Foi Engano

Cândida significa pureza, inocência e candura, que são exatamente as mesmas qualidades que descrevem aquela mulher de 47 anos que caminhava de cabeça baixa e olhos apertados pela calçada.

Por sua notável palidez, que pouco se diferenciava dos outros bebês, recebeu este nome, e por ele nutriu uma raiva contida. Cândida não estava entre os nomes mais populares, e ainda a forçava, de forma inconsciente, a agir como uma mulher pura e inocente, quando na verdade ela queria ser ela mesma.

Um vento forte e gelado varreu a calçada e jogou as folhas para o asfalto. O vestido de Cândida flutuou e suas pernas brancas ficaram à vista de quem ali passava.

Ela, ruborizada, segurou o vestido e deixou a bolsa cair. Era cômico vê-la conter o vestido que tremulava ao sabor do vento enquanto tentava agarrar a bolsa com a outra mão. Um senhor fez menção de apanhá-la, mas ela reagiu com um sorridente "não". Ainda com o vestido esvoaçante, segurou a bolsa contra o peito com tanta força que sentiu a alça do sutiã se romper.

Olhou para a vitrine e viu seu reflexo pouco nítido. Seus cabelos eram curtos e cacheados, penteados para o lado e presos por presilhas coloridas. Seu vestido tinha um tom azul claro e apertava seus seios fartos. Há muito não possuía cintura. Havia engordado nove quilos na primeira gravidez e dezesseis na segunda. Nenhuma dieta fora capaz de fazê-la recuperar seu corpo esbelto. Aquela cintura fina e o bumbum empinado ficaram para trás.

Endireitou o vestido e seguiu para o escritório onde trabalhava como contadora. Ao chegar ao elevador, notou o olhar debochado da secretária Valéria, vinte anos mais nova e bastante atraente. O mais irônico de tudo era que Cândida, quando tinha a idade dela, era bem mais bonita.

Valéria a olhou da cabeça aos pés e deixou escapar um sorriso no canto da boca, virando o rosto para o outro lado.

Cândida seguia para a sua mesa a passos lentos. Seus colegas a olhavam de um jeito diferente. Dentre eles, duas moças cochichavam enquanto ela tentava entender o que estava acontecendo. Aquilo não era normal. Ultimamente ela estava sendo tratada com indiferença, como se fosse invisível. Cândida não negava que esse tratamento era até bom. Não queria ser notada. A questão era que naquele dia em especial todas as atenções estavam voltadas para ela.

Alfredo, diretor da empresa, estava saindo do banheiro quando a viu passar.

— Que bom que você chegou. Precisamos conversar - disse ele, num tom frio e formal.

Cândida sentiu suas pernas vacilarem. Com tantos olhos a sua volta, mal conseguia acompanhar seu chefe, que andava a passos largos.

Ela se sentou e ficou pouco à vontade na enorme sala do diretor. Havia quadros de mulheres seminuas e um cheiro forte de uísque. Sobre a mesa, emoldurado a ouro, havia uma foto onde Alfredo abraçava a esposa e o filho de cinco anos. Todos estavam sorridentes.

— Cândida, você trabalha conosco há 26 anos, correto?

— Sim - respondeu, sentindo seu sangue gelar.

— Eu me lembro quando você entrou. Era muito bonita.

Alfredo olhou para ela com um ar nostálgico.

— Você iluminava este escritório. Mas isso já faz muito tempo. Casou-se, teve filhos e o tempo não lhe foi gentil.

— Sim, não pude me cuidar como deveria. Cuidar dos filhos toma muito tempo.

— Compreendo - atalhou ele. — Espero que me entenda também que estamos passando por um período de mudanças. A competitividade está acirrada e nossa empresa precisa sobreviver.

Já antevendo o que ele ia dizer, Cândida o interrompeu.

— Meus filhos já estão casados e moro apenas com meu marido. Ele não ganha tão mal, por isso eu posso propor uma redução de salário.

