AMOR DO PASSADO

O AMOR DO PASSADO

O verão tinha sido rigoroso naquele ano. O sol causticante e as noites abafadas da estação sempre me incomodaram muito, apesar de criado nessa terra. Quando se aproximava novembro, meu corpo parecia reclamar. Minha pele era acometida de alergias e meu humor não era dos melhores.

Com um amigo fui me refugiar à beira da Lagoa, num barzinho aprazível. O verão já se fora e o mês de maio surgira, trazendo uma agradável brisa naquela tarde, quase noite, de sexta-feira.

O chopp estava gelado e com colarinho. O primeiro gole como que me lavou por dentro. Degustei cada gota daquela bebida.

Conversamos amenidades, enquanto o sol se preparava para descansar e dar passagem à lua que já se mostrava no céu.

De uma mesa do lado ouvi vozes. Um grupo de jovens conversava ruidosamente. Olhei desinteressadamente a princípio. Depois, uma menina me encantou e não consegui desviar os olhos dela. Era branquinha, loura com olhos claros e uma fisionomia muito alegre. Por um momento, imaginei que ela tivesse me fitado. Alertado pelo amigo, voltei a atenção para a nossa mesa, embora por vezes tenha sido flagrado olhando para ela.

A noite correu, o grupo ao lado se retirou e eu senti cansaço e uma vontade de também ir embora. Pagamos a conta e tomamos rumos diferentes.

Acordei no sábado, despertado pelos primeiros raios de sol. Sentia-me bem e com vontade de caminhar e aproveitar o dia de folga. Agora, o sol era agradável e me trazia paz e tranquilidade. Almocei num restaurante próximo e resolvi passear num shopping e olhar vitrines.

Por fim, me vi às portas de uma livraria. Entrei e me encaminhei para a seção dos livros de história e de literatura. Folheei alguns e já me preparava para sair, sem nada comprar, quando deparei com a mesma loirinha, que me encantara na noite anterior. Aproximei-me dela e disse:

-desculpe-me, penso que a conheço , pelo menos de vista.

-é verdade, nos vimos ontem no bar. Você não tirou os olhos da nossa mesa.

-perdoe-me, deveria ter sido mais sutil. Percebo que você foi bem mais discreta. Não observei que havia reparado.

Dali, saímos para um sorvete e a conversa fluiu levemente. Contou que cursava Belas Artes e que gostaria de um dia viajar e de conhecer lugares onde poderia tomar contato com obras clássicas. Eu, pobre trabalhador da área jurídica, com um sonho de ser escritor. Ela nascera no sul e viera para o sudeste em busca de um estudo mais aprofundado.

Já era noite, quando a deixei na porta de casa. Combinamos de nos encontrar na praia na manhã seguinte. Não consegui dormir bem naquela noite. Pensava nela com um carinho que eu nunca sentira antes. Parecia tão frágil, mas eu é que precisava dela.

Em breve, apresentou-me a seus amigos, que logo se tornaram meus amigos também. Tudo corria como eu esperava e minha vida tinha um outro sentido. Nunca me senti tão feliz e tão motivado.

Aquele ano passou muito rápido. O trabalho me parecia leve, porque eu tinha o que fazer mais tarde. Vê-la, sair com ela, amá-la era sempre diferente. Passar um fim de semana numa pousada na serra era um programa imperdível. Achei que seria e a faria feliz para sempre.

Um dia, entretanto, ela se foi. Seu sonho de viajar se tornara realidade. Recebera um convite para estudar na Europa e para trabalhar com grandes pintores e escultores. O convite é irrecusável, -disse ela. Partiria em um mês.

Meu mundo desabou. Sabia que ela tinha de ir, mas não me conformava com isso. Um inverno permanente caiu sobre mim. Os meus dias agora eram cinzentos e a alegria me abandonara. Foram meses em que a vida e o trabalho se tornaram pesados e sem razão de ser. Foi difícil vencer essa tristeza, mas consegui. O fato de saber pelos amigos que ela era feliz e realizada onde estava, me ajudou na recuperação.

Recentemente, soube que ela estava pensando em voltar, saudosa da praia, dos amigos e talvez de mim.

Porém, se for para trazer de novo a tristeza que deixou quando partiu, eu prefiro que não venha.

CONTINUAÇÃO……..

