O senhor e a garota

Garota:

- O senhor parece estar melhor hoje

- Você está aqui comigo... não é difícil estar bem - responde ele com um sorriso no rosto. Mas nota-se o esforço em expressar qualquer sentimento fisicamente. O senhor, deitado em uma cama em uma sala que claramente é a de um hospital e que, por sua vez, parece estar ali há muito tempo.

A conversa continua:

- Como estão meus netos? - pergunta o senhor

- Estão bem. Já estão querendo férias da escola. Se eles soubessem o que vem pela frente... Aproveitariam mais essa fase.

- Mas, oras... Você bem sabe que essa época também não é tão legal assim, menina.

- Tudo bem, pai... Mas tem coisas piores

- Concordo! Mas, por enquanto, não pelo ponto de vista da realidade deles. O que de pior acontece com eles atualmente é o pior que já aconteceu até agora na vidinha deles... e ainda bem, não é mesmo?

- Com certeza, pai... Entendo e concordo com o senhor, mas tem umas horas que ele é reclamão demais, nossa

- Olha só... nem parece alguém que eu conheço, né?

- Pois é... o senhor, né?!

- Engraçadinha

- Tive a quem puxar

- E fico muito feliz com isso

Começa a chover

- Poxa... Finalmente. Torci muito para isso acontecer. Tá cada dia mais quente - comenta o senhor com um ar sereno

- Nem me fale. Eu também estava torcendo pra chover. Mas gosto do calor.

- Ah, não... fala isso não! Você não é minha filha.

- Ah, tá! Falou o roqueiro na família de sambistas.

- Mimimi

- Olha aí reclamando de novo. Velho reclamão, nossa senhora.

- É de família, viu?!

- Seus netos que o digam, né?! Hahaha

- Mas olha só, já que você veio aqui só pra me esculachar, faz pelo menos uma coisa de bom e chama a enfermeira pra ajudar a me levar lá fora, vai.

- Ir lá fora? Mas tá chovendo... tá doido?

- Mentira! Sério?? - diz ele com sarcasmo

- To falando sério, pai. Ela não vai deixar o senhor sair lá fora com o tempo assim.

- Então não chame e me ajude você.

- E o que te faz achar que eu vou te ajudar com isso? - Ele desvia o olhar para a janela, respira fundo e responde:

- Olha, filha... você me conhece bem. Sabe como eu penso, as coisas que sinto e como sou teimoso. Mas sabe também o porquê d'eu ser tudo isso e que quando quero algo eu realmente quero e que quando realizo me traz felicidade. Você sabe bem que eu am...

- Ama a chuva... Sim eu sei - Interrompe ela - Mas o senhor não está em condições de ir lá fora nesse clima.

- Mas é justamente por isso que quero, oras. Fico um tempão aqui e só saio quando está sol. Há quanto tempo não sinto a chuva cair no meu rosto? O vento bater. Eu quero isso. E seu eu perder essa oportunidade?

- Para de falar assim! Você terá outras oportunidades sim!

- Filha, eu não queria te irritar, mas por favor... por mim

- Pai... eu...

- Por favor

Ela olha pra fora e olha pra ele e responde:

- ... Tá, ok! Mas só um pouco e já voltamos, ok?

- Tá baum, vai... Melhor do que nada

Ela o ajuda a subir na cadeira de rodas e eles, com cautela para não serem vistos, atravessam os corredores do hospital até chegarem na área aberta. A chuva não está forte. Está suave, gostosa, fresca. Aquele tempo nublado com um vento gostoso, gelado. Ele aprecia o clima que tanto gosta enquanto ela empurra a cadeira de rodas e vai diminuindo a velocidade conforme vai se aproximando do fim da parte coberta. Mas ele pede:

- Não para, não... vamos pra baixo dela

- Que? O senhor quer mesmo ir na chuva? Tá maluco? A enfermeira vai me matar.

- Foda-se! Eu falo com ela. Quebra essa pro pai, vai

- Ai, meu Deus... o que deu no senhor hoje, hein... tá bom, vai. - Ela começa a levá-lo e as gotas começam a cair neles. Ele fecha os olhos e fica com o rosto inclinado para receber e sentir a chuva. Ela vê a expressão de paz e alegria em seu rosto e esse sentimento também a invade, fazendo com que ela não consiga segurar o sorriso. Mas ela não sabe se o que escorre em seu próprio rosto são gotas da chuva ou lágrimas. Fazia tempo que ela não tinha um momento assim com seu pai. Com isso ela decide acompanhá-lo e sentir a chuva de olhos fechados.

- Essa sensação é indescritível, não é? - Questiona ele e continua - É como se mesmo os sentimentos ruins se tornassem bons. Uma paz, o som de todas as gotas caindo no chão, nas árvores, nas possas... O vento gelado, o calafrio, o cheiro... E tudo que estava ruim vai embora junto com toda a água. Somente coisas novas e boas te aguardam.

- É incrível mesmo pai - responde ela ainda de olhos fechados e prestando atenção em cada palavra e confirmando cada uma dessas coisas. Então ele continua:

- Ao longo da minha vida, muitas coisas me trouxeram felicidade, e algumas, muitas, me trouxeram outros sentimentos também. Mas somente esse clima da chuva que tinha essa poder natural de me arrancar sorrisos e boas sensações só de chegar... só de existir.

- Estou notando o porquê rsrs

- É... Isso até você chegar na minha vida - Ela havia ouvido tudo isso ainda com os olhos fechados, mas nesse momento os abriu e voltou seu olhar para ele, que continuou, ainda com os olhos fechados:

- Até hoje não sei explicar. Eu sempre desejei sua existência e sempre imaginei que você seria incrível. Mas me surpreendi: Você a cada dia superava minhas expectativas de uma forma incrível - Ele abre os olhos e olha pra ela e coloca uma de suas mãos sobre uma das mãos dela, que seguram a cadeira - Você é mais do que incrível. Você é toda uma nova definição disso. Eu amo isso que você é... mesmo gostando mais de calor, fazer o que, né?! - Ela ri e passa a ter certeza de que são lágrimas:

- Oh, pai...

- Eu te amo muito, minha Sara, e espero que essa chuva consiga te dizer um pouco isso... Que ela te faça sempre você sentir bem, independente do momento. Esse é meu maior desejo atualmente. Consegue sentir? - Ela solta a mão dela e ambos voltam a sentir a chuva de olhos fechados:

- Consigo sim, pai! Consigo sentir tudo que falou. E eu também te amo, meu velhinho - ela sente o vendo e o som da chuva agora com mais intensidade. Ela consegue sentir a chuva de uma forma mais especial agora... é diferente - Mas me avisa quando quiser entrar, ok?... Pai?... Pai?

Raymond Scott Freeman
Enviado por Raymond Scott Freeman em 05/10/2020
Reeditado em 06/04/2021
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