— Não se trata só de salário, Cândida. Há outras variáveis que precisam ser analisadas. Precisamos de sangue novo.

Alguém bateu à porta. Era Valéria. Alfredo abriu um largo sorriso.

— Eu trouxe os relatórios que pediu, Senhor Alfredo.

Ela debruçou-se sobre a mesa, e Alfredo pôde ver o seu provocante decote.

— Obrigado, Valéria.

Cândida então entendeu o queria seria esse "sangue novo". Não havia como competir.

— Vou precisar cumprir aviso prévio?

— Não será necessário. E como agradecimento por tantos anos de colaboração, você receberá uma bonificação na sua rescisão.

— Obrigado, senhor – disse ela, quase chorando.

Sua fronte se apagou, sobrando apenas o vazio de seus sonhos interrompidos. Uma vida dedicada à profissão que tanto amava fora interrompida de forma abrupta. Mas não foi por negligência, muito menos por um mero corte de salários, que ela perdeu o emprego. Pelo corredor, Cândida viu uma moça de dezenove anos seguindo para a mesa que antes era sua. Era incrivelmente bonita, com um corpo de fazer inveja, uma concorrente feroz para a audaciosa Valéria. Sangue novo, como disse o seu chefe.

Tentou chorar durante o percurso para casa, para diminuir a dor e a decepção que a dilaceravam, mas não conseguiu.

Só conseguia pensar em como seria sua vida dali para frente. Faltavam nove anos para se aposentar. O dinheiro da rescisão, somada à bonificação, seria suficiente para mantê-la por dois anos. Restariam sete.

Júlio, seu marido, trabalha como gerente comercial de uma fábrica de ferragens. Ele sozinho poderia manter os dois sem muitos apertos. Cândida, no entanto, não via como motivador ter de ser sustentada pelo marido. Iria procurar emprego e trabalharia até se aposentar.

O problema era que a mentalidade de sangue novo não estava restrita ao seu ex-chefe. As empresas em geral não contratavam pessoas quase aposentadas como ela. Davam preferência para os mais jovens, o que para ela não era de todo ruim. Eles também precisam de emprego, estão iniciando a vida profissional, tinham sonhos, uma casa para pagar. Cândida não tinha mais essas preocupações. Estava na fase de trabalhar por paixão e para ser independente.

Em casa, reorganizou a cozinha e preparou o almoço. Tomou um banho e se deitou, deixando todo o peso da sua triste realidade desabar sobre a cama. Aquele escritório ficará pequeno para as duas novatas. Alfredo deve estar lambendo os dedos, pensou ela.

Cândida acariciou o rosto flácido e sentiu as rugas como se fossem feridas profundas e dolorosas. Apalpou seu corpo, dando conta das gorduras localizadas. Até aquela manhã, não havia parado para reparar em si mesma, como mulher. Sentiu uma dor tão grande que parecia tomar seu fôlego. Era a dor da constatação, da descoberta. Descobriu que estava feia, fora dos padrões para arranjar trabalho e para ser esposa de um gerente comercial de cinquenta e um anos que aparentava ter quarenta.

Abraçou-se em busca de conforto, mas não conseguia encontrar. Apenas enxergava aqueles olhos cruéis vigiando cada centímetro do seu corpo. Tudo girava em torno da sua aparência. Se estavam felizes, era porque faziam piadas sobre ela, se estavam tristes, culpavam-na por deixar o ambiente melancólico. Não a queriam mais. Estavam cansados, e ela também.

A noite caiu sem que ela percebesse. Acordou e sentiu fortes dores no pescoço. Havia dormido de mal jeito.

Júlio estacionou o carro e bateu à porta. Chegou quarenta minutos além do habitual. Sua camisa estava um pouco amarrotada, e a gravata, desalinhada. Estava bastante estressado.

