Azul de um Céu nunca visto (continuação)

2

Ele falava com a mãe todos os dias e sempre diziam as mesmas coisas, os telefonemas eram geralmente no horário do almoço, ela perguntava como estavam as coisas e ele respondia que estavam bem, que gostava do curso e do trabalho, na biblioteca e no restaurante. Ela dava notícias da cidade, dos parentes e do pai dele, e contava algumas fofocas da vizinhança. Ele não perguntava, mas esperava que ela desse notícias de Céu, o que ela nunca fazia, talvez para protegê-lo, ele pensava. Às vezes o pai vinha falar com ele, mas só para abençoá-lo, o velho não tinha intimidade com aparelhos eletrônicos. Ele aproveitava e perguntava como estava o trabalho na oficina e se o pai estava bem de saúde. Naquela hora ele sentia saudade de casa e lembrava-se da comida que a mãe preparava, que era a melhor do mundo. Pensava no pai e em todas as vezes que ele tinha sido seu melhor amigo. As lágrimas vinham, mas ele não permitia que elas saíssem, ele precisava se concentrar no que tinha de fazer, não podia perder tempo chorando, não mais.

A vida não é fácil para ninguém, para os fracos ainda é pior, ele sabia disso, fora um até ali. O amor é uma coisa terrível, ele pensava; o amor não torna os homens fortes, mas fracos, meninos grandes implorando abrigo a quem não quer dar. O ódio também não torna os homens fortes, os torna bárbaros, do mesmo modo escravos de circunstâncias desconhecidas. Só a indiferença torna os homens fortes, o orgulho, o amor-próprio; a solidão faz parte dos que esperam, quem não sente falta de nada, nunca estará só. Enquanto ele dizia isso a si mesmo, seu coração batia desesperado por alguém que estava ele não sabia onde; uma mulher sem amor, apenas dois olhos muito azuis e uma boca apetitosa demais para apenas um homem usufruir.

O trabalho na biblioteca era gratificante. Além de estar em meio aos livros, uma de suas maiores paixões, ele podia ver pessoas de outros cursos, mulheres altas, ricas e indiferentes, provavelmente dos cursos de Medicina, Arquitetura e outros de alto padrão. Embora para ele, tudo isso fosse somente convenções humanas, não existia cursos bons ou cursos ruins, cursos de prestígio e cursos desprestigiados, existiam sim pessoas de talento e pessoas sem talento, pessoas esforçadas e pessoas preguiçosas, gente que fazia o melhor com o que tivesse em mãos, fosse um bisturi, um martelo ou um pincel. O mundo é assim, ele pensava, todos dependendo de todos, num círculo infindável de procura e oferta.

Para ele, aquelas mulheres orgulhosas eram objetos para se admirar, mas que no mundo das utilidades, tinham a mesma serventia de todo mundo, de acordo com o talento que tivessem, se tivessem algum. Ele gostava de olhar para elas e pensar que elas seriam um belo quadro de um pintor malsucedido, porque esses são sempre os mais bonitos, mas de pouco valor para aqueles que entendem de arte.

Na segunda noite em que foram juntos no ônibus, ele sussurrou no ouvido de Morena uma pergunta da qual já sabia a resposta:

“Você não quer conhecer meu quarto?”

E ela sorriu e disse apenas:

“Está muito tarde”.

“Vou deixar você em casa depois.”

“Está bem”, concordou ela, sem saber que ele já sabia que ela diria sim.

O ônibus estava completamente vazio e antes de descerem, trocaram beijos apaixonados ali mesmo no banco. Desceram juntos e quando chegaram ao cubículo em que ele morava, foram direto para a cama, agarrados vorazmente, com as bocas e os corpos colados, sentindo um o desejo do outro. Jogaram-se sobre o colchão, enquanto buscavam avidamente se livrarem das roupas que atrapalhavam a realização do sexo. A calça de Morena era muito apertada e tudo nela era de difícil acesso, mas ele conseguiu tirá-la e pôde, enfim, ver o corpo esplêndido da jovem inteiramente nu. Eles se amaram com pressa e sem culpa e ele disse algumas vezes que ela era perfeita, não como quem quisesse agradar ou pagar um benefício qualquer, mas porque realmente achava isso, que ela tinha tudo no exato lugar, sendo que cada parte tinha sua própria beleza e distinção e no final o conjunto que se formava era extraordinariamente harmonioso.

