Nosso Dominador

Como em tantos dos meus sonhos, como em muitos dos meus devaneios que imaginavam cenas do futuro, de um futuro majestoso, de um futuro no qual eu seria feliz tendo ao lado a razão para tamanha felicidade, tinha entre os braços o corpo daquela que eu amava, estávamos rodeados por uma multidão, é verdade, ainda assim aquele momento parecia único, feito exclusivamente para nós dois. Ela, envolta pelo longo vestido marsala que encantava a todos os olhares, sorria para mim enquanto, com todo o meu característico nervosismo, tentava me convencer de que era mesmo realidade. Nossos passos estavam sincronizados entre si e com a música, nossos olhos conseguiam conversar, e sentia que nossos corações assumiam o mesmo ritmo. Finalmente, depois de tanto tempo ensaiando, procurando vencer meus próprios medos, havia convidado a garota pela qual me apaixonara para ir comigo ao baile, ela aceitara, para minha surpresa e meu contentamento.

— Não sei como dizer isso, mas... — procurava as palavras certas, do meu jeito tímido eu declararia o que estava pensando —. A verdade é que você está deslumbrante esta noite... Não que nunca esteja, quero dizer... — senti o rosto arder, mas precisava enfrentar aquela vergonha, precisava demonstrar com palavras o que minha alma sentia, mesmo sabendo que aquela era a última oportunidade, mesmo sabendo que eu só poderia exibir minha admiração, nada além disso, mesmo sentindo coisas maiores —. Você está linda...

— Deixe de bobagens — desenhando o inesquecível sorriso no rosto, exibindo o brilho no olhar que a deixava ainda mais encantadora, percebi que ela se acanhou, envergonhou-se pelo elogio, mas no fundo eu sabia que gostara —. Você também não está nada mal para quem passou o ano dizendo o quanto era desnecessário passar horas perante um espelho — ela me conhecia, conhecia o que eu achava da vida, das pessoas, das atitudes corriqueiras de muita gente, conhecia meus planos, conhecia-me até mais do que meus familiares, era minha melhor amiga, mais que isso, era quem eu amava apesar de nunca declarar —. Milagres acontecem, não é o que dizem?

— Eu não poderia fazer feio em uma noite como essa — procurei me justificar mantendo o bom humor —. Não poderia desapontar minha parceira...

— Não poderia me desapontar? — repetiu em tom desafiante —. Está sendo irônico ou hoje estamos todos convivendo com um Ítalo diferente?

— Mudanças são sempre positivas.

— Sim... Exigem coragem, mas são sempre positivas...

Coragem. Talvez tenha sido isso o que tivesse me faltado durante todos aqueles meses, todas aquelas semanas, todos aqueles dias que tentei me abrir sem obter êxito. Como eu poderia viver meus sonhos se não tivesse a coragem necessária para torná-los reais? Mas agora já era tarde, pelo menos parecia tarde demais.

— Eu nunca disse nada, mas, há coisas que não podemos guardar para sempre conosco, há palavras que precisam ser ditas, principalmente quando merecem ouvi-las... — permaneci encarando os olhos cor de mel que brilhavam mais que o ouro, que para mim eram os mais belos que alguém poderia ter —. Quero que saiba o quanto eu a admiro, o quanto prezo por tudo o que vivemos, o quanto você tem sido especial nesses meses... Passamos por tantos momentos, tive o seu apoio em tantas horas nas quais eu poderia ter estado abandonado, tudo isso serviu para que meus sentimentos por você, pela nossa amizade, fossem os mais sinceros e leais... Talvez eu veja mais do que uma simples amiga, talvez nossa ligação seja maior, como a de... — eu falaria de irmãos, trocaria o que realmente queria dizer por algo mais sutil, suave, por algo que não nos afastasse ou que eu não pudesse sustentar até o fim.

Mas fui calado.

— Não precisa dizer mais nada... — ela interrompeu —. Aliás, pensei que nunca falaria o que eu gostaria de ouvir...

