Tempos Depois...
O tempo passa para cada um de nós, os anos se vão como um rio que desboca no mar, cujas águas sempre se renovam, a cada segundo, sempre há uma novidade. Essa é a vida. Cheia de surpresas, de encontros e desencontros, de risos e choros, de alegrias e tristezas. Mas tudo passa. Sempre passa. O tempo passa e, quando envelhecemos, quando percebemos que estamos chegando ao final de nossa história, somos incomodados por sentimentos de arrependimento, por mais bem que tenhamos vividos, sempre haverá uma razão pela qual nos arrependeremos. Uma decisão não tomada, uma escolha mal feita, um tempo mal investido. Na velhice nos arrependemos de algo na desesperança de que já não há mais tempo para corrigirmos.
Naquela tarde ensolarada de outono, sentindo o vento frio tocar minha face e fazer dançar meus cabelos, sentei-me em um dos bancos de madeira da praça que nos últimos meses me acostumei a visitar. Seu ar era agradável, a paisagem ornamental me trazia paz e a visão de jovens apaixonados me fazia pensar no meu doloroso passado. Como é bom amar! Melhor ainda é se sentir amado. Eu queria dizer isso a todos os jovens que via, para que lutassem por aquele sentimento, para que se rendessem ao que de melhor a vida pode nos ofertar. Mas nunca ousei incomodá-los com minhas lamúrias. Contentava-me em observá-los com toda sua juventude, com todo seu vigor, com todas as páginas em branco do livro chamado Vida. Beijavam-se, sorriam um para o outro, recostavam-se um sobre o ombro do outro em um gesto de carinho, de confiança, de segurança. Naquela tarde ensolarada de outono, atentei-me a uma jovem garota que se parecia comigo quando ainda adolescente, ao seu lado estava um rapaz de porte elegante, pareciam perfeitos, como alma gêmea, como um dia pareci. Emocionei-me. Nesses últimos dias tenho estado muito sensível. Talvez por estar sendo avisada da finitude, fato é que as coisas da vida tem me tocado de uma maneira diferente.
— Algum problema? — não me dando conta da lágrima que escorria em meu rosto, fui tirada de meus devaneios com o som de uma voz masculina, tentei disfarçar a emoção, mas o gentil senhor demonstrou que também era sensível —. Não se incomode com isso, que jeito melhor há para que possamos limpar nossas almas? — ofereceu-me um lenço de pano, o que claro, aceitei recordando-me dos tempos antigos, quando o cavalheirismo era diferente do tempo atual.
— Tem razão, a vida é muito curta para que escondamos o que estamos sentindo... — por muito tempo acreditei que devia ser forte, que precisava ocultar o que sentia a fim de evitar que descobrissem minhas fraquezas, mas aprendi que todos somos humanos, todos sentimos, é inútil combater contra a nossa natureza.
— Na nossa idade falar que a vida é curta é quase uma piada — divertido, o gentil senhor conseguiu me tirar uma risada —. Perdoe-me o incômodo, mas, poderia me sentar ao seu lado?
— Fique a vontade — não me lembrava de quanto tempo não conversava com um homem desde que meu marido morrera, desde que passei a viver ainda mais sozinha por esse mundo cheio de gente ocupada demais —. Não costumo chorar em praças, mas na nossa idade, qualquer coisa pode ser um gatilho para que o passado retorne e nos toque de alguma maneira. Às vezes sutil, em outras áspera, mas sempre de uma maneira saudosista.
— O passado mais parece um eterno presente, sempre arruma uma maneira de voltar, por mais que tentemos fugir disso... — seus olhos esverdeados, cansados pelo tempo, dirigiram-se ao cenário paradisíaco da praça, observou com atenção as pessoas ali presentes, os grupos de amigos agitados, os casais cheios de romantismo, coisas que um dia vivi, que por certo ele também vivera —. Se esses jovens soubessem o quanto a vida é valiosa... Talvez saibam, como nós também soubemos, mas sempre haverá uma vontade grande por viver um pouco mais...
— Sim... Principalmente quando nos arrependemos de algo que deixamos de viver, ou que vivemos sem precisar, mas é inútil tentar avisar, faz parte da vida, todos experimentaremos do mesmo sabor de frustração que por vezes nos sobrevém nessa efêmera existência...
— Por que diz essas coisas? — virou-se para mim —. Se me permite saber, no que tem pensado?
