CARTAS
OBSERVAÇÃO:
Este texto é uma produção conjunta dos escritores do “Grupo Gandavos: Contadores de Histórias”.
- Alberto Vasconcelos
- Socorro Beltrão
- Aristeu Fatal
- Suzo Bianco
- Cléa Magnani
Parte 1 – Alberto Vasconcelos
Quando a Professora Verônica chegou do colégio Sagrado Coração, aonde lecionava História Universal viu a carta endereçada a ela com o timbre da Universidade de Salamanca no envelope pardo, semicoberto de selos. Com as mãos trêmulas pela emoção, procurou a faquinha de abrir correspondências que deveria estar em alguma daquelas muitas gavetas da escrivaninha, sua companheira de intermináveis horas de estudos e de redação dos textos da monografia, escrita em língua espanhola com a ajuda do seu noivo Bernardo, o boliviano seu amigo desde as primeiras séries do curso ginasial, pois apesar de ser fluente na conversação, sentia muita dificuldade com a terrível gramática e, principalmente, com a conjugação dos verbos.
A carta era simples, direta e objetiva, Verônica deveria se apresentar à Reitoria da instituição no primeiro dia de agosto quando se iniciariam as atividades da Universidade e as aulas do seu doutorado. Era a concretização do sonho acalentado desde sempre. Finalmente o dinheiro amealhado durante anos seria utilizado. Apesar da carta dizer que lhe fora concedida bolsa integral, nunca se sabe os imprevistos que podem (e devem) ocorrer numa viagem tão longa, para uma terra tão distante. Outro continente, outro país, outra cultura, outros hábitos inclusive alimentares. Agora que se confirmara o aceite da Universidade, um receio crescente se apoderou dela. Ainda hoje teria que providenciar o passaporte, a passagem...
Mercedes, a mãe de Verônica, além do tipo físico dos pantaneiros, havia herdado toda maneira de ser dos seus ancestrais caboclos. Poucas palavras, reações comedidas e a preocupação constante de que a qualquer momento, Bernardo, o noivo da filha iria envolve-la em situação embaraçosa. A contragosto, concordara com o compromisso entre sua filha e aquele rapaz de beleza característica do povo quéchua e essa preocupação tornou-se quase palpável quando ao entrar na sala, viu a filha junto à janela com a carta na mão.
Parte 2 - Socorro Beltrão
Mercedes entrou na sala, jogou o chapéu no sofá, desamarrou a cinta de tecido colorido que lhe prendia o facão, sentou-se e tirou as botas, remexeu os dedos dos pés e foi juntar-se a filha, queria saber que envelope era aquele que a filha sustentava como se fosse de ouro. Verônica lhe contou que finalmente fora aceita na Universidade da Espanha, finalmente iria para a Espanha, realizaria seu sonho. A senhora Mercedes meneou a cabeça. Acostumada a dureza da vida nada disse. Ficou um tempo pensativa, sua filhinha ia partir, atravessar o marzão, que ela só conhecia por fotografias, morar noutras terras, conhecer outas gente. Fazer o quê? Que fosse para o seu bem. Os filhos crescem, os pais os criam para o mundo. Assim é a vida, ela ia voltar.
Não deu uma palavra, apenas deu umas leves tapinhas nas costas de Verônica. Seguiu para cozinha, era hora de preparar a janta, o marido e os filhos não tardariam para chegar e esfomeados. Ato continuo começou a preparar o prato do dia, peixe à escabeche, arroz e farofa.
Verônica ao se ver novamente sozinha ficou a imaginar como seria sua vida. Sabia das sérias mudanças que iria enfrentar. Tinha que espantar as incertezas. Ia dar tudo certo.
Planejou essa viagem cuidadosamente. Sua gente precisava de alguém qualificado para registrar a sua história. Era esse seu objetivo, escrever a história do pantaneiro, deixar nas páginas de um livro, seus costumes, suas origens no torrão brasileiro. Seria a futura Doutora em história Universal. Corumbá me aguarde, pensou.
Ao entardecer os homens voltaram da lida. Logo depois chega o Bernardo para noivar. Só agora, quando todos estavam reunidos no terreiro da casa, ao redor do fogo, ela conta a novidade. Bernardo levantou-se abruptamente, deixando cair a cadeira, não gostou da notícia. Embora soubesse dos planos da noiva, achava que ela não conseguiria a tal bolsa de estudo, que eles em breve casariam e tudo ficaria como estava...
Parte 3 – Aristeu Fatal
Transtornado, Bernardo dirigiu-se para a portão de saída, deixando todos surpresos com sua reação. Sendo sua origem indígena, era difícil se ver contrariado. Os quéchuas são a segunda maior população indígena da Bolívia, só perdendo para os aymarás. Sua língua é uma das três oficiais de seu país. Isso explica o modo violento de Bernardo, cujo sentimento de orgulho é próprio da raça.
Imediatamente, Verônica foi ao seu encontro, já no portão da casa. Pediu a Bernardo calma! Que ele era sabedor de o quanto ela aguardava essa chamada. Que era o seu futuro. Ser paciente, logo estaria de volta. Confiasse nela. Ele nem quis ouvir. Subiu em seu carro e se foi.