Para minha surpresa, ela me beijou, aproximou nossos lábios e nos levou para aquele momento de demonstração do que sentíamos, daquilo que até então apenas eu sabia sentir, mas que descobri ser mútuo, recíproco, que poderia ser fortalecido e nutrido por nós dois.

O baile começou.

Por alguns instantes me permiti esquecer do que estava para acontecer, do que precisaria enfrentar, do que deveria esclarecer para Ana, do que procuraria fazer com que ela entendesse. Depois daquele beijo, depois da certeza de que eu não amava sozinho, ficou mais difícil praticar algo que nunca gostei de fazer, algo que sempre me provocou dores incômodas, dores que, acredito, atingem a qualquer ser humano. Mais do que difícil, tornou-se impossível a despedida.

Depois de uma noite cheia de descobertas e momentos que jamais seriam esquecidos, o sono simplesmente não aparecia. Ficava me revirando na cama, criando diálogos, pensando em como contar à garota que me beijara que eu precisava ir embora, cuidar do meu pai em outra cidade, ser o suporte de que ele precisava. Mas não conseguia encontrar o jeito certo. Não gostava nem de imaginar como seria quando nossos olhos se encontrassem e as palavras devessem surgir. Eu não conseguiria. Seria confrontado com aquilo que eu sentia. Deveria partir em silêncio, sem olhar para trás, sem a intenção de machucar alguém que eu não poderia acolher.

Escrevi uma carta.

Antes de seguir à rodoviária pedi a minha mãe que entregasse. Eu não tive coragem de nem ao menos entregar o envelope. Foram meses de um segredo que me consumia, meses escondendo meus reais sentimentos, meses tentando ocultar um amor cujo poder, cujo tamanho, sempre me passaram despercebidos.

Fui embora. Embora da minha vida. Embora dos meus projetos. Embora daquilo que eu mais queria.

Não contei para ninguém a razão para minha partida, não queria que se apiedassem de mim e viessem correndo oferecendo uma ajuda que eu não queria aceitar. Proibi minha mãe de saciar a curiosidade de quem quer que fosse. A única coisa que saberiam era que eu partira com a vontade de um dia retornar.

Seis meses depois voltei para o lugar onde meus sonhos me esperavam.

Mas o tempo passa. O tempo sempre passa. E nessa passagem do tempo é inevitável que as mudanças aconteçam, as folhas das árvores não são mais as mesmas, as águas de um rio estão sempre se alterando e com a vida das pessoas também não é diferente. Elas mudam. Mudam de formas inimagináveis. De maneiras que talvez nos causem estranhamento.

De volta ao lugar que deixei por motivo maior do que minha vontade de ficar, retornei também à escola onde conheci Ana, onde construí amizades, onde, apesar de todos os problemas das últimas semanas, teria o prazer de terminar meus estudos. É claro que adentrei o prédio atento a cada novidade no visual, mas o que meus olhos realmente procuravam era a face que nunca deixou os meus sonhos, que nunca se afastou dos meus devaneios, que nos momentos de maior distração, quando eu mais viajava comigo mesmo fazendo planos ou tentando compreender o sentido da vida, surgia de repente e me fazia desejar ardentemente para que anseios antigos pudessem ser concretizados. Quando finalmente a encontrei meu coração se quebrantou.

Ela não estava sozinha.

Ao seu lado, na cadeira que costumava ser minha, outra pessoa lhe fazia companhia.

Não era qualquer pessoa.

Outro garoto.

Pareciam muito amigos.

Enquanto eu procurava outro lugar vago nossos olhos se cruzaram, por alguns instantes fiquei sem reação, sem saber o que fazer, relembrando como foi nosso último encontro e como precisei desaparecer sem nem me despedir, deixando apenas palavras, que poderiam ou não ter algum efeito. Forcei um sorriso discreto na intenção de entender como estavam as coisas entre nós, mas tudo o que recebi foi o desvio do olhar que eu adoraria ter sobre mim pelo resto de meus dias.

