A vida em migalhas

Ela me falou que ele está por vir. Não foi qualquer pessoa estranha, foi ela, a irmã, que costuma saber das coisas. É verdade que nem sempre se entenderam às mil maravilhas – às mil, é algo por certo exagerado – mas, depois de tantos anos, se desavenças houve após a morte do pai, apesar do pouco que havia para dividir, ou talvez por isso mesmo, agora parecem manter uma boa comunicação. Foi ela quem me deu a notícia, um tanto casualmente, como se não soubesse de nada – e será que há tanto assim para saber? – falou-me à porta de casa, diante de um jardinzinho que considero bonito, as flores bem distribuídas nas laterais, uma árvore de sombra junto ao muro de entrada, as grades ainda baixas em relação às outras que começam a levantar-se numa tentativa de defesa contra os recentes assaltos.

Eu vinha caminhando pela avenida, a maior da cidade, pensando que aquela primavera estava amena, excepcionalmente amena, os grandes ventos não sopravam, o sol fazia-nos o obséquio de aparecer quase todos os dias, dourando os campos que se espalhavam por nosso município, embora na estância o pessoal começasse a reclamar da falta de chuva, a seca rondando o gado, a plantação. Caminhava em direção à casa, pensando nos meus alunos de piano, que viriam depois do almoço, um atrás do outro, isto é, com um intervalo de apenas alguns minutos, viriam para que eu os colocasse a praticar, para que eu os orientasse nos estudos, pequenos interessados que davam um sentido ao meu viver. Gostava das terças e quintas, me mantinha ocupada, embora às vezes me enervasse, os exercícios repetiam-se, tinha vontade de sacudir a poeira, de soltar uns gritos, de estimulá-los, de fazê-los vibrar, mas, era assim mesmo, importante que persistissem, que se exercitassem, punhado de promessas que representavam, com suas vocações – seriam mesmo vocacionados, ou teriam vindo porque os pais os mandavam? – gente que poderia ter um futuro, enfim...

Passo na banca de jornais, seu Rui me cumprimenta com um sorriso franco, isso me aquece a alma, uma sensação de que por aqui me querem bem, apesar de tudo. Apesar do tamanho dessa cidade, do ambiente que por vezes me abafa, a falta de novidade pairando ao longo dos dias, as caras que dificilmente se renovam, apesar disso tudo, tenho uma sensação de que aqui é meu lugar, me encolho na casca, recolho as antenas, dormito na paz que não quero confundir com fuga, afinal nasci aqui, aqui fui criada, por que não voltaria, quando as coisas aconteceram, quando não havia mais razão para permanecer longe? Interrogações que me balançam, de vez em quando, interrogações que se chegam, de mansinho, quando estou às voltas comigo mesma, e que, a despeito da sutileza com que afloram, não deixam de causar o seu dano, ressuscitando mágoas.

Deixo-as de lado ao entrar, minha casa está com as janelas abertas, inundada de sol, minha casa me acolhe com uma alegria que me contamina, apesar dos móveis pesados, do tom escuro asfixiante, hoje iluminada de sol me dá ânimo, grande casa familiar que conheço desde que eu própria me conheço por gente, vou chegando devagar, mergulhando nessa claridade que vinda da rua se estende pelos aposentos, esquenta tudo que toca.

- Amélia! Está na hora do almoço.

Sei bem disso. Estou pronta, depois de lavar devidamente as mãos, estou pronta para a refeição. Sento-me na ponta da mesa ovalada, chamo-a para o meu lado, não me agrada almoçar sozinha.

- Já vou. Pode começar.

Vem vindo da cozinha, no seu andar desajeitado, desde que a coluna começou a incomodar, vem bamboleando, uma travessa bem segura entre as mãos. Espero-a, almoçamos juntas na mesa que se tornou tão grande para apenas nós duas.

