Azul de um Céu nunca visto (parte final)

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(nota autodepreciativa do personagem principal)

Quem sou eu? Essa pergunta tem me atormentado sempre. Por mais que eu me esforce para descobrir, simplesmente não consigo. Não sei o que responder. Acho, às vezes, que sou apenas escombros de um ser-humano; um rascunho mal feito, ou, sei lá, uma vontade que não se realiza. Sou espectro e lembrança, triste demais para a vida, calado demais para esse mundo de barulhos. Tem dias que estou razoavelmente bem, mas há outros em que passo me arrastando, buscando abrigo em lembranças e aconchego num futuro incerto. Estou à beira de um abismo e sei que posso despencar a qualquer momento; sei que pouca falta farei; quem me olha com amor?, admiração? Qualquer sentimento. A minha história poderia ser contada em uma única página de um livro ruim, feito por um escritor sem talento. Eu não sou alguém para quem a vida queira sorrir. Tenho rompantes, e nada extraordinário. Vivo tentando preencher vazios, encurtar caminhos, facilitar o que já está fácil. Tenho uma preguiça terrível de viver e um medo ainda maior da morte. Amo ardentemente uma mulher que não me ama e, se isso não é a morte, é bem pior; é viver sob a mira de um revólver sempre prestes a disparar; é ter que acordar todo dia e lembrar as mesmas coisas. Amar e não ser amado é estar definitivamente preso na teia de aranha do tempo, confinado, abatido, morto para tudo. Quem sou eu? Sou um coadjuvante na minha própria história.

O problema das cidades grandes é o barulho das ruas. Não só das ruas, mesmo dentro das casas há barulho. Ele enfrentava o das ruas, do restaurante, da faculdade, mas em casa o silêncio era total e assustador, às vezes. A maior parte do tempo em que ele estava em casa, ou dormia ou estudava. Procurava sempre ocupar a cabeça com alguma coisa, só para não ter que encarar os próprios pensamentos. Ele sabia que os pensamentos são os piores inimigos dos tristes. Ele se julgava triste, melancólico, sem graça. Não havia porque alguém gostar dele, mesmo assim tinha quem gostasse; estranho, ele pensava. Se ele fosse outra pessoa, não gostaria dele mesmo, daquela versão banal que ele era. Ele era blasé, como dizia o poeta. Ele buscou no dicionário o significado, alguém que exprime completa indiferença pela novidade, estava de acordo com o que ele pensava de si mesmo. Alguém que detesta o barulho das ruas, mas que não pode viver sem o barulho; o barulho mental, principalmente. Pensamento inquieto, louco, rápido, sobre multidão de coisas. Ele, um homem sozinho no mundo, longe de casa, pensando na mulher que ama e que não o ama; esperando que ela dê um sinal de vida, que o chame de volta para a vida dela. Ele deveria ligar, já faz tanto tempo, talvez ela o queira de volta, esteja arrependida, mas não sabe como dizer, como encontrá-lo. Resolveu escrever uma carta, não mandaria, mas ajudaria a passar a vontade. Pegou papel, caneta, sentou-se e começou a escrever; alheio, agora, ao barulho do mundo; atento ao amor em seu pensamento.

Regina o convidou para uma viagem. Sair do país, andar pelo mundo. Ela também estava cansada, um cansaço diferente, mas, mesmo assim, cansaço. O pai dela não a deixava respirar, queria de todo jeito que ela abandonasse o curso. Foi então que ela teve a ideia, pediu um tempo e dinheiro para viajar enquanto se decidia. O pai, esperançoso, aceitou de imediato. Ela então convidou aquele cara que também parecia perdido, ou que não tinha nada a perder. Ele disse que ia pensar.

Quando ela fez esse convite os dois estavam nus, mas não na cama dele. Estavam dentro de um carro numa rua escura num lugar que se perguntassem ele não saberia dizer. Mas ela sabia, ela o levou até lá e ofereceu toda sua beleza e juventude, além de uma proposta que lhe parecia extremamente tentadora. Era a chance dele se esconder das lembranças e de encontrar um novo rumo.