Ela nada dizia, apenas aceitava cada palavra como se aquilo fosse um mantra repetido inúmeras vezes durante todos os dias de sua existência, o que provavelmente era mesmo, e ela não só acreditasse no que lhe diziam, como tinha plena certeza de que era verdade, ela era mesmo fisicamente perfeita. Morena sabia que todos os seus defeitos estavam visceralmente ligados às escolhas equivocadas que havia tomado durante a vida, principalmente nos últimos anos e que aquela entrega prazerosa era só mais um equívoco, ela sentia que a delícia daquele pecado era o pecado em si, que seria sua ruína, mas ela não podia voltar atrás, ela não queria voltar.

Depois da transa, ele foi deixá-la em casa, numa rua mais acima, como ela dissera na cozinha do restaurante na noite anterior.

Eles repetiram aquele enredo nas noites seguintes, até ele perceber que ela estava envolvida e começar a recusá-la, não sempre, mas dia sim, dia não, para dá espaço ao pensamento e tempo para o coração bater sem o peso do amor. O dele estava totalmente imune, porque já não havia espaço, mas o dela era completamente vulnerável e impaciente.

Ele precisava de um tempo, disse a ela; Morena primeiro chorou, implorou; depois ficou brava, chamou ele de filho da puta. Ele pensou que ela era linda demais para implorar o amor de alguém, pensou em reconsiderar sua decisão, em jogar ela na cama e transar de um jeito bem selvagem, como sempre faziam, como ela gostava, mas por causa das palavras que ela dissera, chamá-lo de filho da puta, mesmo sabendo que essa expressão é apenas um ato desesperado de xingar o que ele tinha de mais caro e intocável, ele não voltou atrás, pediu para ela ir embora e nunca mais aparecer, achava que assim estaria salvando ela, entregando a mesma chave que Céu lhe entregara há algum tempo. Ela olhou para ele e em seus olhos, além de paixão, ele vislumbrou uma mágoa infinita; teve pena dela, quis abraçá-la e pedir desculpa, mas seu coração machucado não deixou que ele movesse um dedo, ela se foi sem dizer mais nada, deixando atrás de si uma sensação de terra devastada, de luto e medo sem fim. Seria tão bom se a gente pudesse estar sempre começando, ele pensou em voz alta, depois de fechar a porta.

Ele percebeu que os olhos verdes de Regina o procuravam de vez em quando, principalmente quando ele estava distraído. Ele olhava para o lado de repente e flagrava o olhar, agora encabulado, da mulher mais bonita da turma e talvez da faculdade inteira. Ela já tinha ido à biblioteca algumas vezes, ele a vira, mas fingira que não, continuava seu trabalho, indiferente.

Suas tarefas na biblioteca consistiam em arrumar livros nas prateleiras e recolher aqueles que os estudantes levavam para as mesas para fazerem suas pesquisas. A maior parte do tempo, no entanto, ele passava lendo, em pé pelos corredores ou mesmo sentado no piso frio do lugar, geralmente onde havia menos acesso.

Foi numa daquelas incursões pelos corredores perdidos da biblioteca, entre os livros menos amados, que Regina falou com ele pela primeira vez. Ela fingia procurar um livro, foi o que ele pensou, pois aquele corredor era o menos visitado de todos. Na busca por um livro inexistente, ela se aproximou, falou com intimidade como se fossem velhos amigos. A voz dela era levemente rouca e ao ouvi-la, ele sentiu uma leve pontada, um rasgo na memória fez seu coração disparar e a imagem querida mas repudiada veio-lhe como num flash. Ele a dissipou rapidamente, focando suas atenções na deusa em pé muito perto dele.

Ela chegou falando de um professor tal que era isso e era aquilo e blábláblá... ele balançava a cabeça em concordância, mas na verdade não dava atenção ao que ela dizia. Olhava a lombada de um livro que estava logo atrás dela e que tinha escrito apenas a palavra PAISAGENS, ele se perguntava sobre o que tratava aquele livro, se eram fotos de paisagens em lugares específicos, uma cidade, um país; ou paisagens variadas, de países distintos; ou se era um livro de poesia, ele apostava nessa última, e aquelas paisagens fossem metáforas e o título fosse uma ironia para um mundo destruído pelo próprio homem.