Ele a beijou sem paixão, um beijo seco e distante. Júlio não notou a melancolia da esposa. Apenas seguiu para a cozinha e pegou uma lata de cerveja. Voltou para a sala e se sentou na poltrona.

— Por que se atrasou? – perguntou Cândida.

— Hoje o trânsito estava horrível – respondeu ele, rispidamente. — Engarrafamento na via principal, de ponta a ponta, buzinas e muita encheção de saco...

— Entendo. Poderia ter me ligado. Eu teria preparado algo para você comer.

— Não se preocupe, como qualquer coisa da geladeira.

Sequer olhou para ela. Júlio sempre fora um homem amoroso, gostava de conversar enquanto a acariciava. Falava de seu dia e gostava de ouvir sobre o dia dela. Mas nos últimos meses esse comportamento vinha mudando. Tornou-se um marido distante e alheio a tudo que se relacionava à esposa. Se comportava como se nada mais importasse, como se a vida fosse algo mecânico, roteirizado e sem emoção. Agia e a fitava com frieza, não a reconhecia como a bela mulher que conheceu há vinte e oito anos.

— Fiz frango à milanesa. Posso descongelar para você.

— Pode ser...

Pode ser que Júlio não a amasse mais. Pode ser que sua vida estava desmoronando e ela só percebeu quando perdeu o emprego. Aliás, como iria contar a ele? "Amor, fui demitida". "Ok, pode ser que não seja o emprego ideal para você", ele responderia, olhando para a TV e segurando a lata de cerveja.

Não viria qualquer conforto daquela alma gelada se lhe contasse. Cândida achou por bem se calar, sofrer sozinha por um tempo. Ele não precisava saber. Júlio pagava as contas e não fazia questão do salário dela. Chegava sempre depois e provavelmente jamais descobriria.

Largou a lata amassada sobre o carpete, deu a volta pela poltrona e a encarou por um breve instante.

— Algum problema? – perguntou ele, sem demonstrar interesse na resposta.

— Dormi de mau jeito. Meu pescoço dói.

— Entendo... – bocejou. — Vou dormir. Boa noite.

Júlio a beijou, mas seus lábios secos mal tocaram sua face enrugada. Ele não mais buscava sua boca. De fato estava distante, o amor que sentia estava se dissipando como fumaça.

Cândida viu o marido subir para o quarto. Ele arrastava a perna esquerda, o que fazia há vinte anos, desde o acidente de carro que a fraturou seriamente. Júlio subiu sozinho o mesmo lance de escadas que outrora percorreu com sua amada nos braços. Lembranças de momentos felizes, nada mais.

Sozinha, deitou-se no sofá. A dor no pescoço ainda a incomodava. Voltou seu olhar para a janela e viu um casal de idosos cruzar a calçada. Estavam tão felizes, pareciam dois jovens apaixonados que desconheciam os percalços de uma vida a dois.

"Em breve teremos nossa casa, meu amor", disse Júlio, antes de deixá-la na casa dos pais dela. Ele tinha acabado de terminar a faculdade de Engenharia Civil e já mirava um emprego em uma importante corporação do ramo de construção. Quanto entusiasmo havia em sua voz, um jovem forte e de olhos brilhantes como as estrelas.

Ela suspirou, e com sofreguidão, voltou seu rosto para a escuridão da sala. Não queria ver pessoas felizes caminhando lá fora, era como se fosse uma provocação, como se dissessem "você não pode ser feliz, não como nós".

A escuridão era tão tranquila. Havia silêncio e as lembranças não encontravam refúgio, não eram bem-vindas. Só existia o vazio. Mas havia muito espaço para a dor, para o ressentimento e o desespero. Se permanecesse muito tempo naquele mundo envolto pela penumbra, ficaria louca.

O sono chegou sem aviso e a fez adormecer. Cândida despertou com a vibração do celular. Já passava das 2h. Tratava-se de um número desconhecido. Ela não costumava atender, mas era curioso imaginar que um estranho se atrevesse a incomodá-la àquela hora.

