Soldado Ferido
Ao seu lado estava o amigo coberto de sangue, investindo uma força descomunal para ter êxito no simples gesto da respiração, seus olhos exaustos pouco conseguiam enxergar por conta da fumaça que dominava o ambiente destruído, feito em ruínas, como se tivesse enfrentado um terrível furacão. Sem mais aguentar, o amigo tossiu, tossiu desesperadamente, tossiu como se a tosse fosse capaz de vencer a morte. Depois de tanto desespero um silêncio malquisto. Um silêncio ensurdecedor. A vida se fora daquele que ao seu lado combatera.
Olhou para o outro lado ainda desnorteado, a cabeça doía, o corpo ardia. Como se levantasse uma barra de ferro ergueu as próprias mãos, esforçou-se por observá-las, incomodou-se pelos machucados que vertiam sangue. Tentou se levantar, mas as pernas pareciam independentes do corpo, como se não obedecessem ao seu comando. Quando finalmente pôde se sentar, sentindo o suor escorrer pelo rosto, alguém se apresentou. Não era um amigo. Nem um desconhecido disposto a ajudar. A metralhadora foi apontada em sua cabeça. Disparos impiedosos.
Um berro.
Capaz de acordar a vizinhança.
Miguel se levantou da cama como se estivesse preparado para o ataque, para a defesa, para salvar a própria vida. Seu corpo suava apesar do estado de repouso, seu coração palpitava em resposta ao sonho perturbador, um sonho que tantas vezes se repetia, de diferentes maneiras, com diversos cenários e personagens, mas sempre capaz de recuperar as dolorosas e angustiantes lembranças da guerra.
Não pôde mais dormir. Não naquela noite.
— Já por aqui? — o homem do outro lado do balcão sorriu incrédulo —. Ainda são cinco da manhã.
— Para alguns ainda, para outros já são cinco da manhã — tirou a boina que escondia seus cabelos, pendurou o casaco sobre o encosto do banco de madeira, colocou algumas cédulas sobre a superfície indicando que estava ali para se livrar de si mesmo.
— Não está mais na guerra, meu amigo, não precisa desperdiçar tempo com o passado — serviu o cliente com o líquido que sabia ser de sua preferência.
— Não quando ele fica exatamente onde deveria, no passado — tomou um gole do líquido ardente, fez uma ligeira careta, indicou que queria mais —. Não sabe como sou grato por esse lugar nunca fechar.
— A guerra fez homens como você procurar refúgio por aqui, nos mais surpreendentes horários — despejou a bebida sobre o copo —. Não posso mais me dar ao capricho de descansar os esqueletos quando tenho clientes fiéis dando o prestígio.
— Aposto que sabe aproveitar isso — sorriu indisposto.
— Mas falando sério, precisa recomeçar — aconselhou —. Sei que recebe uma aposentadoria pelo serviço prestado, pelos dias difíceis que viveu em nome da pátria, deveria se dar ao direito de desfrutar desse benefício. Precisa esquecer o que foi, mudar de país, quem sabe, precisa se livrar do Miguel machucado que no meio da madrugada se afoga em bebidas enquanto poderia ter uma família e investir em negócios próprios.
— Sabe o que é ver seu amigo morrendo sem nada poder fazer? Sabe o que é carregar esse fardo pelo resto dos seus dias? — encarou o atendente que conhecia sua história, que se condoia por ela —. Ele deixou uma filha recém-nascida, uma esposa, tinha a própria família e sempre dizia o quanto desejava voltar para ela. Eu prometi que o ajudaria — escondeu os olhos por alguns segundos —. Eu prometi o que não pude cumprir... — tornou a encarar seu ouvinte, dessa vez com o olhar marejado, fundo, que se esforçava por conter as lágrimas.
— Não pode se culpar por algo que não dependia apenas de você — o homem tocou o ombro do ex-combatente —. Acha mesmo que seu amigo estaria feliz vendo-o se acabar dessa maneira? Precisa recomeçar, se não por você que seja por ele, para honrá-lo, para honrar sua heroica morte!
— Heroica morte — soltou um riso indiferente —. Fomos levados como se fôssemos gado em direção ao abatedouro, acham que pagar uma aposentadoria é o bastante para as dores que nos fizeram suportar, mas se esquecem de que a alma ninguém pode curar — reclamou o que sentia.