Nunca falei com alguém sobre aquilo que estava prestes a declarar, dificilmente falaria, mas naquele momento, perto de um desconhecido, senti-me encorajada para, pelo menos uma vez na vida, contar a minha história. Talvez fosse minha única oportunidade. Talvez nunca mais pudesse desabafar um pouco do peso dos anos.
Quando eu era muito jovem, adolescente ainda, apaixonei-me pela primeira vez. Dizem que o primeiro amor é apenas para que descubramos sobre esse sentimento tão avassalador, mas comigo foi diferente, não foi apenas uma descoberta, foi uma vivência que me trouxe certezas e convicções. Não foi apenas um experimento, foi a comprovação de que a eternidade pode sim existir.
Ele era um rapaz muito lindo, educado, galanteador, que atraía os olhares de moças ao redor. Mas não foi por elas que ele se encantou, não foi a elas que entregou o coração nem foi elas que ouviram uma declaração de amor vinda de seus lábios. Eu fui agraciada. Aos poucos fomos nos conhecendo, fomos nos aproximando, e quando nos demos por conta tínhamos nos rendido ao tão sonhado e falado primeiro beijo. Uma experiência doce, inesquecível, jamais me esquecerei do nervosismo que senti, do rosto ruborizado que vi, mas também não poderei me esquecer de que, poucos segundos depois, demos nosso segundo beijo, dessa vez com romantismo, como se as almas finalmente tivessem se conectado. Ele era minha alma gêmea. Com nossas imperfeições, éramos perfeitos juntos.
Começamos a namorar por nossa própria conta, poucos sabiam de nosso envolvimento, mas ele era um rapaz bastante responsável, dizia que não estava comigo apenas por diversão, para falar aos amigos que tinha uma namorada, dizia que me amava e que me queria ter como sua esposa. Dispôs-se a falar com minha família, a pedir autorização de meu pai para que oficializássemos nosso relacionamento, mas eu não esperava pelas reações.
Meu pai proibiu, inventou a desculpa de que era cedo demais, de que não concordava que duas crianças vivessem coisas de adultos, proibiu até mesmo nossa amizade. Anos mais tarde descobri as razões para aquele impedimento, coisas do passado, de um passado que não me pertencia, mas que me vitimara. Dizem que o proibido é mais atrativo, não é mesmo? A proibição de nada serviu, não diminuiu nossos sentimentos, não ofuscou o amor que sentíamos, antes o fortaleceu. Nossos encontros foram escondidos, não deixamos que entre nós fosse aberto um abismo, insistimos para que a felicidade nos alcançasse.
— Parecemos dois inconsequentes — debaixo de estrelas tão lindas, sentados por entre as pedras que eram atravessadas por riachos que desbocavam no mar, ele começou aquela que seria nossa derradeira conversa —. Mesmo com todos os avisos, insistimos no que estamos vivendo, o amor nos enlouquece...
— Os normais não viveriam algo tão intenso, não acha? — falei com a sagacidade da juventude, com aquela coragem que parecia inabalável, com a certeza de que tudo estava resolvido, de que o futuro aconteceria, quisessem ou não —. Além disso, o que eu faria sem você? Não sou nenhuma criança indefesa, sei bem do que quero, sei bem qual é a vida que imagino e ela não existiria sem a sua participação.
— Às vezes acho que estou agindo errado, desrespeitando o que seu pai ordenou, mas então percebo que seria inútil tentar me afastar, tentar me esquecer do seu rosto, cedo ou tarde eu seria atraído a ti mais uma vez, o silêncio da sua voz seria insuportável. Não estamos cometendo nenhum delito. Tudo o que queremos, de tudo o que precisamos, é de amor.
— Não dê atenção ao medo... — levei a mão ao seu rosto, acariciei-o sem saber que aquela era a nossa despedida, sem saber que os próximos anos seriam dolorosos —. Não nego que por vezes me sinto ansiosa, mas pensar em você me acalma, pensar no nosso futuro me encoraja, seremos felizes, eu sei disso, sei que terminaremos nossas vidas velhinhos.
— Promete que limpará minha dentadura? — perguntou engraçado.
— Só se você me garantir ajuda na hora de procurar os óculos... — para mim estava tudo certo, envelheceríamos juntos.
Naquela noite estrelada nos beijamos.
Um beijo de despedida.
Ao chegar em casa, depois de ter caminhado pelas ruas como se tivesse andado por nuvens macias, encarei o severo olhar de meu pai, algo não estava bem, eu não imaginava o que poderia ser nem o que tinham planejado para mim.
— Pai?