A propósito, meu nome é Regina, ela disse, abaixando-se um pouco e estendendo a mão para ele. Ele apertou a mão que ela havia estendido para ele, mas não disse seu nome, ela com certeza sabia. Você não quer se sentar?, ele perguntou, se ajeitando sobre os pés e colocando o livro aberto ao lado do próprio corpo. Regina hesitou um pouco, até que resolveu, sentou-se como ele com as pernas dobradas sob o corpo, desconfortável a princípio. Talvez com medo de que alguém a visse ali, sentada no piso, num corredor deserto com o estagiário da biblioteca. Ela tinha os cabelos loiros, olhos azuis e um corpo muito bonito, embora fosse diferente do de Morena, mas podia-se dizer também que era perfeito para o seu perfil.

Regina falava lentamente, como a medir cada palavra, mas não economizava nas informações. Disse que o pai era um banqueiro muito rico, parecia redundante o que ela disse, que dava demasiado valor ao dinheiro, que havia prometido deserdá-la se ela continuasse com a sandice de cursar Filosofia... falou de muitas outras coisas naquele pouco tempo, fazendo com que ele percebesse que ela não era muito diferente de ninguém no mundo. Ele falou pouco, passou a maior parte do tempo ouvindo o que ela dizia, olhando a boca que pretendia beijar em breve, bebendo cada sílaba que ela pronunciava, prevendo o momento em que suas línguas se encontrassem e ela enfim se calasse, sentindo apenas o movimento de seus lábios.

Ele viu nela um perigo; Morena já havia sido um risco que ele pensava ter se livrado, não que ele não gostasse dela, pelo contrário, tudo o que fizera foi para o bem dela, pensava ele ingenuamente, ninguém fica feliz sendo desprezado, todo mundo quer amor, nem que seja um pouco, até mesmo de mentira, uma ilusão para o ego, uma sensação artificial de felicidade, melhor do que a dor do abandono. Ela era um perigo, mas ele se deixou levar, tinha que ir de qualquer modo.

Dois dias sem Morena dá as caras no restaurante. Ele sabia que o motivo era ele, culpava-se por isso, não pelo término, mas por ter iniciado algo apenas por carência. Magoara uma menina boa, que sofreria tanto desnecessariamente por causa dele.

O pior veio depois, o dono do restaurante trouxe a notícia, a menina que trabalhava aqui, a estagiária, cometeu suicídio. Ele teve, antes de tudo, medo. Um medo desconhecido, misturando-se a uma tristeza que vinha de longe. Ele olhou para fora e viu que chovia fino, as luzes amarelas refletiam nas calçadas e no asfalto, e os carros estavam tão lentos como se em câmera lenta.

Morena deixara somente um bilhete em que falava de um amor perdido e da impossibilidade de continuar a vida sem esse amor, que era, segundo o escrito, o amor de sua vida. A culpa recaiu sobre o ex-namorado, pai da filha de Morena, tendo em vista que ela não havia deixado o nome do suposto amor. Ele sabia, no entanto, que ele era o amor do qual ela falava. Ele era o amor do momento, a paixão avassaladora que vira nos olhos dela, quando ele pediu que ela fosse embora. Ele sabia que aquele suicídio era uma vingança contra ele, a única vingança possível contra o desamor. Ela o acertara em cheio.

Naquela noite ele trabalhou perturbado, com o pensamento distante. Não conseguiu dormir nem se concentrar em nada no dia seguinte, nem mesmo falou com Regina, que o olhava, intrigada, sem se aproximar. Ele lembrava-se das palavras do poeta (de qual?), “o suicídio é uma solução definitiva para um problema passageiro”. Mas era uma solução e quem sofre não pensa no futuro, só consegue ver o problema e se surge um jeito de resolvê-lo, ele coloca em prática, mesmo que isso signifique o fim propriamente dito. Ele mesmo já pensara naquela solução algumas vezes. No auge da crise, quando seus olhos doíam com a lembrança do que viram, suas mãos congelavam com a frieza de todas as coisas que tocavam sem que fosse o corpo da amada, ele quis aquilo, só não fez porque sempre fora um covarde. Morena, pelo contrário, não era covarde, era forte, valente, dormia agora nas profundezas do amor. A visão dela era sublime. Sentiu medo de repente, um medo do amor, do que ele podia fazer com as pessoas. Precisava se afastar de Regina, ela o amaria e ele não seria capaz de retribuir, seu coração estava ocupado, comprometido, à espera, de que? Um chamado, talvez.

(continua...)

João Barros
Enviado por João Barros em 29/12/2020
Código do texto: T7146988
Classificação de conteúdo: seguro