— Alô...

A voz dela soou como um sopro. Do outro lado, alguém respondeu.

— Letícia, que bom que atendeu, preciso falar com você.

Era uma voz masculina e aflita. Mesmo sendo engano, Cândida tentou se mostrar solícita.

— Esse número não é da Letícia, mas posso ajudá-lo, se desejar.

— Quem fala?

— Cândida.

Foi uma atitude arriscada se identificar para um estranho. Cândida temeu pela própria segurança, mas o homem permanecia aflito, e isso a comovia de tal modo que correria todos os perigos para continuar a conversa.

— Não sei se você pode me ajudar. Acho que ninguém pode.

— Poderia me dar uma chance, quem sabe – disse, sorrindo.

— Foi tão inesperado... Quero dizer, não esperava que ela fosse capaz de...

Ele ficou em silêncio. Cândida não estava disposta a desistir.

— O que ela fez?

— Ela me traiu. Analice me traiu sem o mínimo escrúpulo.

— Você é casado?

— Não por muito tempo. Pretendo acabar com a farsa que se tornou o meu casamento.

— Tem certeza que ela o traiu?

— Eu a vi com outro homem no centro da cidade. Estavam fazendo compras.

— Isso não é exatamente uma traição. Pode ser apenas um amigo.

— Após saírem da loja, foram para um motel. Uma amizade colorida, você quis dizer – disse ele, com certo sarcasmo.

— Sinto muito... Não posso imaginar o que está sentindo, mas sei que é muito difícil passar por esta situação.

— Você é casada?

Cândida ficou em silêncio. Já havia se identificado para um estranho, agora, precisava decidir se revelava mais uma informação pessoal.

— Sou...

— Já passou por isso?

— Talvez.

Talvez estivesse passando por isso e não havia se dado conta. A frieza e indiferença de Júlio seriam indícios de que havia outra mulher em sua vida.

— Não se preocupe, não se trata de paranoia. Somos capazes de sentir quando estamos sendo traídos. Imagine que a casamento produz uma espécie de intuição capaz de nós alertar quando a confiança está sendo quebrada. Você só precisa ter provas suficientes para confrontar seu marido sem ser tomada por louca ou paranoica.

— Como faço isso?

— Só existe um meio: precisa espioná-lo. Faça-o com muita cautela, para não ser descoberta.

— Não sei se sou capaz...

— Você consegue, eu sei.

O coração de Cândida bateu forte. Considerou com sobriedade a ideia de espionar o marido. Depois de perder o emprego, teria todo tempo do mundo.

— Preciso desligar – disse ela, num sussurro. — Ele pode ouvir.

— Podemos nos falar amanhã?

— Sim.

Aquele "sim" foi tão enérgico e convicto que a fez sorrir. Cândida largou o telefone e tocou-lhe o rosto. Estava vermelho e quente. Estaria ela vivendo uma aventura? Poderia, de fato, confiar naquele estranho? Eram essas as perguntas que fazia a si mesma, e com as quais foi se deitar ao lado do homem que lhe provocara recentes desconfianças.

Com o despontar dos primeiros raios de sol, Cândida sentiu os lábios gelados do marido em sua face. Comprimiu os olhos e os abriu, esticando os braços e pernas para se espreguiçar.

Júlio já estava à porta, elegante como sempre com seu terno azul escuro. Cândida tentou dizer algo, mas calou-se quando a porta se fechou. Permaneceu na cama por mais meia hora, pensando em como seu marido estava aproveitando a nova vida ao lado de outra mulher, e como ela ficaria nessa história.

O dia estava bonito, céu descoberto e clima ameno. Ela abriu a janela e respirou o ar puro. Seu corpo estremeceu com a brisa que perpassou seu rosto.

