçonete que veio com uma grande torta de chocolate que a distraiu de seguir caminho comigo.

Já do lado de fora, dediquei um último olhar para ela pela janela da cafeteria. Tomado da mais vergonhosa pena, pensei: como lhe gritava mudo o peso dos anos em seu sorriso. Porém, observando um pouco mais a risada solitária dela para o livro sobre a mesa, jamais imaginei suas sórdidas intenções: a boca fina e pequena abriu-se enorme para devorar uma gafada generosa daquele bolo e, enquanto mastigava satisfeita, ela foi derramando a xícara de café a conta-gotas, página por página no livro que eu acabara de lhe presentear. Juro que meu impulso foi voltar imediatamente e dizer-lhe umas poucas e boas, mas foi aí que percebi que ela, mesmo sem saber ou sabendo, conseguiu atingir meu calcanhar de Aquiles. Aquela amante disforme, em seu gesto final de misericórdia, matou meu bem mais precioso: minha inspiração para escrever! Esta se dissolveu numa tarde de sábado, como açúcar em um café amargo demais para adoçar. Assim, me descobri como um escritor sem musa e um cafajeste sem causa.

Conto publicado na antologia TODAS AS FORMAS QUE HÁ DE AMAR com organização de Vanessa Passos do @pinturadaspalavras (2021)

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 25/02/2021
Reeditado em 25/02/2021
Código do texto: T7193011
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