NAQUELA CALÇADA PASSOU

"Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade

De um olhar que me fez nascer segunda vez,

Não mais te hei de rever senão na eternidade?"

Charles Baudelaire, soneto A UMA PASSANTE

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Perambulava pelas avenidas da vida quando a vi. Ela estava de costas e caminhava lentamente. Parecia ir para o trabalho. Algo me chamou atenção naquela mulher. Além da beleza. Não tinha um corpo violão, mas possuía cintura. Andava em minha frente pela mesma calçada em que me encontrava. Nem sei de onde ela surgiu. Talvez de alguma esquina ou de dentro de uma loja. Quem sabe acabou de almoçar e retornaria ao setor? Pelas vestimentas não deveria ganhar pouco. Ou deveria ser apenas uma recepcionista e receber um mísero salário mínimo.

Era quase uma hora da tarde. O sol se escondia nas poucas nuvens que voavam no céu. E assim como o vento as empurrava para uma direção, aquela mulher, sem saber, me empurrava em sua direção.

Comecei a segui-la. Mas como o sol... não queria ser visto.

Analisando o estilo da roupa, supus ser secretária e que entraria em algum edifício bonito daqui. Vestia uma jaqueta social azul-escuro e camisa branca. Dava para ver parte da gola escapando pela nuca. O cabelo longo estava de um só lado dos ombros. Imaginei que seria mais bonito contemplá-lo solto como a crina de um cavalo.

E não usei cavalo sem motivo, pois sua saia, também azul-escuro até os joelhos, permitia que as panturrilhas se apresentassem bronzeadas e rijas. Da rigidez de uma guerreira amazona. E devia ser mesmo. Daquelas que enfrentava monstros. Não os dos filmes ou da ficção. Outros monstros. Da vida real.

Realmente não tinha tanto quadril, mas era bonito ver o ondular ritmado de suas coxas. Os saltos não atrapalhavam seus pés. Nem sequer titubeavam. Em linha reta, como uma capitã do exército em seu quartel-general, prosseguia. Quem sabe ela não era rica e dona de todas as lojas pelas quais passava naquela calçada? Quem sabe não estava inspecionando tudo somente pelo ouvir? Ou queria intimidar os funcionários displicentes apenas com sua passante presença? Quem sabe...

Enquanto aquela mulher permanecia em seu caminho, ignorava-me como se morto estivesse. Ou eu, ou ela. Ou ambos?

Seus passos eram calmos, porém, firmes. Exalava a segurança de quem sabe escolher a casa em que queria morar (e pode pagar) e o nome dos filhos sem palpite de ninguém. Era dona de si, como dona dos seus pés. Quase dona daquela calçada inteira. Pisava no chão com ar de rainha. Ou poderia ser uma mera escrava do patrão.

Contudo, continuava andando.

E eu, a segui-la.

Não por desejo carnal, mas admirado. Atraído mais pelo que não via que pelo que se apresentava teatralmente. Afinal, nessa avenida tudo é teatro. A vida é um palco, dizia Shakespeare. Todos contracenam. Todos incorporam diferentes personagens em determinados papéis e momentos. Ensaiam suas falas. Todos fingem.

O que será que ela fingia? O que ela devia ser de fato?

A mulher caminhava sem olhar para trás. Eu também.

Os carros iam e vinham nas avenidas ao lado. Perto de nós, naquela mesma calçada, tudo transcorria normalmente. Clientes consumiam e os vendedores vendiam. Numa banca de jornal alguém pedia informação. Um homem prepara um churrasco grego fatiando a carne. Um casal sai de um restaurante caro. Pessoas de terno atendiam celulares e falavam alto para todos ouvirem. Uma moça de mochila e cabelo azul com roupas coloridas ia, de fones, em direção oposta. Algumas folhas das árvores da praça central invadiram a rua. Um jovem estendia panfletos aos que passavam por ali. Barulho, cor, movimento e gente. Gente bonita, feia, pobre, rica.

No entanto, aquela mulher era singular. Um ponto móvel de distinção numa fábrica de cópias humanas.