Tomou um banho demorado e sentiu uma profunda paz interior. Diante do espelho, maquiou-se discretamente e penteou os cabelos com o olhar distante e divagador. Vestiu uma blusa branca de manga curta e um short jeans bastante apertado. Riu-se quando voltou ao espelho e viu que parecia uma adolescente com aquela roupa.

Foi para a cozinha e preparou o café. Tomou uma xícara de chá com torradas e terminou com um copo de leite e rosquinhas.

Cândida estava tranquila. O dia aparentemente começara bem, estava feliz e confiante, mas uma crescente insegurança batia à porta de sua tranquilidade.

Seu marido costumava almoçar num restaurante bastante requintado no centro da cidade. Durante boa parte da manhã ela fora tentada pela ideia de passar lá para ver se ele ainda almoçava sozinho. Mas o medo de se deparar com outra mulher sorrindo para ele e trocando carícias a fez desistir.

Pegou o jornal e folheou a página de ofertas de emprego. Circulou algumas opções que julgou interessantes, porém não se sentia animada para ir às entrevistas. Largou o jornal sobre a mesa de centro e deitou-se no sofá.

Olhava para o teto com o coração apertado. Pensou em ligar para filha para desabafar, mas achou que iria incomodá-la com seus problemas. Pâmela estava casada há menos de um ano e ainda estava curtindo os prazeres do matrimônio.

O telefone tocou, fazendo-a despertar de seus devaneios. Era o mesmo número desconhecido da noite anterior.

— Desculpe-me por ligar a essa hora. Achei que seria o momento ideal, já que seu marido está no trabalho.

— Não se preocupe, estou sozinha.

— Que ótimo. Podemos conversar, então.

— Eu ainda não sei o seu nome, se não se importa – disse ela, num tom inquietante.

— Por Deus! Sequer me apresentei. Chamo-me Germano.

Cândida fez uma breve meditação. Este poderia não ser o nome dele, mas já era um começo.

— Germano, sobre o que você me disse ontem. Creio que não tenho coragem.

— Mas precisa ter. Vai viver com essa dúvida e deixar que ele brinque com seus sentimentos?

— Não sei mais o que eu quero. Só queria um pouco de paz. Parece que o mundo conspira contra mim.

— O mundo conspira a favor das pessoas honradas como você. Eu acredito nisso.

— Você mal me conhece...

Germano ficou em silêncio, mas depois disse:

— Tem razão, não a conheço, mas pelo pouco que já conversamos, pude notar que é uma mulher sincera e gentil. São qualidades raras hoje em dia.

— Obrigada.

Cândida sorriu. Há muito não ouvia um elogio.

— Você pode simplesmente perguntar ao seu marido, embora seja pouco provável que ele se abra para você.

— Eu queria acreditar que fosse tudo um engano.

— Falei a mesma coisa para mim mesmo, Cândida. A fase de negação é a mais dolorosa. Criar uma ilusão para fugir da dor da verdade é um meio cruel de resolver o problema.

— Aceitar a verdade é tão cruel quanto...

— Mas é o certo – atalhou ele. — É o primeiro passo para mudar de vida.

— Mudar de vida?

— Sim. Curar as cicatrizes e seguir em frente. Preparar o coração para um novo amor.

— Eu não vou conseguir...

Cândida começou a chorar. Suas lágrimas verteram com calor, com angústia.

— Eu queria estar ao seu lado para abraçá-la. Quero que sinta o meu abraço para abrandar a sua dor.

— Preciso mesmo de um abraço – disse ela, entre soluços. — Seria bom se pudesse estar aqui.

— Tenha calma. Tudo é questão de paciência e saber agir no momento certo. Agora preciso desligar. Vamos nos falar em breve.

— Por favor, não desligue...

— Vou te ligar à noite.

— Ele pode nos ouvir.

— Não vai, confie em mim.

Germano desligou. O silêncio fez com que Cândida se sentisse perdida. Era como se aquela voz fosse o seu porto seguro, seu alicerce, sua salvação. Ela passou a se sentir ansiosa e contar as horas para a próxima ligação.

