Azul de um Céu nunca visto

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Ele aprendeu com ela que quando um homem trata bem demais uma mulher ela acaba trocando-o por outro que a trate mal. É uma espécie de lei feminina paradoxal que ele não entendia, mas que havia aprendido a colocar em prática. Estava dando certo até o momento, ele não sofria mais por ninguém.

Eles estavam bem até o dia em que ela desistiu. E não foi aos poucos, como costuma acontecer. Foi uma parada abrupta no meio da vida, como um carro que segue em alta velocidade e de repente bate, se despedaçando todo. O carro era ele, ela era o muro ou poste ou qualquer coisa muito sólida em que ele tivesse batido. Ela desistiu dele, como alguém que vai a uma loja e escolhe uma roupa, experimenta, diz que gostou e quando vai finalizar a compra, desiste.

Ele perguntou: “você tá desistindo de mim?”.

“Tô”, ela disse.

Não teve preâmbulo ou qualquer argumento, mas somente desistência, silêncio e solidão.

Depois daquele dia, ele ficou pensando nos possíveis erros, até se convencer que o seu único erro foi amar demais, dar atenção demais, carinho demais... Ele foi guloso no amor, quis mais do que podia ter. Agora seu pecado era o egoísmo, funcionava melhor; além de uma preguiça que ele tinha de ficar correndo atrás de quem lhe fugia das mãos. Ele esperava que ela ligasse, mas ele nunca ligaria, nunca.

Depois dela desistir e dele ter tentado mil vezes reconquistá-la sem sucesso, ele resolveu dar um rumo diferente à própria vida. Afinal, ele só tinha dezenove anos, havia terminado o Ensino Médio e precisava cursar uma faculdade. Ele gostava de Filosofia, mesmo sabendo que era um mercado difícil. Pensava em ser professor universitário depois de formado. Para que tudo isso desse certo, ele precisava deixar a pequena cidade em que morava, só assim esqueceria Celine, tentaria, pelo menos, e buscaria seu sonho. Também queria escrever um livro, mas precisava viver mais para ter o que contar.

Foi assim que ele deixou a cidade em que vivera seus dezenove anos, a mulher que amava desde sempre e que não o amava mais de uns tempos até ali, a mãe cuidando da casa e o pai cuidando da oficina de motos e carros, e veio para uma cidade maior, na tentativa de sepultar amores irreais e conseguir objetivos que, para os outros, seriam apenas mesquinhos, mas para ele eram de grande valor.

Ele morava num cubículo que tinha apenas uma cama, um guarda-roupa pequeno e um banheiro ainda menor. Tinha também uma mesinha e uma cadeira onde se sentava para estudar e fazer seus trabalhos. Os poucos livros que tinha ficavam amontoados no chão, no piso de cerâmicas azuis; um piso horrível, ele achava, lembrava a cor de velhas tumbas; um azul claro e enfadonho. A rua era calma e o bairro não apresentava perigos consideráveis em comparação a outros. O quarto ficava numa quitinete, onde outros moradores, os quais ele nunca tinha visto, residiam pagando, como ele, um preço razoável. Ele ia a pés pra faculdade, era perto o suficiente para isso, mas longe o bastante para que ele tivesse que sair um pouco mais cedo. Trabalhava pela manhã na biblioteca, uma espécie de estágio que era oferecido aos acadêmicos; almoçava no campus mesmo, por volta do meio-dia; estudava à tarde e, à noite, corria para fazer um bico como garçom num pequeno restaurante perto do centro. Jantava lá mesmo, depois do expediente. Para voltar para casa, tarde da noite, ele pegava um ônibus, pois não dava para ir a pés, porque era distante e porque havia o perigo das ruas escuras da cidade. Quando chegava em casa, exausto, tomava um banho e ia estudar ou fazer algum trabalho da faculdade. Dormia pouco e quase sempre sonhava com Celine e seus olhos azuis, o azul de um céu nunca visto. Por isso, ou porque ela era linda mais do que tudo, ele a chamava apenas de Céu.