Vi que ao passar próximo do moço dos panfletos, ela estendeu a mão e pegou um. Adiantei o passo. Peguei um também, mesmo sem o jovem me oferecer. Era de planos odontológicos. Fiquei pensando como deveria ser o sorriso dessa mulher feita apenas de costas e suposições minhas. Teria ela algum dente torto ou apinhado? Usava aparelho? Ou apanhou o panfleto apenas por compaixão de quem lhe estendeu o papel? O silêncio da dúvida gerava um barulho intenso em minha imaginação.

De repente parou. Mexeu na bolsa. Nem havia reparado que aquela mulher estava de bolsa. Tirou o celular e levou ao ouvido. Fez isso com a mão esquerda. Pela distância não pude enxergar o que queria. Aproximei-me um pouco mais.

Consegui ver. Não havia aliança em seu dedo anelar esquerdo.

Será que não era casada? Quem sabe era, mas traía o marido? Acabara de almoçar com o amante? Ou será que veria o amante depois do almoço? Ou sequer tinha amante, marido, ou coisa parecida. Minha visão não alcançava a outra mão. Será que teria namorado? Era noiva? Que diabos!

Enquanto a seguia a poucos metros, minha mente foi longe.

Como seria caminhar não somente perto, mas com ela? Conversando sobre... O que estaríamos conversando? Filmes? Séries? Será que gosta de novelas? Ainda assisto algumas... talvez sejam as mesmas. Gosta de livros? Que tipo de livro ela curte? Será que lê fantasia? Conhece Tolkien? Lewis? Ou será que prefere terror ou suspense policial?

Que música ela ouve? Samba? Rock? Música Clássica? Pelo jeito não deve ouvir nada disso. Ou quem sabe ouve de tudo um pouco.

E se fosse surda? Meu Deus! Como falaria com ela? Nem sei Língua de Sinais.

Bom... Surda não era. Atendera o celular. Cega também não devia ser. Andava sem nem errar o passo. Parecia que se apresentava num concurso de Miss.

Miss Tério.

Teria filhos? Se sim, quantos? Um, dois, três? Já perdera um bebê? Seria ela mesma adotada? Moraria com a mãe ou sozinha? Seria ela uma boa mãe? Que gosta de brincar com os filhos, lê histórias para dormir? Ou é negligente? Será que moram com ela ou com o ex? Que ex?

Ela continuava pela mesma calçada. Caminhava sozinha. Se eu fosse invisível, poderia chegar mais perto e vê-la face a face.

Até poderia fazer isso. Porém, a timidez prendia por dentro, tanto quanto a curiosidade insistia em me fazer andar.

Assim como aquela mulher misteriosa continuou andando. Desfilando, passando pela calçada da minha vida, onde se afastava e se aproximava ao mesmo tempo, na medida em que eu também caminhava.

A moça não desviou nem para a direita, nem para a esquerda. Apenas para frente se movia. Todas as mulheres desse mundo deveriam ser como ela e andar somente para essa direção. Contudo, o coração despertava, com batimentos sutis, o instinto masculino da coragem e me levava a caminhar mais depressa.

Passos que, no entanto, não eram menos cuidadosos.

Um pouco mais perto, pude sentir um perfume doce e suave. Baunilha com notas de maça ou chiclete. Não entendo de perfume, nem de mulheres. Mulheres são como perfumes. Nunca obtemos toda a essência delas. Apenas um pouco. Pequenos e frágeis frascos vivos que exalam sua alma. Em mim, já deixava marcas.

Ela ainda não me notou. Não sou nenhum detetive nem espião. Meu sucesso em segui-la, contudo, se dava pelo fato de que, em meio a uma multidão sou só mais um. Estrela apagada de uma constelação de gente. Mas essa mulher... era uma lua nova.

Será que fizera faculdade? Era formada? Poderia ser somente estudante. Estaria indo para a faculdade ou para a escola? Quem sabe não era a professora? Ou diretora? Ou estagiária?

Permaneceu caminhando. Quase robótica e poética. Somente seguindo e prosseguindo.