Se ficasse em casa esperando as horas passarem ou realizando qualquer tarefa tediosa, sua ansiedade apenas aumentaria. Então, Cândida resolveu ir ao centro da cidade para fazer compras.

Ela queria comprar alguns vestidos para renovar o guarda-roupa. Foi a uma loja onde sempre comprava suas roupas. Chegando lá, fora bem recebida pela vendedora, uma moça alta, morena e de cabelos cacheados.

— Posso ajudá-la?

Cândida havia notado belos vestidos ao fundo da imensa loja.

— Gostaria de ver aqueles vestidos. Parecem muito bonitos.

A vendedora a fitou com surpresa. Olhou para uma cliente que ouvia a conversa e fez sinal de que não havia entendido.

— Perdão, senhora. São aqueles que estão ao lado das blusas, ao fundo?

— Sim.

— Perdão, mas acho que não temos o seu tamanho.

Quando Cândida ouviu aquilo, sentiu seu corpo afundar o piso. Suas pernas passaram a doer como se um enorme peso pousasse em suas costas. A cliente que ouvia a conversa sorriu discretamente, depois, saiu da loja com duas sacolas de compras.

— Você nem sabe o meu tamanho – disse ela, num tom infantil.

— Desculpe-me, senhora. Esses vestidos são curtos, então pensei...

— Que sou gorda demais para vesti-los?

— Não foi isso que eu quis dizer...

O gerente ouviu a conversa e se aproximou das duas. Disse, num tom solícito:

— Posso ajudá-la?

— Essa jovem insinuou que sou gorda demais para usar aqueles vestidos.

— Tenho certeza que ela não quis dizer isso, não é Flávia?

— Não senhor.

— Ela nem perguntou o meu tamanho – insistiu Cândida.

— Pois não, senhora. Qual o seu tamanho – inquiriu o gerente, sem perder a postura solícita.

— 48.

O gerente olhou para a vendedora, sempre sério e irredutível.

— Infelizmente não temos esse tamanho. Peço perdão, senhora.

Cândida estava prestes a jogar a toalha e sair da loja com o semblante destruído quando lhe ocorreu uma ideia.

— Pois bem, quero levar o vestido de gorda mais bonito que há nesta.

O gerente, que antes parecia imperturbável, ficou perplexo com o inusitado pedido.

— Flávia, traga o vazado royal azul para a nossa cliente.

Poucos segundos depois, a vendedora retornou com um belo vestido azul. Cândida se recusou a experimentá-lo. Apenas o pagou e saiu da loja com a cabeça erguida e o semblante iluminado.

Júlio chegaria dentro de duas horas. Cândida preparou um frango assado com arroz recheado. Arrumou a mesa, colocou duas velas e dispôs ao centro uma garrafa de vinho.

Tomou um banho demorado. Perfumou-se discretamente e experimentou o vestido que havia comprado há pouco.

Ficou diante do espelho, tentando reajustar o vestido que havia ficado apertado na cintura. Endireitou a coluna e encolheu a barriga para encontrar a melhor postura, mas parecia que nada adiantava. O vestido, ao contrário, ficava mais apertado, como se ela estivesse engordando ali mesmo.

Depois de muito tentar, conseguiu subir o zíper, mas seus seios ficaram bastante encolhidos. Estava sentindo falta de ar. Deu um longo suspiro e voltou a encolher a barriga. Por um instante o vestido pareceu se ajustar ao seu corpo e ofereceu certo conforto.

Cândida sorriu. Prendeu a respiração por mais alguns segundos e depois deixou seu corpo se expandir ao ponto de forçar a costura e provocar um tímido rasgo um pouco abaixo das axilas. Não importava. Ela estava feliz, sentindo-se bela como se estivesse com seus dezoito anos novamente.