Enquanto isso, lá no terreiro, a família conversava sobre o episódio. Na realidade, o noivado de Verônica não era bem visto. Mercedes e a família, sem mesmo nada contarem, nunca foram a favor desse compromisso. Não se tratava do fato de Bernardo ser de descendência indígena. Eles queriam ver sua Verônica casada com um médico, um engenheiro, e não com um simples funcionário público, ligado ao governo da Bolívia. Já por ocasião dos tempos de namoro, e no dia do noivado, quando tiveram oportunidade de conhecer os pais de Bernardo, em um jantar a eles oferecido, sentiram que a moça não estava escolhendo seu companheiro ideal. O comportamento deles à mesa, a conversa, abrutalhados, sem a mínima noção de como usar os talheres, falando com a boca cheia, contrariou demais a todos.
Então, Mercedes deixou o tempo passar.
Verônica, a partir daí, passou a se dedicar com a preparação de sua viagem para Salamanca, já que o prazo era exíguo para se apresentar na Universidade. As orientações contidas na carta, eram muitas, e rígidas, havia necessidade de pressa. Um aspecto a deixá-la despreocupada, estava no fato de ter uma amiga que residia na cidade espanhola há um bom tempo, e iria recepcioná-la. Não se sentiria perdida.
Bernardo passou para um segundo plano.
Parte 4 – Suzo Bianco
Eis então que o fatídico dia chegou, e com ele uma carta. Dona Mercedes a entregou para Verônica, que ao ler o nome de Bernardo no envelope estremeceu-se inteira, foi procurar apoio no encosto da janela do seu quarto. Dentro do envelope, uma única folha destacada de um caderno escolar. Lia-se num português cuidadoso, demonstrava capricho por parte dele:
“Olá, minha verdadeiramente amada Verônica. Me perdoe pelo que fiz na última vez que nos vimos, sei que hoje você partirá e provavelmente nunca mais a verei. Queria que, com essa carta, soubesse que ainda a amo, embora meu orgulho me impedisse de dizer isso antes. Mas precisa entender meu lado quanto aquela minha atitude, acho que te devo isso. Vou ser direto para não roubar seu tempo. Desde que nos conhecemos sua família infelizmente pareceu não gostar de mim, muito preconceito. Me viam como uma ‘raça’ diferente, grosso, violento por conta de meu jeito de falar ou da minha etnia e cultura. Me viam como fracassado por trabalhar como funcionário público, ouvia eles comentarem. E não via você reagir, achava que no fundo pensava o mesmo, e minha confiança foi diminuindo com o tempo. Meus pais e eu sempre fomos honestos e trabalhadores como vocês, não entendi quando falou para todo mundo com felicidade que iria para longe agradar os desejos da sua família, sem nada me dizer antes. Aquilo partiu meu coração. Vi que não gostava de mim como eu a desejava. Eu pretendia ser feliz com você e nossos futuros filhos. Mas hoje estou na Bolívia, sem filhos, vivendo bem, seria perfeito não fosse a falta que você me faz. Mesmo assim, te desejo toda a sorte e felicidade desse mundo nessa nova etapa da sua vida, daquele que ainda te ama muito, Bernardo”
Ela chorou ao terminar de ler a carta.
Verônica já estava com a reserva no banco, as passagens compradas, e tudo o mais. Ela só não contava com o amor que ainda tinha pelo Bernardo, esse, por euforia, ela quase esqueceu...
FINAL- Cléa Magnani
Verônica estava eufórica, mas receber aquela carta tão desalentada, a deixou preocupada. Será que Bernardo não viria nem se despedir dela?
As horas passavam rapidamente e pouco antes de deixarem a casa de Verônica rumo ao aeroporto, Bernardo chegou de surpresa. Parecia estar alegre e trazia um grande buquê de rosas brancas, que ofereceu à jovem enquanto a beijava ardentemente. Recuperando o fôlego, Verônica sorriu muito feliz, e disse
- Bernardo! Se você continuar a me beijar assim, eu acabarei me arrependendo de partir...
O rapaz a olhou no fundo dos olhos e disse:
- É para que nunca você se esqueça de mim, minha Verônica.
- Mas é claro que jamais o esquecerei, meu amor! – ela respondeu.
Bernardo a abraçou longamente, e pediu que dessem uma caminhada até a beira do rio, onde haviam trocado seu primeiro beijo, e que ela levasse as rosas, pois queria guardar a sua imagem para sempre, linda como ela estava naquele dia.
Saíram caminhando, os dois enlaçados e rindo muito, se recordando de momentos do seu romance.
Na beira do rio, onde grandes árvores de Angico sombreavam a vegetação típica e florida formando um pequeno jardim natural, Bernardo pediu que ela se sentasse na relva, e se deitasse. Começou a colocar as rosas sobre o peito da jovem, e contornando seu rosto. Muito feliz Verônica sorria e Bernardo nunca a vira assim tão linda. Sentou-se ao seu lado a admirando com muita ternura; curvou-se sobre ela, ajeitou uma mecha de cabelo que lhe cobria a testa, e a beijou apaixonadamente, sentindo as lágrimas lhe descerem pela face, retirou do bolso uma Mauser que encostou no lado esquerdo do corpo da jovem, que envolta pelo seu carinho não percebeu a morte se aproximando. A bala atravessou seu coração e o seu seio esquerdo. O sangue jorrou sobre as rosas brancas. Os olhos de Verônica se fecharam lentamente sob as lágrimas de Bernardo, que lhe pedia perdão num choro convulsivo. Encostando a arma em sua própria cabeça o rapaz atirou, caindo sobre o corpo inerte do grande amor de sua vida...