No primeiro semestre do curso, ele percebeu que todas as matérias eram introdutórias, de Filosofia mesmo não tinha quase nada. Os professores eram quase todos ateus e usavam barbas longas como profetas do Velho Testamento, ele achava aquilo um paradoxo interessante. No entanto, ele não disse nada para a mãe, sobre a história dos professores serem ateus, ela ficaria escandalizada, pois era muito religiosa e se preocuparia com as “más influências” as quais o filho estava exposto.

Logo no primeiro dia de aula, apareceu uma mulher bela o suficiente para despertar nele um sentimento parecido com amor, mas que ele sabia não ser, ainda não. Loira, alta, de olhos verdes como um mar longínquo, ele pensou, na velha tentativa de tornar poéticas as banalidades físicas das pessoas, das mulheres, melhor dizendo. O nome dela era Regina e a única coisa que ela falou durante toda a aula foi o próprio nome, respondendo à pergunta do professor. Ela sentou-se na frente e ficou o tempo todo atenta ao que o velho mestre dizia, não olhou para os lados nem sorriu.

Ele também se sentava na primeira fileira; entre ela e ele, sentavam-se duas pessoas, uma mulher baixinha e simpática, Carmem Lúcia, o nome dela; e um cara alto e calado, que nunca dissera uma palavra durante as aulas. Parecia distante do mundo real, mais preocupado com alguma coisa dentro de si.

A turma era pequena e todos pareciam muito inteligentes, ele pensava que os debates seriam interessantes quando começassem as disciplinas realmente filosóficas, se é que se pode falar assim. Ele olhou para Regina algumas vezes, mas não fez nenhum plano de falar com ela, naquele dia ou em outro qualquer. Ela o procuraria se se interessasse; se não, a vida continuaria, como estava continuando.

No restaurante também havia algo interessante, uma menina de uns dezessete anos fora estagiar lá, ficou na recepção, fazia parte de um desses programas de jovens aprendizes. Era morena, cabelo meio ondulado e um corpo escultural, ele não pôde deixar de notar. Ele passou a chamá-la apenas Morena, por causa da cor e uma homenagem à sua beleza.

A noite estava agitada e ele não teve tempo de conversar com ela de forma demorada. Só depois do expediente, quando tiveram tempo para comerem o que sobrara do jantar dos mais afortunados, ele descobriu que ela morava no mesmo bairro que ele, uma rua acima, ela disse, depois de ele dizer a rua em que morava; que ela não era mais virgem, não que ele tivesse perguntado, ela mesma esclareceu, dizendo que tinha uma filha de dois anos, que ficava com a avó enquanto ela, Morena, fazia aquele estágio. Ele ficara se perguntando porque aquilo acontecia com tanta frequência, meninas tão novas sendo mães, um fato que podava sonhos e mudava futuros; porque as pessoas faziam escolhas estúpidas na vida, não o fato de ser mãe, isso para ele era algo extraordinário, estúpido era não esperar a hora certa, não se prevenir na hora do sexo, sabendo que as complicações são tão grandes.

Morena falava rápido e comia rápido também, não que fosse esfomeada, como são os estereótipos de pessoas pobres que aparecem na televisão, ele sabia, ela só estava com pressa, queria chegar em casa e ver a filha que, provavelmente, já dormia.

Eles saíram juntos, pegaram o mesmo ônibus, sentaram-se um ao lado do outro e conversaram durante todo o trajeto; quer dizer, conversaram não, Morena falou e ele ouviu em silêncio o que ela dizia. Ela usava uma calça jeans azul, que ficava bem colada ao corpo, mostrando os seus atributos físicos, chamando a atenção de homens e mulheres; vestia também uma camiseta branca onde havia a inscrição do programa do governo ao qual ela participava. Ela era jovem, linda e sabia conversar, embora falasse um pouco rápido demais; estava na terceira série do Ensino Médio e sonhava em fazer faculdade de Educação Física.

Ele decidiu que a teria, mas não ali, nem naquela noite; por isso, quando ele desceu, deu um beijo meio no rosto meio na boca de Morena e disse até amanhã, ela disse tchau e sorriu.

(continua...)

João Barros
Enviado por João Barros em 28/12/2020
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