Insônia

Insônia

Tic, tac

Tic, tac

22h50min.

As batidas do relógio quase sincronizam com o meu peito.

Tic tac

Tic tac

Mesmo a maciez dos lençóis parece incomodar minha pele como se fossem espinhos. Não faz calor lá fora já que a noite costuma presentear os humanos com a brisa fresca e esta não seria diferente. A escuridão do quarto combina perfeitamente com o céu estrelado lá fora, mas nem mesmo estrelas eu desejo contar hoje.

Tic, tac

Tic tac

As músicas nórdicas e o som da água encontrando os rochedos soam distante. Seria essa a brisa que sinto agora? Virando uma vez mais na cama, coloco um travesseiro entre as pernas em mais uma tentativa frustrada de conforto. Olho para o relógio, 22h52min. Engraçado como o tempo parece zombar de mim, até os segundos passando são sentidos de forma diferente. Tempo tardio... tempo doloroso.

Tem noites que não durmo, pior que isso, há meses não sonho. Mesmo aqueles sonhos repetitivos que me faziam questionar serem lembranças de outra vida ou presságios de agouro não surgem. Quando meus olhos finalmente fecham eu sinto apenas o vazio, uma escuridão que de fato combina bem com a minha alma.

Mais uma virada na cama. Agora, olhando o teto, percebo as nuances de luzes e cores na brincadeira que a brisa e as cortinas me ofertam. Não havia reparado na frequência que o letreiro da farmácia piscava, nem que as cores eram tão vivas. Há quanto tempo ele esta ligado? Não sei, mas me atento agora ao chiado que ele faz.

Desisto. Talvez um copo d’agua ajude. Arrasto-me até a beira da cama e tento juntar forças para levantar. No relógio, 22h59min. Como pode? Cambaleando, aos tropeços pelos calçados e roupas espalhadas no chão consigo chegar à porta. Um perfume familiar paira no ar, se não soubesse que estava fora de linha há anos diria ser uma edição limitada de axe excite.

Alcanço o primeiro copo que vejo e na torneira mesmo o preencho até transbordar. Apoio-me na pia, a cabeça gira, sinto a pele suar.

- Algo de novo ou extraordinário hoje?

Aquela voz.

- Sente aqui, deve estar com fome e por isso não consegue dormir. Achei bolo cascão em um dos potes, está ótimo por sinal e tem café na garrafa.

Não consigo olhar para trás. O sono deve estar fazendo mal aos meus sentidos a tal ponto que ouço vozes.

Ssshhhhhiiiii – o chiado persiste.

Tic tac – o relógio não para.

Plic, plic, plic – e agora a goteira.

- O que faz aqui?

-Ei, eu moro aqui, lembra?

- Não faça piadas comigo, meu humor não está legal. O que faz aqui? Como entrou?

- Entrei pela porta, usando a chave. Estava pela redondeza e decidi passar por aqui comer algo. Tem certeza que está bem?

Nada faz sentido. Não há nada forçado, nada fora do lugar. Ele entrou mesmo pela porta que há anos me entregou as chaves. Como isso é possível? Não consigo olhar pra ele. Sinto medo, tristeza... anos de avalanches sentimentais me soterrando em segundos. Me falta ar, me falta equilíbrio. Sinto-o se aproximando pelas minhas costas, passos leves, quase silenciosos. Alcanço com cuidado umas das facas de carne. Percebo o braço dele passando sobre o meu ombro, não há outra saída.

- Ei, ei, ei... Está ficando doida? – sem sequer perceber retirou a faca da minha mão e colocou-a fora do meu alcance, seguido de um abraço apertado. eu senti o calor daquele abraço derreter anos de frieza como água fervente em cubos de gelo.

-É você mesmo. Como pode?

- Pensei que já tivesse explicado. Quer que eu fale novamente?

-Não precisa! Um pulo, seguido de mais um abraço. Um conforto que não sentia há muito.

- Tem assistido filmes de terror quando saio, não é? Já disse pra não enfrentar a Queelag sem as poções corretas.

- Acho que estive em um sonho de terror por longos anos. Será que despertei?

- Acho que precisa mesmo dormir. Venha cá, tenho alguns minutos ainda. Ajudo-te a pegar no sono.

Com todo afeto me ajudou a deitar, ajeitando os travesseiros e me cobrindo até o pescoço feito uma balinha. Um jeito infantil, talvez, mas repleto de carinho. Aos pés da cama ele sentou, um tanto travado pelas roupas que vestia, pegou o violão e começou a dedilhar sua canção favorita.

- Se eu dormir, quem me garante que estará aqui pela manhã?

- Eu sempre estarei. Quando acorda sempre me encontra jogando ao seu lado, não é? E assim sempre será. Preciso ir agora, durma bem.

- Fica por favor.

- Seu sonho é meu sonho.

Chegou bem perto, afagando minha juba repleta de cachos e beijou minha testa carinhosamente.

- Fique bem, Otimista.

A passos lentos dirigiu-se até a saída, lançou-me um último olhar doce e fechou a porta atrás de si.

E ela os olhos abriu.

Tic tac

Tic tac

Tudo permanece escuro. Não há letreiros, não há brisa. Não há música. O chiado insistente da tv fora do ar de um filme ela não assistiu, mas sentiu, soa na sala. os sons do relógio que marca 23h10min continuam frenéticos e a goteira, bem ... a gotas vinham de olhos marejados que insistiam em molhar o chão.

Córdia
Enviado por Córdia em 22/01/2021
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