— Pai? — ele repetiu com decepção —. Desrespeita as minhas ordens e tem coragem de me chamar de pai? — senti o coração se agitar, o medo se aproximar —. Até quando acha que esconderia de mim o que tem feito? Sou um homem de muitos amigos, Ana, tenho olhos espalhados por aí. O que tem a declarar em sua defesa?
Eu poderia mentir, ou me fazer de desentendida, poderia tentar escapar de sua fúria através de desculpas ou promessas que não cumpriria. Mas não. Preferi lutar por meus sentimentos. Ele me entenderia. Ele precisava me entender. Eu queria que ele me entendesse.
— Pai... Eu amo aquele garoto... Qual é o problema em amar? Já não sou mais uma criança, em poucos meses participarei de vestibulares, entrarei na faculdade, já sou uma mulher!
— Amor? O que você acha que sabe sobre o amor? Mulher? Enquanto depender de mim deverá fazer o que digo! — levantou-se friamente, distante, diferente do pai amoroso e acolhedor que sempre tive —. Você vai embora, vai para a casa da sua tia no exterior, fará faculdade por lá e só então voltará.
— Pai! — tentei protestar, olhei para minha mãe na esperança de que me ajudasse, mas ela se omitiu, pensava como ele, queria o que pensava ser o melhor para mim —. Não pode fazer isso.
— Não discuta comigo, Ana! Está decidido! Sua mãe te ajudará a fazer as malas, você partirá amanhã cedo!
E assim foi.
Não tive tempo para me despedir de quem eu amava. Não tive escolha se não a obediência, se não o silêncio. Tudo o que pude fazer foi deixar uma carta, pedi que entregassem a Bernardo, ali estavam minhas palavras de amor, palavras que nunca soube se ele as receberia, palavras que talvez ficassem comigo para sempre.
Casei-me com outra pessoa, tive filhos, não posso dizer que não fui amada, que não amei, mas um amor como aquele, como o primeiro, nunca mais experimentei.
Contando minha história olhei para o cavalheiro ao meu lado, vi em seus olhos certa emoção, pareciam lacrimejados, tive certeza do que sentia seu coração quando seus olhos libertaram as lágrimas.
— Algum problema? — perguntei.
— Um momento — retomou o fôlego e tirou do bolso um papel envolto por plástico, desfez as dobras, estendeu perante os próprios olhos e começou a ler —. Querido Bernardo, nem sempre a história tem a forma que idealizou o escritor, às vezes ele é surpreendido por reviravoltas que nem pensava que existiriam, por acontecimentos por ele não planejados. E, então, ele precisa se adequar ao que aconteceu tão de repente, o que não pode mudar para que o sentido não se perca, o que passa a ser parte da sua invenção. Precisei partir, ir embora, eles venceram, não imaginava que pudéssemos ser tão frágeis, mas é o que somos... No entanto, o que eles nunca poderão fazer, o que jamais terão o direito de fazer, é tirar de dentro de mim a pessoa que amei tão intensamente, com quem descobri o que é o amor, com quem conheci o maior prazer da vida... Nossas vidas dificilmente se cruzarão outra vez, dificilmente nos encontraremos nessa instância, mas quero que saiba que enquanto viver levarei você comigo, enquanto respirar terei a sua lembrança guardada dentro de mim e nada mudará tal fato. Não espere por mim, não posso prometer que esperarei pelo nosso reencontro, não nesse nível da existência, pelo menos não nessa vida. Obrigado por tudo, por ter me amado, por ter permitido que eu o amasse, obrigado por ter me ensinado sobre as coisas do coração. Com amor, Ana.
Conforme escutava aquelas palavras era consumida por algo que transbordava de meu coração. Fui levada ao passado, quando escrevi aquela carta, quando as lágrimas pingaram sobre o papel e a saudade passou a existir desde aquele momento. Não poderia ser possível o que estava acontecendo, jamais esperei por aquele dia, nunca acreditei que nossos caminhos voltariam a se esbarrar, que nossas vidas tornariam a se comunicar...
— Bernardo? — foi tudo o que pude dizer.
— Ana...
As palavras não vieram.
Mas o abraço nos devolveu aqueles sentimentos juvenis.
Os dias se passaram. Ele também estava viúvo e todas as nossas promessas adolescentes retornaram. O amor estava vivo. Nunca deixara de estar e para sempre estaria. Reafirmarmos nosso compromisso de limpar a dentadura e procurar os óculos, tempos depois a vida pagava a dívida que conosco possuía.