Estava decidido a acompanhar Regina. Colocou suas poucas roupas dentro da pequena mala e se sentou na cama, esperando. Não havia certezas em suas escolhas, antes uma necessidade de mudança. A mesma que tivera ao sair de casa há um tempo atrás. A faculdade ficaria pra depois. Adiaria aquele sonho para outro tempo, quando sua mente estivesse livre de tanto barulho. Talvez nem voltasse, não tinha ideia do que faria dali em diante, só queria fugir.

Disse pra mãe que estava indo para fora do país. Respondendo a suas perguntas, ele disse que era uma viagem de estudo, que voltaria logo. Ela começou a chorar, mas ele a consolou dizendo que ficaria tudo bem, seria uma vida nova. Novos lugares, pessoas, acontecimentos.

Ele levantou, foi até à janela, o sol já ia alto, o céu azul. Os olhos de Celine o procuraram e seu coração bateu de forma cansada. Queria prometer não pensar mais nela ou em qualquer coisa que religasse os pontos há tempos quebrados. Mudar de cenário era mais uma tentativa de desfrutar da esperança de não lembrar. Esperava encontrar dias nublados, paisagens obscuras e tudo que lhe distanciasse da claridade da mulher que havia lhe feito tão bem e tão mal, que seria seu amor e seu desamor para sempre.

Olhando a rua ele contemplava não o momento, mas os dias idos. Não se acostumava com a vida presente. Vivia em expectativa, esperando os próximos dias, quando algo acontecesse e a felicidade surgisse com esse acontecimento. Estranho era que o passado parecia, também, sempre bom. Mas os pensamentos traziam a realidade com uma força arrebatadora, fazendo com que seu consciente lembrasse que a vida nunca fora satisfatória, que sempre teve o complexo da infelicidade. Aquela leve tristeza no olhar, aquela ausência de palavras para expressar os sentimentos mais significativos, a necessidade imperiosa do silêncio, da casa, do vazio sempre fora seu aconchego, sua sina. O mundo andava tão errado, tão distante de ser perfeito, ou, pelo menos, aceitável.

Ele tinha que sair em poucos minutos, mas sentiu vontade de dormir, dormir para sempre, esquecer que existia, que o mundo esquecesse que um dia existira aquela pessoa, não deixar qualquer rastro de sua inútil presença no mundo. A vida é curta para esperas longas; a vida é longa para alguém tão triste. O mundo é insano para os mais sensíveis; o amor é cruel para os que se entregam. O tempo é lento para quem deseja, para quem apenas deseja, a felicidade.

O quarto era como um desenho, um rascunho, quadrado sem nada dentro, só um fantasma que não pode seguir a luz. Os livros ficariam, os sonhos ficariam, só o corpo iria, só o fatídico corpo, com suas impurezas, seus medos, suas angústias mais fundas e seu desprezo pelo amor. O amor, que era justamente o que lhe fazia fugir.

Quanto tempo ainda tinha? Dava para um cochilo rápido que nunca mais acabasse? Deitou-se, fechou os olhos, tapou-os com a mão, pediu aos pensamentos que se calassem, não havia jeito, nunca se calam, batem dentro da cabeça como um martelo em um prego que nunca é pregado. Será se um dia poderia dormir sem aquele martelo pregando algo em sua cabeça? Seus dedos se movimentavam como a catarem borboletas invisíveis, nunca as pega, nunca. Tempo de orgulho, tempo de dor, tempo de poesia triste, tempo e não tempo, sono, sonho, quase. Uma britadeira em chão invisível, longe demais até dos acontecimentos, um barulho de chão pesado, rios sonolentos, águas que nunca param de correr. Barulho surdo, britadeira, o corpo em transe, um sonho, o celular vibrando, chamada não identificada... alô. Uma voz rouca do outro lado da linha faz o coração dele disparar a mil... era ela.

(fim)

João Barros
Enviado por João Barros em 30/12/2020
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