Ao cair da noite, o jantar estava pronto sobre a mesa. Cândida viu o carro do marido se aproximando da garagem. Estava toda maquiada. Ficou de pé diante da porta, coração acelerado e cheia de esperança. Júlio a veria bonita como antes e deixaria de lado a triste lembrança de ver os anos sendo tão cruéis com ela. Teriam um jantar romântico depois de anos e uma noite de intimidades, troca de carícias e juras de amor. Era a esperança de reacender a centelha da paixão que os uniu na juventude.

Júlio, robusto e desgrenhado, deu de cara com ela ao abrir a porta. Seus olhos ficaram arregalados enquanto ela, confiante, não parava de sorrir.

— O que está acontecendo? – perguntou ele.

— Eu preparei um juntar especial para nós dois.

Aturdido, Júlio esquadrinhou a sala de jantar. Lá estavam as velas e todos os pratos da noite, muito bem arranjados sobre a mesa.

— E por que está usando esse vestido?

— Eu queria ficar bonita para você.

Júlio nada se comoveu com aquelas palavras ditas de forma tão doce.

— Não precisava fazer tudo isso. Eu poderia comer qualquer coisa que estivesse na geladeira.

Todo o sorriso e expectativa se desfizeram da face de Cândida. Foi como se um balde de água fria fosse jogado sobre ela.

— Fiz tudo isso por nós – disse ela, quase chorando. — Mas você age como se não existisse mais nada entre a gente. Por Deus, ainda somos casados, meu amor.

Júlio baixou a guarda e meneou a cabeça negativamente. Quando ergueu o rosto, a imagem era a de um homem esgotado.

— Olhe para você... A Cândida que eu conheci deixou de se cuidar, perdeu completamente a vaidade e se tornou isso – ele a fitou com severidade — Como acha que eu me sinto?

— Sim, engordei, fiquei feia ao me descuidar, mas me deveria ter dito que isso o incomodava.

— Ora, você achou que isso nunca iria me incomodar? Achou mesmo que tudo ficaria bem se você se tornasse uma mulher desleixada com a própria aparência?

Cândida não pôde suportar as revelações do marido e se pôs a chorar.

— Eu posso mudar – disse ela, com as mãos no rosto.

— Já é tarde demais, o nosso casamento já não vinha bem, e eu...

Júlio hesitou. Ficou olhando para a esposa em prantos e teve receio de continuar.

— Diga logo! O que você fez?

— Conheci outra mulher.

Cândida viu seu mundo desabar. Foi-lhe confirmado pelo próprio marido que havia outra mulher. Não havia meios de negar para si mesma que estava sendo traída. A verdade havia sido revelada de forma crua, clara.

De repente aquele vestido se tornou inútil e sujo. Ela sentiu uma vontade incontrolável de rasgá-lo e ficar nua diante do marido para que ele visse o que ela se tornou. Queria que ele sentisse pena, vergonha, remorso ou qualquer outro sentimento negativo, porque ela não sentia mais nada. Mas Júlio limitou-se a voltar para o carro e seguiu para o hotel mais próximo.

Ao esgotar das velas, a única fonte de luz provinha do celular que tocava sobre a mesa de centro. A comida esfriava sobre a mesa.

Cândida estava em transe. Olhava para o teto enquanto o celular não parava de tocar. Estava cansada, esgotada, porém não conseguia dormir. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar. Sua garganta estava seca.

A cada carro que se aproximava, ela imaginava ser o marido voltando para lhe dizer que era tudo brincadeira. Inutilmente tentava encontrar uma saída para aquele pesadelo que parecia não ter fim.

Depois de vinte minutos o celular voltou a tocar. Sem o mínimo entusiasmo ela atendeu.

— O que aconteceu? Por que demorou tanto para atender? — perguntou Germano, um tanto preocupado.

— Você estava certo. Ele estava me traindo. Sinto-me tão tola...

— Acalme-se. Não deve se sentir assim.

Para Cândida, a voz de Germano soava como um sussurro em meio a uma tempestade. Sua mente fervilhava de pensamentos ruins.

