Epifania
o computador marcava 18h e ana mal podia conter o sorriso que se formava em seus lábios. desligou seu monitor, tirou o crachá pendurado em seu pescoço, se despediu de seus colegas - com os quais não tinha a menor afinidade - e caminhou até o ponto de ônibus mais perto, tendo em mente como destino o centro cultural da cidade.
antes de sentir o gostinho do fim de semana, caco precisava enfrentar o dia mais movimentado no supermercado em que trabalhava. seu último cliente empurrava um carrinho cheio de produtos, seguido por uma mulher que poderia ser sua esposa, acompanhada de um carrinho igualmente cheio. o casal estava animado e tentava puxar papo com o jovem. registradas as últimas compras, logo chegou o funcionário do segundo turno escalado para o caixa 3, indicando que seu longo expediente havia terminado.
o jovem de cabelos compridos, liberado de suas funções, andou apressadamente até o vestiário. substituiu seu uniforme por uma calça jeans, uma camiseta preta e conservou seu all star surrado. seguiu até o estacionamento e pegou sua bicicleta, pedalando rumo ao centro cultural.
naquela sexta-feira abafada de março haveria uma sessão de cinema com início às 19h, no segundo piso do centro cultural. o relógio na parede apontava que faltavam poucos minutos para o filme começar e pietra, a responsável pelo centro naquela noite, tentava não encarar o relógio e esquecer o celular no bolso, enfrentava um divórcio difícil, e sempre que uma notificação alertava no aparelho parecia ser transmissor de más notícias.
para se distrair, tentava observar a fila de cadeiras a sua frente. podia ver as poucas pessoas que chegavam se acomodando em seus lugares e prestou atenção em uma jovem que se sentou na fila do meio, ajeitando sua mochila em seus pés, desviando seu olhar para não manter contato visual com ninguém. prestes a iniciar a sessão, um jovem de cabelos compridos se ajeitava em um dos assentos, a algumas cadeiras da garota da mochila.
as luzes apagaram, o filme começou. um roteiro sem muita ação, relatando acontecimentos cotidianos, com uma fotografia bonita e personagens complexos e contraditórios, ora as vítimas, ora os culpados, os mocinhos e os vilões ao mesmo tempo. em alguns momentos os telespectadores gargalharam, suspiraram, e até mesmo as pessoas que aparentavam ser mais fortes, limpavam uma ou outra lágrima persistente.
o longa-metragem apresentava várias narrativas; uma jovem cansada de seu trabalho e com problemas em se conectar com as pessoas, um rapaz que trabalhava em um mercado e estava incerto sobre o que fazer sobre seu futuro e uma mulher que sentia as certezas que colecionou durante a vida escaparem, como se fossem areia fina, em suas mãos.
mesmo com o foco na tela, limpando uma lágrima com a manga de seu casaco. por um breve momento, ana olhou à sua direita, cruzando seu olhar com um garoto à poucos metros na mesma fileira. como uma epifania, ela soube. ele sabia. e ambos sabiam que, sabiam. a arte salva. e, eventualmente, o amor também.