Não conversamos.

Durante o intervalo das aulas, quando tentei me aproximar, ela fugiu como se não percebesse minha presença. Saiu com um grupo de pessoas sem nem olhar para trás. Como se eu não existisse. Talvez eu merecesse aquilo, talvez ela estivesse com razão, mas era insuportavelmente doloroso conviver com aquele distanciamento sabendo da invejável proximidade que entre nós existia.

Ao final da aula não resisti. Antes que ela pudesse escapar segurei-a pelo pulso. Ela se virou, com o olhar intimidador de quando se sentia constrangida, mas eu não poderia me dar ao luxo de me intimidar por aquilo, queria corrigir o passado, queria esclarecer minhas razões, queria saber se ela estaria disposta a lutar por nós, queria entender se aquela noite no baile havia significado alguma coisa para ela tanto quanto significara para mim.

— Precisamos conversar — falei.

— Agora precisamos conversar? — ela retrucou soltando-se de mim.

— Eu preciso que me ouça...

— Ítalo, por favor... — desvencilhou-se —. A gente se vê...

E com aquela frieza estranha ao calor do nosso envolvimento de outrora, ela partiu desaparecendo de meus olhos a cada pesado passo.

Para mim estava tudo acabado. Sentia-me revoltado com aquela situação. E se eu tivesse feito diferente? E se eu tivesse superado minhas próprias dificuldades e me prestado a uma decente despedida? Mesmo que me doesse, mesmo que os passos tivessem se tornado doídos, talvez tivesse conseguido manter um pouco do que um dia vivemos.

— Está tudo bem? — depois de um dia calado, submerso a um silêncio anormal, meu comportamento incomodou minha mãe.

— Eu não sei... — precisava de ajuda, era tudo o que eu sabia.

— É pelo seu pai?

— Talvez... Eu sei que vocês não se davam bem, entendo as razões para a separação, mas, e se as coisas tivessem sido diferentes?

— Diferentes ou não as coisas são como deveriam ser — ela acariciou meu rosto como sempre fizera em momentos como aquele, quando eu me desesperava, quando eu me isolava sem saber aonde ir.

— Acho que perdi a pessoa que eu mais gostava...

— Não se despediu de Ana como ela merecia, não é?

— Eu não conseguiria... — em virtude de tudo o que vivera nos últimos dias, não aguentei conter a emoção, discretas lágrimas saltaram de meus olhos, mas não caíram antes que minha mãe as acolhesse.

— Eu sei o quanto é difícil, mas você precisa enfrentar esse obstáculo o quanto antes... Mas antes disso, precisa corrigir o erro se realmente valer a pena. Há sonhos que não podem ser abandonados por motivos bobos, há sonhos que valem a pena cada esforço investido, cada dedicação, cada noite sem dormir. Há sonhos que podem nos causar um arrependimento eterno se não fizermos nada para concretizá-los, no entanto, se mesmo com nossa vontade eles não acontecerem, ao menos tentamos, ao menos não nos rendemos, apenas aconteceu o que precisava acontecer...

Ela tinha razão.

Talvez o que precisava acontecer fosse eu quem determinaria. Só precisava de coragem. A coragem que gera a mudança. A mudança que sempre é positiva.

Apesar do receio, fui até a casa de Ana. Pedi para que a chamassem, mas me avisaram que ela não estava. Pensei em voltar, porém decidi esperar sentado do outro lado da rua, um pouco afastado, pronto para me aproximar tão logo ela chegasse.

Precisei esperar algumas horas.

Para vê-la descer do carro daquele garoto que agora parecia ser meu substituto.

Levantei-me sem dar nenhum passo. Como se estivesse travado. Como se tivesse me esquecido de como comandar meus membros para caminhar.

Seus olhos me encontraram.

