Dezembro de 97

Mesmo já tendo corrido 20 anos, os detalhes continuam na minha mente: dezembro já estava quase na metade e aquela era a semana de recuperações finais do ano letivo. Eu não ia querer ser reprovado bem quando já estava terminando o 3º ano do 2º grau – era assim que a gente chamava na época – e só precisava daquele diploma pra poder seguir pra faculdade. É claro, isso se eu tivesse sido aprovado. Os resultados dos vestibulares só saiam em janeiro e entre a tensão de terminar a escola e a de finalmente começar História numa federal, eu ia administrando os meus 17 anos.

Pensando agora, enxergo que eu era um moleque bastante comum, mas não era assim que eu me via na época. Meus CDs dos Racionais, biografia do Malcolm X e camisa dos Panteras Negras (que juntei dinheiro por meses pra comprar) se juntavam ao pequeno black que eu vinha cultivando pra criar algo que naquele tempo era uma mistura confusa de busca por identidade racial e afirmação juvenil. Tenta entender que eu estava entre a descoberta de Spike Lee e a de Frantz Fanon, sendo que o desbravamento de mim mesmo também não estava muito avançado. Esse ainda iria levar um tempo.

Acabada a recuperação, eu esperava na saída do corredor pro pátio olhando pra fora. Enquanto estava em sala de aula, a chuva que tinha ameaçado cair a tarde inteira começara a desabar com força e não parecia estar perto de acabar. De onde estava eu podia ver o temporal alagando tudo entre o pátio e a quadra de esportes perto do portão, enquanto alguns alunos tentavam fazer às pressas o caminho até a rua. Pode ser que eu não quisesse arriscar molhar os cadernos na mochila,

ou talvez não quisesse chegar logo em casa pra ser bombardeado de perguntas sobre a prova, mas a questão é que resolvi esperar e enquanto aguardava recostado à parede, notei que o Wesley – que também estava na recuperação – havia chegado e feito o mesmo.

Era alguém interessante, o Wesley. Sua posição na classe me parece ambígua porque se hoje eu só consigo dividir a minha 3ª série entre Comportados e Turma do Fundão, ele não era nenhum dos dois. Sem ser necessariamente calado, rebelde ou participativo, conseguiu atravessar aquele ano letivo até o fim, apesar do seu tamanho e aparência indicarem que já tinha sido reprovado uma ou duas vezes. Se ao longo daqueles meses a gente trocou três palavras eu não lembro – enquanto os meus chegados eram quase todos maconheiros fãs de Planet Hemp e headbangers fãs de Sepultura, os dele, por mais que tente me lembrar, eu não tenho certeza. Tanto podiam ser a turma inteira como ninguém, na verdade.

Aquela vigília pelo fim da chuva deve ter me entediado ou talvez eu tivesse me sentido constrangido de ficar apenas em silêncio a poucos metros dele, mas a questão é que, ainda olhando pra porta, falei:

– Parece que a gente vai ficar aqui até amanhã – também sem me encarar, ele disse:

– Por mim não tem problema.

Como não respondi, acho que ficamos em silêncio por mais ou menos um minuto, os únicos sons sendo o temporal caindo e os carros passando pela rua em frente. Sem nenhum aviso, as luzes do corredor e das salas vizinhas se apagaram e uma mistura de murmúrios e gracejos percorreu o prédio da escola enquanto todos davam pela falta de energia elétrica. Agora iluminado apenas pelo cinza embaçado daquela tarde de chuva, o próprio tempo parecia em espera.

– Você já passou na faculdade? – perguntou o Wesley.

– Não sei. Acho que sim, mas tem que esperar sair o resultado ano que vem – respondi, meio desconfortável por ele não ter continuado em silêncio – eu não tinha certeza suficiente pra dizer que achava que sim, mas aquele era sempre o jeito mais rápido de conduzir as conversas sobre vestibular.

- Tomara que o mundo não acabe antes de você se formar, igual todo mundo acha, né? – retrucou ele, com um tom mais leve do que o anterior – e você pode ir pra faculdade com esse cabelo?