— Onde o seu marido está?

— Deve ter ido para algum hotel...

— Você não pode ficar sozinha.

— Por que se preocupa tanto comigo? – a voz dela era arrastada, lúgubre. — Você nunca me viu.

— Eu me preocupo porque gosto de você.

Cândida não reagiu. Ficou calada, ouvindo o som dos carros que passavam pela rua. Fitava a janela com o olhar perdido.

— Sei que pode parecer repentino, mas eu gosto de você – repetiu ele, com energia.

— Impossível alguém gostar de mim. Eu sou um monstro.

— Não é. Sei que você é uma mulher maravilhosa.

— Ainda não me viu. Está falando isso da boca pra fora. O que pretende com esse jogo?

— Não se trata de jogo. Precisa acreditar em mim.

Cândida não conseguia sequer acreditar em si mesma. O mundo conspirava contra ela de forma impiedosa.

— Preciso desligar – disse ela.

— Por favor, não desligue. Eu quero te ver.

— Chega, ninguém vai mais brincar com meus sentimentos.

— Por Deus, essa nunca foi a minha intenção.

— Adeus...

O celular tocou o chão e fez um leve estrépito. A chamada ainda estava ativa. Germano gritava o nome dela, mas Cândida foi em direção à garagem, descalça.

Seu corpo tremia, seus lábios estavam secos e apertados. Cândida entrou no carro e deixou seu corpo desabar sobre o banco. Tocou o volante, mas foi como tocar o vazio. Tudo à sua volta era insignificante, imperceptível, trivial.

Tomou a direção da ponte. Dirigiu lentamente, com languidez. A rua estava vazia e escura, como a sua alma, como a ruína de sua vida.

Aquele monumento de confiança e eficiência que foi construído com muito cuidado estava se desfazendo como um castelo de areia. O que restou de Cândida era apenas a notável robustez do seu corpo espalhado pelo banco do carro. Não havia planos, ela só queria seguir para a ponte, queria estar lá, o único lugar em que se sentiria aceitável. Lá estaria sozinha, segura.

Parou o carro. Deixou o farol ligado e seguiu para o parapeito, com o andar arrastado e o olhar divagante.

O vento ondulava seus cabelos. Seus olhos varreram a grande bacia d'água que passava por baixo da ponte. Estava muito frio, mas ela não ligava. Se sentia bem, havia certo conforto naquele lugar gelado.

Na primeira lágrima, pôs o primeiro pé. Na segunda, já estava de pé sobre o parapeito, com as pernas trêmulas.

Abriu os braços e deixou o vento gelado abraçar-lhe o corpo. Naquela condição, se o seu chefe a visse, diria a ela que estava cometendo um grande erro, pois era uma excelente funcionária, eficiente e dedicada. Não poderia terminar assim, queria tê-la de volta, ganharia um aumento, uma nova sala, novos desafios. Tudo seria diferente.

E Júlio? Pediria perdão por ser um cafajeste e a tomaria em seus braços para dar-lhe um beijo apaixonado, debruçando-se em elogios sinceros e juras de amor intermináveis. Os dois eram como fantasmas na beira da estrada, fitando-a com loucura e devoção.

Aquelas figuras toscas desapareceram quando ela resolveu saltar. Mas ao longe, um vulto acorreu para segurar sua mão. Ela voltou seu rosto, desperta do sono da loucura, e viu um homem alto e esbelto correndo em sua direção. Era tão belo que a fez pensar tratar-se de um sonho.

Cândida desequilibrou e seu vestido tocou o parapeito. Antes que seus pés ganhassem o vazio que a levaria para o fundo do rio, aquele homem a segurou com força pela cintura e a puxou contra si. Os dois caíram no asfalto. Antes de desmaiar, ela ouviu seu nome pela inconfundível voz de Germano.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 22/12/2020
Código do texto: T7141778
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