Normas

Quando falarem que por amor afastamos alguém, deixamos partir e que nos contentamos quando assistimos à sua felicidade mesmo que não seja vivida ao nosso lado, não deixe de acreditar, não duvide do que é capaz de fazer um coração apaixonado, não duvide de nada.

Eu o amava. Sim, eu o amava com todas as minhas forças e sabia que também recebia esse amor na mesma intensidade ou de forma muito maior. No auge dessa paixão, quando coisa alguma importava, quando tudo parecia minúsculo perto da grandeza de nosso sentimento, achávamos que éramos almas gêmeas, que nos completávamos, que ocupávamos um lugar único e insubstituível no coração um do outro. De fato ele era a minha alma gêmea, é o homem que sempre teve meu coração em mãos, o homem que para sempre amarei ainda que de maneira silenciosa, anônima, sofrida.

Nunca serei capaz de entender as razões que levam duas pessoas serem criminalizadas por cometerem a mais humana das ações: amar. Nunca compreenderei porque é tão difícil para alguns aceitarem que o amor não precisa ser vivido como o padrão que lhe forçaram, o amor é complexo e grandioso demais para que siga somente um formato. Se alguém ama de uma forma diferente da maioria onde está o problema? Não é melhor que amem do que atrapalhem a vida dos outros? Meu amor era proibido, pelo menos aos olhos dos meus pais, acostumados com a tradição, zelosos do costume de ricos estarem casados com ricos gerando descendentes igualmente ricos. Seria muito mais fácil me apaixonar por um sujeito que atendesse aos requisitos, seria mais fácil, não quer dizer que seria gratificante ou significativo. Apaixonei-me por René, o francês mais charmoso que conheci, o único homem que me conheceu como realmente sou, cujo defeito, apesar de ser um absurdo assim dizer, era não ter o poder aquisitivo que minha família apreciava.

Em uma tarde qualquer, típica do verão escaldante que obrigava os termômetros a registrarem recordes seguidos, foi quando assumi para mim mesma que precisava desistir daquela loucura, que precisava enterrar aquele sentimento, esquecer-me da magnífica história que nunca deveria ter começado, mas antes do adeus, antes da dura despedida, eu me permitiria ao último dia de um amor verdadeiro. Aquela tarde de verão jamais se afastaria dos meus pensamentos.

Fomos à fazenda de minha família. Naquele dia todos estavam trabalhando, ocupados demais para se darem ao luxo de algumas horas de descanso em contato com a natureza, o que era perfeito para que eu conseguisse falar com René e convencê-lo a seguir com sua vida.

Galopamos como amávamos fazer, as gargalhadas não foram poupadas, o toque do vento levou para longe as tantas preocupações que me angustiavam, por alguns instantes pude me esquecer das más vibrações que a nós eram dirigidas, motivadas por inveja, por frustração, por insatisfação quanto a própria vida. Não vejo justificativa melhor para aqueles que se incomodam com o amor dos outros: são infelizes por não terem a sorte de viverem o mesmo.

— Nunca imaginei que pudesse ser tão feliz amando alguém — René, exibindo seu largo e alinhado sorriso, descobrindo o brilho nos olhos que mais pareciam gotas de mel, confessou aquilo que me fez balançar, que me fez olhar para ele com o mesmo sentimento: eu era feliz por tê-lo em minha vida, no entanto, pela mesma razão, poderia ser a mais assombrada das mulheres —. Aliás, nunca pensei que poderiam me amar... — naquela revelação aproximou-se de meus lábios, fomos unidos instantaneamente e nos beijamos na escadaria do casarão sendo assistidos pelo glorioso sol.

— Por que não poderiam amá-lo? — mesmo sabendo que não devia perguntar, que não devia conhecer um pouco mais de sua alma afim de diminuir a dor da separação, não contive meus impulsos, minha preocupação, eu o amava e portanto tinha como propósito fazê-lo se sentir digno, amado e feliz —. Nunca conheci um homem tão gentil, tão cavalheiro, tão galanteador... — mesmo sabendo que tudo mudaria, que de repente nos comportaríamos como dois desconhecidos, toquei seu rosto, acariciei-o como sempre fiz, com a mesma ternura e o mesmo prazer.

— Meus ancestrais foram estigmatizados, menosprezados e aniquilados. Sofreram a prisão, os chicotes e morreram sem a liberdade de escolher onde seus corpos repousariam. Morreram lutando para que seus descendentes, aqueles que vieram depois deles, tivessem um pouco de dignidade. Hoje não somos escravizados, mas carregamos a herança daqueles dias terríveis em um mundo que nos faz de invisíveis pela cor de nossa pele. Mas, então, você apareceu com todo o seu amor, com toda a sua grandeza, fez com que eu me sentisse humano...