Eu costumava ser bem sensível a qualquer crítica em relação ao meu black. Tanto porque a maioria delas era escrota quanto porque não era fácil tratar dele e aquela era uma das poucas coisas de que gostava na minha aparência. “Vocês ainda vão ver presidentes com um maior que o meu”, costumava responder. Por algum motivo, no entanto, talvez o modo como a pergunta soou sem nenhuma maldade ou intenção de ofender, eu não me importei e apenas respondi:

- Claro que sim, lá não é o exercito – observando ele fazer um leve sinal de assentimento e sem saber como continuar aquela conversa, perguntei – o que você vai fazer agora?

- Ir pra casa, tirar um descanso e trabalhar de noite, por quê? – respondeu ele, parecendo surpreso que eu perguntasse.

- Não, tô falando agora depois de se formar. O que você vai fazer depois do 2º grau? – corrigi, por algum motivo desconfortável pela interpretação da minha pergunta.

- Ah – falou ele, se demorando como se tivesse que se lembrar de algo bem distante – eu quero arranjar alguma coisa com o diploma. Tentei o exercito ano passado, mas não entrei, fui dispensado. Agora com a escola completa deve dar pra conseguir alguma coisa boa e talvez eu faça curso técnico – completou. “Você também não sabe direito”, eu pensei. Hoje, penso que estranho seria se algum de nós dois naquela época tivéssemos certeza de alguma coisa.

– E por que você tinha certeza que eu tinha sido aprovado na faculdade? – perguntei, incerto sobre como prosseguir a conversa.

– E como não? Você é todo inteligente, todo engajado – respondeu ele, com um sorriso que eu não sabia se era irônico ou parceiro – peão de obra que você não ia virar.

Me senti um pouco desconcertado, tanto por não imaginar que esse garoto com quem eu nunca tinha falado antes tinha uma imagem a meu respeito quanto por não estar nem de longe tão certo sobre o meu próprio futuro quanto ele. Pensei em alguma consideração elogiosa pra fazer, mas me toquei de que eu não o conhecia. Na verdade, aquela era a primeira vez em que eu realmente reparava nele. O corpo alto e magro que vestia o uniforme, a pele castanha quase no meu tom e o cabelo aparado rente ao couro cabeludo podiam pertencer a metade dos alunos daquela e de qualquer outra escola estadual do país. Esse foi o primeiro momento em que quis saber alguma coisa sobre o Wesley.

O que respondi a ele eu não me lembro, mas sei que nos sentamos no chão do corredor enquanto a chuva continuava caindo persistente lá fora e os poucos alunos que restavam no prédio saiam pela porta à nossa frente. Nós mais do que falamos, conversamos, e apesar dos detalhes terem sumido da memória, ficaram os temas. A escola que acabava; a família que pressionava; o que estava por vir, fosse o que fosse. Especulamos sobre o que a gente sabia e não sabia e naquele momento só não falei mais porque ainda havia coisas que eu não confessava nem a mim mesmo. Com sua voz um pouco mais juvenil do que seu tamanho sugeria, os pelos no queixo de alguém que se esquece por uns dias de aparar e uns olhos estreitos e reluzentes que devolviam ao mundo um reflexo mais brilhante do que a imagem que receberam – todos os pontos em que eu só reparava naquele momento – o Wesley parecia real, único. Não sei quanto tempo se passou, mas naquela hora só

existiam o corredor escuro e aquele garoto pouco mais velho que eu – as preocupações não sei aonde tinham ido, talvez lá fora junto com a chuva.

Ainda estávamos conversando quando verifiquei a mochila pra ter certeza de que não tinha deixado nada em sala e me deparei com a sombrinha velha da minha mãe, que eu devia ter guardado dias atrás e esquecido ali. Surpreso por ter encontrado, falei:

– Olha só e eu esperando aqui – disse em tom casual, mas a verdade era que eu preferia não ter achado e pra esconder essa contrariedade, dele e de mim mesmo, me levantei, ainda que sem vontade de ir embora. Talvez fosse por não ter coragem de encarar o tempo forte bem à minha frente sozinho que ofereci:

– Quer carona? – ao que ele respondeu pegando a mochila e se levantando também.