Ficamos nos observando por alguns segundos.

Quando resolvi avançar pensando que ela pudesse retroceder, se refugiar entre as paredes de sua casa, assinalando que não era mais para eu me aproximar.

— Podemos conversar? — perguntei quase inaudível.

— Não posso ser mau educada com quem veio de longe — se aquela era sua nova simpatia eu estava com sorte.

— Eu preciso que me entenda...

— Espera — ela riu com desdém, como se estivesse indignada com a minha fala —. Eu preciso entendê-lo? Você foi embora depois de uma noite maravilhosa, depois de ter dito coisas incríveis, depois de ter confessado que esperara por meses por aquilo e ainda quer que o entenda?

— Você leu a carta?

— Carta? Acha mesmo que amigos de tanto tempo, ou seja lá o que tenhamos sido naquelas últimas semanas, despedem-se por cartas?

— Eu nunca gostei de despedidas...

— Mas eu não era qualquer uma.

— Sim... Não era...

— Eu merecia o mínimo de respeito, de consideração, você não podia ter me abandonado — naquela hora percebi o mal que tivera lhe causado —. Eu gostava de você, talvez mais do que isso, deixei claro naquela noite que parecia anunciar um amanhecer de novidades, mas o que aconteceu? Você fugiu. Partiu. Sem nem dar pistas do que estava acontecendo. Sem nunca ter mencionado nada. Gostava mesmo de mim? E toda aquela admiração? Eu pensei que o conhecia.

— Eu não queria que se preocupasse, que se incomodasse com os meus problemas, não queria que interrompesse sua vida por minha causa. Não era minha intenção magoá-la, não era minha intenção partir, nunca pensei que precisaria ir embora, mas...

— Fala como se os meus sentimentos importassem, mas na verdade apenas os seus disseram alguma coisa — abriu a passagem para a casa —. Não se despediu porque sua aversão às despedidas não permitiu, mas deveria ter deixado um pouco seu egoísmo de lado, pelo menos por mim... — indicou que entraria.

— Meu pai estava doente — confessei com os olhos baixos, não queria despertar pena, não queria que me visse como alguém fragilizado, mas já que ela queria a verdade, ali estava ela —. Ninguém com quem ele contava pôde ajudá-lo, restou apenas a sua família, as pessoas que ele nunca tratou com o cuidado que deveria. Fui embora por ele. Para que tivesse um pouco de dignidade — lutei contra as lágrimas, mas fui derrotado —. Para que pudesse partir em paz.

Não obtive resposta.

— O que aconteceu? — sua voz de desprezo tornou ao som fraterno.

Não respondi. Apenas a encarei. Meus olhos falavam por mim.

Vi que seu rosto tomou uma feição emotiva, o par de joias brilhantes se encharcaram e seus lábios se afinaram ligeiramente.

— Foi por isso que parti sem dizer nada. Não queria que se preocupassem nem que sofressem por algo que não poderiam fazer, algo que somente eu teria que viver...

— Já parou para pensar que você não precisa suportar o peso do mundo sozinho?

— Já parou para pensar que quando você ama alguém tudo o que você menos quer é incomodá-la com dores que podem ser evitadas?

— O que isso significa?

— Eu te amo... — falei em meio ao choro —. E não queria que me visse sem saber o que fazer... Não queria que se sentisse mal por mim embora eu tenha causado uma dor maior... Mas se puder, se conseguir, quero que me perdoe.

Ela se aproximou com a delicadeza de sempre.

Trouxe os dedos finos aos meus olhos.

Limpou as lágrimas que insistiam em cair.

Sorriu lindamente.

E me beijou mais uma vez.

— Amar é compartilhar com o outro a sua fraqueza — seu sorriso se manteve — e ser a força que o outro precisa — abraçou-me —. Lembre-se disso antes de fugir...

E, então, entendi mais um pouco sobre o amor. Esse sentimento que nasce do nada e se torna nosso dominador.