Como foi mesmo que tudo começou? Já nem sei direito. Ou seja, até sei, mas tudo se perde no tempo, num passado que virou remoto, quando os meninos da colônia vinham de carroça para a escola, cavalinhos batendo os cascos nas pedras da rua, pais que depositavam os filhos diante do portão, alguns esperando que as crianças o adentrassem, e só então, tranqüilizados, partiam. Dois ou três, dentre os meus colegas, vinham de longe, encarapitados nas carroças, nem sempre confortáveis, diante das condições atmosféricas: havia dias em que bufavam ao sol, havia outros em que se encolhiam de frio. E, nos dias de chuva, era comum faltarem às aulas. Dentre os meus colegas de fora, um sobressaía, um menino magro, bastante alto para a idade, uns olhos grandes que passeavam inquiridores sobre o ambiente, e os cabelos – como eu gostava dos cabelos! – fartos, ondulados, mais compridos do que o habitual na época. O Luís Carlos descia da carroça de bombacha, cabeça erguida, e logo mergulhava em algum grupo de guris, desaparecendo da minha vista. E eu, distraída no meio das garotas, não me lembrava mais dele, até o momento em que ele se manifestava em aula: não falava muito, mas mostrava-se firme. Às vezes, corava. Lembro-me bem de tê-lo visto avermelhar, quando a professora se dirigia repentinamente a ele, flagrando-o na dúvida. E, então, parecia perder a voz, devorado pelo vermelho, titubeantemente frágil. Mas, logo que deixava de ser o foco da atenção, fechava a fisionomia, cerrava os lábios, como se mergulhasse em si mesmo. Eu, menina, já tinha a mania de observar os outros, de cuidar trejeitos e modos. Até hoje continuo xereta, não me apraz tanto acompanhar os gestos e os falares do pessoal da cidade, principalmente dos mais simples? Pois é, e continuo vivendo muito para dentro, não só interiorizada, mas, muitas vezes, ensimesmada. Se não fosse Rosa, minha onipresente companheira, não sei se teria ânimo para continuar aqui, depois de ter passado vários anos na cidade grande. Gostei de lá: foram anos cheios, foram anos variados, em que tive ocasião de saciar minha curiosidade intelectual. Ficou para trás, enfim, não vale a pena recordar aquele tempo, a nostalgia me vence, me deixa mal.

- Rosa!

Parece que às vezes a chamo apenas para senti-la perto, para apoiar-me no seu olhar acariciante, como se minha mãe fosse, ou uma irmã mais velha. Rosa que apareceu lá em casa meio por acaso, começou a brincar comigo e não me largou mais. Meus pais gostaram, era uma boa companhia para uma menina sozinha, carente de irmã.

- Sim, Amélia!

Chamo-a para juntas lagartearmos ao sol, enquanto meu aluno não chega.

Ao longo dos anos, muitas coisas se perderam. Foi assim que perdi o menino da carroça, para encontrá-lo um dia na minha frente, faceiro: não estás me reconhecendo? E, verdade seja dita, quedei-me na dúvida, o rosto continha algo de familiar, eu perscrutando os olhos, o nariz sólido, os cabelos ondulados, sim, eu desconfiava. E, então, diante da minha hesitação, ele se apresentou, melhor dito, se reapresentou: era o Luís Carlos, oito anos depois de ter desaparecido do meu horizonte, o Luís Carlos na plena condição de seus dezoito anos, peito mais largo, cabelos ainda longos, olhos muito grandes. Mui guapo se havia tornado, continuava alvo do meu interesse, apesar de todo o distanciamento que os anos haviam colocado entre nós. Se, naquela época, eu o mirava de longe, que poderia dizer da fase atual, em que mal o havia reconhecido? Trocamos algumas palavras, parcas palavras intercaladas por sorrisos, satisfação em nos vermos de novo, em descobrirmos que ainda existíamos, um e outro, vivendo cada qual a vida de cada um. E lá nos fomos nós, em direções diversas, que tão cedo não voltaram a cruzar-se.

Fiz o curso normal e cheguei a dar aulas. Pouco tempo, pois em seguida noivei e comecei a aprontar-me para o casamento. Nos meus vinte anos, Fernando, já trintão, passava-me segurança. E meus pais aprovaram, filho que era de um conhecido estancieiro. Em pouco tempo, numa bela festa, casamos.

Um primo convidou Fernando a advogar em seu escritório, e lá nos fomos para Porto Alegre. Mudança importante em minha vida, saída da cidadezinha para a capital, a nova realidade de dona de casa: percebia-me, com alguma estranheza, uma senhora. Na verdade, havia uma empregada, o que me deixava muito tempo vago. Para que os dias não se tornassem por demais compridos, procurei fazer todos os cursos que me atraíam. E, assim, voltei ao piano que, com tanto gosto, fizera desde pequena, estudei línguas, um pouco de pintura... Perguntavam-me se não estava grávida, mas nada ocorria, e eu continuava lampeira minha vida, passeávamos sempre que possível, embora Fernando, algumas vezes, extrapolasse na bebida, e então o caldo entornava, eu não sabia lidar com aquilo, sentia-me infeliz, impotente, qual vítima de um fado obscuro. Depois, as coisas se ajeitavam, ele procurava cuidar-se, eu desdobrava-me em carinhos, queria vê-lo bem, fazia as vezes de mãe e amiga, tentando protegê-lo do risco, afastá-lo da tentação. Então, ainda jovem, Fernando teve um enfarte, um enfarte fatal. E eu, sozinha, retornei para os pagos.

Uma vez nos descobrimos, em Porto Alegre. Para ser precisa: ele me descobriu, veio falar conosco, apresentando-se como assessor de um deputado. Falou-me de seu partido, das lutas que empreendiam. O seu olhar parado em mim, grande, interessado. Interessado? Assim me pareceu, naquele momento. Lembrou-me da nossa meninice no colégio das irmãs, daquele primário que havíamos feito juntos, ele vindo de fora, na carroça do pai, eu menina da cidade, aprendendo aos poucos a ser mocinha.