— Ninguém além de você mesmo, meu caro, ninguém além de você mesmo...
Solitário, encarando o copo vazio, Miguel refletiu sobre a própria vida, sobre o próprio caminho, sobre cada amargura que experimentara até aquele atual momento, até chegar na cadeira de um bar tentando se livrar por alguns minutos breves da história que carregava. Estava cansado, farto de tudo aquilo, exausto de quem era.
Despediu-se do atendente.
Seguiu pelas ruas frias.
Depois de minutos caminhando e pensando, apoiou as mãos sobre as grades que o separavam do ar, se as ultrapasse, se fizesse o que pensava fazer, entregaria o corpo para despencar de metros de altura e se perder pelas águas agitadas que sob seus pés fluíam. Para ele aquela era a solução, o único remédio para que, de uma vez por todas, o passado ficasse no passado.
Ouviu gritos.
Gritos desesperados.
Gritos de horror.
Sendo atraído por eles esforçou as vistas contra a neblina densa que invadia cada rua, que dominava cada praça, que tornava as placas impossíveis de ler. Sentiu o sangue ferver com a visão que pôde ter. Alguém era atacado por homens sórdidos. Uma mulher estava encurralada enquanto um meliante a segurava na tentativa covarde de alcançar um nojento prazer.
Seu amigo, encurralado por soldados do exército inimigo, estava de joelhos com o rosto coberto por hematomas. Suplicava por piedade, por compaixão, implorava para que o deixassem ir, tentando sensibilizar aqueles que se divertiam com seu desespero contou sobre a própria família, sobre a esposa que amava e a filha que tanto almejava contemplar o crescimento. Mas os agressores não queriam demonstrar que tinham coração nem escondiam o desprezo que, contaminados por discursos hostis, sentiam pelos adversários. Estavam prontos para aniquilá-lo depois de tanto o torturarem. Mas Miguel mirou na cabeça de um deles, escondido atrás de árvores atingiu o alvo assustando os demais, atacando sem misericórdia, sem dar-lhes tempo para que revidassem.
Fechou os punhos, não pensou duas vezes, avançou contra aqueles homens famintos de maldade tendo a força de guerreiro que nunca deixara suas mãos. Desvencilhou-se de golpes, usou um dos criminosos como escudo para os ataques de armas carregadas, lançou o cadáver contra os dois que restavam, com a arma do morto extinguiu os outros.
A mulher gemia de pavor. Tremia. Entrava em estado de choque.
— Está tudo bem... — sentou-se ao seu lado naquele chão frio e úmido —. Não precisa ter medo — ofereceu-lhe o lenço que carregava. Fez companhia à donzela até que ela recuperasse o domínio sobre as próprias pernas e seguisse seu destino sem nem dizer quem era. Miguel também voltou para casa, pensando no que teria feito com a própria vida, pensando na jovem que resgatara.
Dias depois do ocorrido, apesar do frio que tornava sair da cama uma verdadeira missão de guerra, Miguel se vestiu como de costume, colocou a boina que aprendera a usar desde os tempos de batalha e decidiu caminhar pelas ruas de Lácios enquanto o dia amanhecia, as pessoas tomavam o rumo do trabalho e a vida, como em cada manhã, retomava seu ciclo.
Sentou-se em uma praça qualquer.
Analisou o movimento ainda fraco que aos poucos ganhava volume, queria ver o que as pessoas faziam, como era ter uma vida normal, livre de pesadelos, livre de lembranças trágicas, livre da dor de ser quem era.
— Olá — uma tímida voz feminina soou aos seus ouvidos tirando-o dos pensamentos —. Não gostaria de encantar o dia de uma sortuda dama com belas flores?
Sem saber o que responder com exatidão, o soldado levou os olhos à jovem ao seu lado, recordou-se da manhã do ataque, lembrou-se de que fora ela quem recebera a sua ajuda. A moça também demonstrou se lembrar do triste dia, do momento inoportuno que vivera, da trágica experiência que seria consumada se o cavalheiro não tivesse se apresentado.
Um silêncio ficou entre eles.
Até que a vendedora de flores o dissipou.
— Posso me sentar? — perguntou envergonhada.