— Você não precisa de mim para se sentir assim porque não faço nenhum favor, sinta-se assim por ser assim: um ser humano incrível!

— Não conseguiria afastar a sensação de pequenez se não tivesse aparecido na minha vida, aberto os meus olhos, limpado o meu coração. Jamais acreditaria que alguém como você pudesse me olhar com igualdade — trouxe sua mão firme ao meu rosto, acariciou-me com a sutileza que me deixava cada vez mais rendida ao seu amor —, muito menos que pudesse me olhar com amor e por isso, por saber que é sincero, que o que vivemos é verdadeiro, não quero mais me importar com o que falam, com o que dizem, quero saber apenas de ser feliz — no gesto que tão logo presumi passei a indesejar, levou a mão ao bolso, trouxe à luz o caixote e, através do sorriso sedutor que somente ele possuía, anunciou a proposta que eu tanto temia: — Aceita ser a minha esposa?

As lágrimas não pediram licença, nem fizeram cerimônia, apenas brotaram e deslizaram sobre minha face, um misto de medo e coragem, de apreensão e alegria. Eu o amava e por amá-lo precisava protegê-lo, inclusive de mim mesma. Eu deveria sair correndo, partir sem olhar para trás ignorando a dor que estaria lhe causando, mas que, diferente do pavor da minha permanência, passaria com o tempo. Porém, eu também queria ser feliz, queria viver ao lado do homem da minha vida, queria acreditar que o nosso amor seria maior que todas as dificuldades me esquecendo de que um dos obstáculos significava a própria morte.

Ao invés de palavras respondi beijando-o com desejo, com paixão, com a fúria daquilo que nos envolvia, que afastou a barreira dos tecidos, permitiu o encontro entre as peles e trouxe prazer aos corpos que tão bem se encaixavam. Cometi um erro quando decidi ficar.

Depois de nos amarmos adormecemos por algumas horas, acordei ouvindo que alguém se divertia na cozinha, o que eu não sabia era que René, além de um artista sensível, era um cozinheiro criativo.

— Estava quase terminando, por pouco teria comida na cama — falou como se estivesse desapontado.

— Esqueça que me viu — disse animada —. Preciso aproveitar o banquete! — retrocedi alguns passos, mas precisei avançar o dobro para beijá-lo e voltar para o quarto.

Por alguns instantes, enquanto esperava René, fiquei observando as estrelas, sendo levada por pensamentos longínquos. Jurei a mim mesma que insistiria naquilo que me fazia tão bem, que me trazia felicidade e um propósito. Faria minha família me aceitar, aceitar o meu relacionamento, entender que amores padronizados não bastam para todo mundo.

Naquela noite inesquecível saboreei a mais deliciosa das macarronadas acompanhada por um vinho extraordinariamente saboroso, mas o melhor de tudo é que estava com o homem que meu coração escolheu para amar, com o homem que seria o meu companheiro, o meu esposo, o pai dos meus filhos... Seria...

Antes da meia-noite concordamos em voltar para nossas casas na esperança de que chagaria o dia no qual não precisaríamos mais nos separar, nos esconder ou fingir que seguíamos as regras impostas. Na esperança de que o futuro nos permitiria bons momentos. O problema é que nem sempre a esperança está em conformidade com o destino.

Próximos do meu carro fomos surpreendidos com sons estridentes.

Baleado, René tombou ao chão.

Atordoada, encarei os olhos do assassino que desapareceu por entre as árvores.

Uma promessa era cumprida. A promessa de meu pai.

Naquela noite tudo que pude fazer foi levar René ao hospital, falei que fomos surpreendidos por alguns meliantes, além de inútil seria suicídio denunciar o verdadeiro autor daquele crime, o homem que já tinha me avisado sobre qual seria o preço da afronta, o homem que nunca pagaria por seu delito e que daria um jeito de terminar o serviço.

Aquela noite ficaria marcada em mim por ser, também, a última vez que nos encontramos, que conversamos e que sentimos o quanto era bom estarmos juntos. Ainda que me doesse, que ardesse dentro de mim, não visitei René no hospital, fui além, concordei em estudar fora do país desde que me garantissem que o amor da minha vida estaria protegido. Não lhe dei o direito de se despedir, nem respondi suas cartas, fiz o impossível para que jamais tivéssemos contato e ele se esquecesse da Margareth que um dia conheceu, que um dia teve nos braços e que para sempre o amaria. Hoje ele é feliz, ao lado de outra mulher, ao menos é feliz. Seria ainda mais feliz se o tivesse comigo, mas o que importa é que ele está contente e isso me faz feliz.

Para o amor não deveriam existir normas. Bastava existir amor.