Saímos para a chuva fria e, talvez por dividirmos uma sombrinha minúscula, estávamos com os braços nos ombros um do outro enquanto corríamos pelo pátio vazio – quem fez o gesto primeiro, não sei dizer. O temporal estava mais forte do que parecia do lado de dentro – Wesley e eu ficamos encharcados, as vistas turvas e nossas camisas ensopadas, grudando tanto na pele quanto uma na outra, enquanto corríamos ombro a ombro. Quando a tempestade finalmente venceu e rompeu as

ligações da sombrinha, ficamos perdidos de vez, com a água e o vento vindo como uma surra por todos os lados. Vendo que era impossível tentar chegar ao portão daquele modo, corremos para a quadra de esportes, que era coberta e ficava entre o prédio principal, de onde tínhamos vindo, e saída da frente.

Foi um alivio voltar a ter um teto sobre a cabeça. Assim como o prédio principal, a quadra estava às escuras e sem mais ninguém além de nós. As roupas molhadas pareciam pesar 01 kg e enquanto eu enxugava o rosto com a camisa do uniforme – sem perceber a idiotice de tentar me secar com um pano molhado – Wesley passou os dedos de leve pela ponta do meu cabelo, abaixado pela chuva, e disse, divertido:

– Então é assim que fica quando molha.

Sei que respondi alguma coisa, não lembro o quê, e nós dois rimos. Ele estava tão encharcado quanto eu e apesar do comentário casual, percebi que tremia de frio e tinha a respiração pesada, com o peito subindo e descendo da corrida. Notei que eu também estava assim. Ficamos mais algum tempo em silêncio, enquanto a chuva não dava sinais de passar.

– É, acho que não vai acabar tão cedo. Valeu pela carona, eu vou daqui – disse o Wesley, com gotas d’água ainda escorrendo pelo rosto.

– Falou, boa sorte – respondi. Pensei em dizer “foi bom falar com você, que pena que a gente não se conheceu antes”, mas calei. Eu não sei que sinal o meu corpo transmitia naquele momento, pensei nisso por anos até decidir que não era importante. Quando o Wesley se aproximou de mim antes de sair da quadra, pensei por dois segundos que seria para um abraço de despedida, desejos de sorte na vida e tal, mas quando chegou perto do meu corpo, foram a minha boca que ele procurou.

A partir daí só posso explicar o que houve por sensações. O frio do lábios dele; o calor bem-vindo do seu hálito, e junto com um sabor que parecia ser pasta de dente, o gosto de chuva como se eu estivesse beijando o próprio temporal. É estranho pensar o quanto tudo foi inesperado e ainda assim sem erros – perfeito. Não teve espaço pra estranhamento ou resistência da minha parte, só uma reciprocidade fortuita que parecia agir por conta própria. O ato era a última coisa que eu podia esperar naquela hora e ainda hoje um dos momentos mais inusitados da minha vida, mas ainda assim naquele minuto foi tão natural, tão correto para aquele eu adolescente, quanto o tempo forte que desaba numa tarde de dezembro.

Quando nossas bocas se afastaram, o Wesley foi até a borda da quadra, olhou pra fora por um segundo e então correu, desaparecendo na chuva. Só o que pensei naquele momento foi que devia ter dito tchau – talvez porque a gente não diga adeus quando tem 17 anos. Continuei onde estava e o fato de agora estar sozinho me pareceu o mais estranho do mundo. Eu não sei quanto tempo fiquei esperando estiar, mas quando isso aconteceu, saí rápido em direção ao portão como ele tinha feito.

Mesmo caindo com menos intensidade, o temporal então me parecia pior, mais frio e impiedoso. Tudo o mais naquele fim de tarde hoje me parecem só flashes: o ponto lotado, o ônibus pra casa, chegar no quarto e por a mochila no chão. Não vi sinal do Wesley enquanto percorria aquele caminho e é óbvio que nunca soube dele desde então. Do mesmo jeito que não sabia antes daquele dia.

Talvez não fosse uma lembrança tão viva ainda hoje se não fossem os tempos de chuva desses 20 anos pra cá. Mesmo que eu esteja resguardado em casa vendo o temporal pela janela, sinto o sabor gelado nos lábios e a água escorrendo pelo queixo como se estivesse do lado de fora, desprotegido, feito um menino que se põe debaixo da tempestade com a boca aberta brincando de provar o gosto do céu – de juventude, de conversar sem pressa num corredor escuro enquanto o mundo espera lá fora.