— Mas é claro — cordial, Miguel cedeu um espaço maior.
— Bom... Não nos encontramos mais, pensei que fosse apenas um viajante, não tive a oportunidade de agradecê-lo... Quero dizer, não sei o que teria acontecido naquela manhã.
— Não precisa ser grata, qualquer sujeito decente no meu lugar teria feito o mesmo... Mas devo me desculpar pela brutalidade das ações, uma dama como você não deve estar acostumada...
— De qualquer forma, sou grandemente grata... — ajeitou os ornamentos que levava —. Preciso continuar meu trabalho, aceita as flores?
Embora não tivesse alguém para presentear, Miguel decidiu comprá-las, sentiu que precisava ajudar a moça que se apresentara de repente, percebeu que sua vida também possuía as próprias dificuldades.
Depois de uma manhã de treinamento na véspera da partida para o campo de batalha, Miguel estava sentado num dos bancos do pátio do quartel sendo acompanhado pelo amigo de infância. Apesar de tentar esconder, não se saía muito bem em camuflar as próprias preocupações, principalmente àqueles que o conheciam profundamente.
— Voltaremos, meu amigo, precisa acreditar nisso.
— Eu não sei — respondeu sincero —. Nunca participamos de guerras antes, e tenho para mim que não são como nos nossos treinamentos. Aqui temos tudo a nossa disposição além de tudo não passar de uma grande brincadeira. Mas lá... Lá estaremos enfrentando um ódio verdadeiro, homens realmente sanguinários...
— Deixe de bobagens e me prometa que será feliz.
— O que quer dizer com isso?
— Sei o que está pensando, que precisa proteger a si mesmo e tantos quantos puder. Mas somos apenas humanos, frágeis homens, nem tudo está ao nosso controle, aliás, nada está plenamente em nosso domínio... Vamos ficar bem, mas se por acaso voltar sem mim precisa me prometer que será feliz e que quando aparecer alguém em seu caminho, alguém que seu coração lhe disser que tem a chave da felicidade, prometa que não se sabotará se afogando em culpas injustas e que seguirá adiante.
— Não fale bobagens — tentou evitar o pensamento, tentou se convencer de que tal discurso era motivado por um medo que ele também sentia, ignorou o fato daquele diálogo dar início à despedida.
— Não são bobagens, precisa prometer — colocou a mão sobre o joelho do companheiro —. Prometa.
Levando o olhar para aquele que tinha por irmão, Miguel levou a mão à testa em um gesto de continência procurando se livrar do nó que se formava na garganta.
— Sim, senhor, capitão — lançou o sorriso debochado.
Seu amigo se sentiu mais confortável. Parecia prever o futuro.
— Espere! — correu atrás da vendedora de flores atentando-se à delicadeza de seu olhar, à majestade dos cabelos que dançavam conforme o vento daquela manhã fria de inverno.
— Deseja trocar? — gostava de tratar bem dos clientes, convencia-se de que quanto melhor os atendesse mais fiel eles seriam. Mas aquele cliente era especial, era quem a salvara, por quem tinha um carinho que não sabia explicar.
— Não é isso... Quero dizer... Não tenho uma sortuda dama para presentear, mas gostaria que as recebesse como um presente — estendeu-as com certo receio —. Talvez pudéssemos nos conhecer um pouco melhor, não sei, um passeio, um almoço... Enfim, gostaria que aceitasse o presente e o convite...
Sorridente, a moça acolheu as flores que vendia, que a cada manhã preparava pensando nos casais que se presenteariam, no sorriso que seria estampado na face de quem as recebesse, pensando, também, no dia que teria a honra de por elas ser presenteada.
— Se puder esperar que eu termine as vendas...
— Claro — concordou alegre —. Ou melhor, talvez eu possa ajudá-la, se deixar, claro...
— Quer mesmo fazer isso?
— Não seria nenhum incômodo, seria?
— Tudo bem... — do carrinho que carregava fez uma separação, entregou algumas combinações ao novo amigo ficando com outras —. Não esqueça de sorrir...
— Claro...
Depois de tantos meses afogado em nuvens densas, submerso em paisagens sombrias de um passado insistente, Miguel tornava a sorrir, a encontrar sentido na vida, a ter um propósito pelo qual viver, tinha suas feridas saradas.