A despeito do que eu esperava, ela realmente voltou. Voltou pela praia, pelas amizades e também para tirar o meu sossego. Soube pelos amigos comuns que ela retornara e uma sensação de desconforto se apossou de mim. Um peso sobre o meu peito me impedia de respirar normalmente e um nó na garganta me sufocava.

Por alguns dias, procurei os lugares menos prováveis dela estar e sentia alívio quando a noite alta chegava e, mais uma vez, eu havia conseguido evitar o inevitável reencontro.

A expectativa de revê-la me angustiava. O medo me consumia. Não sabia como ela se comportaria; porém, tinha mais receio da minha própria reação. Conjecturei várias situações. Ela simplesmente me ignoraria ou se comportaria como se pudesse reviver nosso romance? E eu, como agiria? Demonstraria felicidade em revê-la ou quem sabe a tratasse friamente?

Na verdade, desde que ela se foi, algo sempre me incomodou. Passados os primeiros dias de completo abandono, comecei a nutrir por ela um sentimento estranho, misto de raiva e desilusão. Nem sequer queria saber da sua vida. Evitava aqueles que pudessem dela dar notícias. O ressentimento pelo amor desfeito falava bem alto.

Com o tempo, os sentimentos negativos foram sendo substituídos por uma quase certeza de que eu não lutara suficientemente pelo nosso amor e a deixara partir por fraqueza. Por que não a acompanhara em busca de seus sonhos? Como imaginei que seria feliz longe dela?

Absorto em meus pensamentos, fui convidado para uma reunião festiva, da qual ela participaria. Criei coragem e aceitei o convite. Afinal, estaria em meio a tantos amigos e não haveria motivos para recusá-lo.

A festa estava particularmente agradável, com boa música, bebida à vontade e muita conversa fiada. Finalmente, ela chegou bonita como sempre e esfuziante como nunca. Sorrindo, cumprimentava a todos com alegria em seus olhos. Eu, num canto do salão, esperava a minha vez de cumprimentá-la, sem saber como agir. Tinha a sensação de que a via pela primeira vez e não conseguia agir com naturalidade.

Chegou-se a mim e abraçou-me calorosa e longamente, como a matar a saudade que a distância só fez aumentar. Tremi ao sentir aquele corpo tocar o meu e minhas mágoas, minhas feridas e minha fraqueza deram lugar a uma sensação de bem-estar e de segurança, que há muito tempo eu não provava. Imaginei, naquele instante, que nunca mais viveria longe dela. Nossos amigos torciam por nós e não mais nos interromperam.

No dia seguinte, a praia e o sol nos esperavam e fizemos a sua vontade, deliciando-nos com mergulhos seguidos nas águas mornas e serenas do Arpoador e deixando dourar o corpo descuidadamente. Foi um final de semana que me deixou lembranças do passado vivido intensamente por nós.

Mais tarde, comentou que voltara a sua terra com a pretensão de expor suas telas inspiradas em temas brasileiros. Trouxera consigo inúmeros trabalhos e ansiava pela oportunidade de expô-los em uma galeria. Apesar de ser excelente artista, confessou-me não possuir tino para os negócios e que contava com a minha ajuda. Em seguida, convidou-me para conhecer seus quadros em sua casa. Fiquei vivamente impressionado com o seu talento. Sua estada no exterior e o contato com a cultura europeia transformaram-na numa mulher bem mais confiante e focada no seu trabalho e nos seus objetivos.

Posteriormente, apresentei-a a um amigo, que abriu as portas para a sua primeira exposição. Suas obras fizeram um sucesso extraordinário e diversos quadros foram adquiridos.

Eu admirava aquela mulher madura e talentosa, mas não conseguia vislumbrar a imagem daquela menina que me encantara em uma certa noite na Lagoa. Na verdade, eu também mudara bastante. Havia publicado alguns livros com boa aceitação dos leitores. Atualmente, só sei dela por publicações especializadas e através de mostras internacionais.

Aquele amor do passado vez por outra visita meus pensamentos, como algo de bom que desfrutei em minha juventude, em paz e sem sofrimento.

Se sofri outrora por amor, pior seria se nunca houvesse encontrado o amor.

ABC DAS LETRAS
Enviado por ABC DAS LETRAS em 08/01/2021
Código do texto: T7155363
Classificação de conteúdo: seguro