Quando voltei para a velha casa, minha casa de infância que precisei reformar por dentro e por fora – meus pais tinham ido morar em um apartamento, num dos primeiros edifícios que construíram na cidade - quando voltei ainda estatelada diante dos acontecimentos, a transformação repentina por que passava minha vida, Rosa reencontrada depois dos anos de nossa separação, alguns dias depois que me instalei, recebo a sua visita. Havia sabido, vinha solidarizar-se com a minha dor. Mais desenvolto, sentou-se ao sofá e conversou por alguns minutos, contando-me sobre o que fazia, suas andanças e trabalhos. Desculpou-se por não ter muito tempo, algumas vezes vinha à cidade, chegava até a campanha, via a mãe – o pai havia falecido – e, daí em diante, sempre que pudesse, viria ver-me. Pedia-me o número da minha casa, podia esquecer-se, o endereço completo claro que não, como não lembrar do nome da rua central, escreveria, ficasse certa de que me escreveria... Foi-se, cravando-me os grandes olhos argutos, já não tão magro, mas ainda elegante no porte, duas entradas sulcando os cabelos. Foi-se, e algo ficou dentro de mim, era o menino da carroça que construía sua existência, que virava homem da capital, num aparente 'savoir faire', que me chamou a atenção.

Foi a irmã que me disse que estava por vir. A irmã, que, suponho, está a par de sua agenda. Faz muitos anos que nos correspondemos, muitos anos que me escreve, que me protesta o seu afeto. Agora, quando lhe mandei dizer que comprei um computador, passou a enviar-me mensagens recheadas de flores. Rosas, gosto muito de rosas. Tenho recebido belos arranjos, de todas as cores. E a promessa de que virá ao meu encontro, logo que surgir a oportunidade. Está em Brasília, faz muito tempo, trabalha no Congresso. Ao longo desses anos, vi-o rapidamente, três vezes. Três vezes em que me visitou, gentil, abraçou-me longamente, dizendo (seria brincadeira?) que ainda viria buscar-me, logo que as coisas melhorassem. Seu nome apareceu envolvido com o esquema de corrupção, levei um susto ao descobrir a notícia no jornal, com que então... Apressou-se a explicar-me que não tinha nada a ver com aquilo, intrigas eram freqüentes no meio político, deixasse estar que a verdade seria restabelecida. E, no meio tempo, pretendia vir ao sul, sim, não se esquecia de seu querido sul, minha imagem o confortava naquela fase difícil. Depois que se havia separado, pensava muito em mim. Seis anos de um casamento frustrante, agora estava livre novamente. Que o esperasse...

Foi a irmã quem me disse que ele estava por vir. Aquela notícia ficou ecoando por todo o meu ser, promessa que passou a integrar a minha existência. A irmã devia saber o que dizia.

E, então, num dia enevoado e frio, logo depois que meu aluno se foi, Luís Carlos apareceu. Apareceu e me encantou com sua conversa, com seus olhares me desvendando, com seu abraço me esquentando por dentro, com seu pedido para ficar em minha companhia, naquele fim de semana. Rosa ajudou-me a preparar o quarto de hóspedes, depois tomou chá de sumiço. E Luís Carlos, de mansinho, me envolveu...

Quanto tempo faz? Já se vai um tempo. Mostro a Rosa, de vez em quando, as flores que me envia pela Internet. Antes, me mandava muito mais. Agora, estão escasseando. Minha companheira ri:

- Ainda estás esperando o teu príncipe? Deus do céu!

Não vai além, nunca me falou daquele fim de semana que passamos juntos. Não respondo. Por que o faria? No fundo, estou. Não sei quando virá, mas essa espera é um ingrediente fundamental em minha vida. Saio a caminhar, as árvores estão secas, mais um inverno chegou, mais um ano decorreu. E eu firme, tesa, olhando a cidade que se repete, fitando o vazio que, a qualquer momento, poderá virar presença. Onde andará o meu amigo? O que terá sido feito de sua vida? Continuo a caminhar, suspensa numa espera que se prolonga, notícias aparecem no jornal, manchetes de corrupção, torço para que esteja tudo bem com ele, há de ter resolvido seus problemas, quando menos imaginar estará diante de mim, com aqueles cabelos ondeados, os olhos vivos, ele, sim, ele.

Chego à porta de casa, vejo um vulto na sala, meu coração desnorteia:

- Olha só quem está aí!

Rosa aponta o meu primo. Entro e abraço-o. Um dia... um dia será ele. O vento sopra forte, sibilando por entre portas e janelas. Uma estranha música. Como num outro inverno...

(Relançamento)