Por que ela não olha para lugar nenhum? O que habita em sua mente? No que estaria pensando? Nas contas? No marido? Namorado? No ex? Nos filhos que tem? Que quer ter? Matéria acumulada? Casa nova? Na mãe doente? Teria ela perdido um parente recentemente e, por esse motivo, andava sem sequer perceber o mundo a sua volta? Ou estaria tão feliz que nada nem ninguém importassem?

Os carros continuavam com a mesma frequência. Respeitavam o farol, paravam e seguiam. E embora naquela calçada não houvesse semáforo e meu corpo se locomovesse, meu espírito estacou numa pergunta e recusou-se a sair dela:

“Quem era ela?”

Comecei a imaginar seu rosto. Como deveriam ser seus olhos? Castanhos? Azuis? Verdes? Teria feito as sobrancelhas? Usado rímel? Lápis? Estaria ela de óculos? Qual a tonalidade de seu batom? Seus lábios eram carnudos? Sedosos? O nariz era como uma boneca de porcelana? Arrebitado na pontinha? Ou com um leve achatamento? Suas bochechas seriam rosadas? Cheias? Possuía sardas?

Ela não parecia ser tão magra, nem tão gorda. Parecia ser Monalisa novamente pintada, dessa vez não por Leonardo Da Vinci, mas por mim. Sem pincel. Sem nada.

Meu coração parecia uma fera. Minha caixa torácica era a jaula que prendia um leão que rugia e bombeava sangue e sentimentos.

Vacilei um pouco. Percebi que estava andando mais devagar e que a moça se afastava de mim.

Entretanto, quanto mais lento os passos, mais rápido a imaginação.

Como deveria ser sua voz? Doce? Melodiosa como uma harpa? Leve feito um sussurro do vento? Fofa, como uma criança? Qual seria sua idade?

Seria ela simpática? Grossa? Chata? Irritada? Sensual?

Como seria ela na hora...

Minha mente foi longe... Longe demais.

Como seria tê-la em meus braços? Sentir o calor de seu corpo? Como seria olhar em seus olhos e dizer que a amo? Quem sabe não deveria criar coragem e pegar seu telefone... Ou pelo menos perguntar seu nome... Ou porque não... Somente dizer um “oi”... Acompanhá-la até onde vai. Mas para onde ela vai?

Quis chegar mais perto. Apertei o passo. Pisava de modo mais barulhento. Prossegui como um hipnotizado ou um boi ao matadouro. Até doerem os pés. Até faltar o ar. Continuei. Não me detive. Só haveria aquela chance. Precisava saber quem era ela.

Até conseguir alcançá-la novamente.

Desejei tocar em seu ombro. Chamar sua atenção de algum jeito. Era minha chance. Mesmo que ela não desse bola, só queria ver seu rosto. Ouvir sua voz... apenas...

Estava a quase um passo de distância dela...

Sem que eu esperasse, a mulher parou e foi se virando. Parei também. Minha testa e mãos suaram. O coração socava meu peito de tal modo que pensei que ela o ouvia. Arrepiei da cabeça ao pé. Senti neve escorrer em meu estômago.

Quando estava quase se virando por completo, fugi correndo. Virei a esquina e de cabeça baixa entrei em outra rua.

Respirei fundo e me afastei ainda mais daquela calçada. Não queria que alguém me estranhasse. Esperei um tempo e voltei para lá, mas andando na direção oposta ao caminho daquela mulher.

Aliás, que mulher era aquela? Não sei dizer o que aconteceu. Se tudo não passou de um sonho acordado ou se foi real, palpável e visível. Pode ser que nunca mais eu a encontre. Acho que é melhor assim. Sigamos nossos destinos separados, pois ainda há pouco nossas vidas se cruzaram pelos caminhos labirínticos do amor. Embora, parece que só eu amei. Ou será que ela amou também? Jamais saberei.

A única coisa que sei é que, mesmo sem conhecê-la, aquela foi a mulher mais completa que já vi em toda a minha vida.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 08/12/2020
Reeditado em 08/12/2020
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