A Fera
Sentada na cama em plena madrugada mais uma vez, sua mente viajava por momentos que já viveu. Mais alguns devaneios e mágoas para a conta. Claro que a ansiedade não poderia deixar de mar presença, não é?!
Não deve existir nada mais clichê que olhar pela janela em um dia frio, tomando chocolate quente, lembrando do passado ou idealizando o futuro. E o passado é cruel quase sempre. Desta vez, não se torturada com as lembranças ruins, mas sim com a falta imensa que ele lhe fazia.
Tudo o que queria era subir alguns degraus, comer macarrão e beber uma garrafa de vinho barato novamente. O melhor macarrão e o melhor vinho barato, diga-se de passagem. É sério, ela pode jurar que aquele macarrão tinha algum ingrediente especial que ele não queria lhe contar, e não era mera teoria pois não tinha como algo tão simples e saboroso como aquele macarrão ao molho, ainda mais depois de um dia tão estressante. Talvez a paixão que sentia fosse o segredo no final das contas. E o vinho barato na verdade não tinha nada de especial, era só um vinho comum, totalmente industrializado e cheio de açúcar que ele só tomava porque ela gostava, tomava para acompanhá-la, e isso fazia qualquer marca de vinho barato se tornar incrível. Era ele que deixava cada taça mais gostosa, era a presença imperfeita e caótica dele. Como alguém que fazia tão bem a ela poderia dizer que não a amava? Cada dose de carinho era uma faísca de esperança, sempre prevalecia aquele "mas e se...?"
Ela amava as horas e horas de conversa antes de que algum beijo acontecesse, mesmo que parecesse que ele nunca mais ia parar de falar (risos). Ele falava muito, e ela achava lindo como ele se empolgava nos assuntos que gostava. Admirava sua inteligência mesmo quando ele começa aqueles assuntos políticos que a deixavam irritada por não concordar com mais da metade de suas opiniões. E se for pra ser sincera, ela achava aquilo um saco e já se afastou por achar ser diferentes demais. Mas aquele era seu refúgio, seu bom momento, seu remédio para dias ruins, e ele sempre deixou a porta aberta.... E quando ela achava que tinha superado ela se via de volta no mesmo lugar, dando risada, e admirando aquele mesmo sorriso. Será que ele gostava dela e não queria admitir? Será que ele também estava apaixonado e só não sabia lidar com o sentimento? Ou será que tudo não passava de fantasia e poesia que ela mesma criava como realidade dentro de sua mente? Afinal, ela é mãe de muitas expectativas, as quais ela não consegue controlar. Só que, com todo respeito Dona Razão, não era possível ignorar a boa conversa, as risadas, o cuidado e o carinho que ele tinha com ela. "Tá com fome? O macarrão está quase pronto." Frase que acariciava seu estômago e sua alma. Ah, não tem condições dela esquecer o macarrão. Assim como não tem condições de esquecer o toque, o beijo, o sexo perfeito, os segredos trocados na cama, o cheiro de suor com um toque de sabonete que exalava da pele dele, dormir abraçados depois de tudo isso... O amor podia até não se recíproco, mas o mínimos detalhes faziam a diferença na decisão dela de sempre ficar. Ele era a fera que precisava ser amada para saber o que era amar, ele era a fera que precisava de cuidados para as feridas que sempre reabriram. Era assim que todos os enxergavam, era assim que ele se enxergava, mas ela sabia que não era bem assim que ele era. Ela era o sol que guardava as próprias dores para iluminar a lua. Acreditava que sendo luz poderia retirar a fera da escuridão e do vazio, mas os demônios não o deixaram ser salvo.
E então, mesmo sendo luz ela se apagou e foi embora, saiu batendo a porta e desejando nunca mais voltar. Só que mesmo meses e meses tendo passado, a saudade não parava de bater. E sem querer, ela se abriu. Doía não saber o que fazer ou falar, foi quando começou a digitar no celular mesmo com medo de se arrepender, mesmo com as lágrimas escorrendo e quase desistindo de mandar. Mas o dedo apertou em enviar. "Oi, como você está?".