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O BEIJO
António caminhava por entre os inúmeros transeuntes mascarados, prenda do COVID-19, de vez em quando um encontrão pois a essa hora o distanciamento social era quase impossível. Por fim, pensou em tomar um café e conseguiu encontrar uma pastelaria medianamente lotada. Foi até ao balcão, respeitando as marcas no chão e pediu um café e um bolo seco. Depois, como ainda fosse cedo para os seus afazeres, decidiu sentar-se e levou o tabuleiro para uma mesa perto da janela.
Uma vez instalado, olhou através do vidro o movimento de pessoas que ali dificilmente abrandava. Absorto nessa contemplação, distraidamente, viu entrar uma mulher alta e morena, esguia e de cabelos compridos, castanhos escuros. Ela tirou a máscara, descobrindo feições regulares. Não era nenhuma deusa nem capa de revista, mas era razoavelmente atrativa. Sentou-se e esperou que o empregado a atendesse.
Às tantas, António lembrou-se que ainda não tinha tirado a máscara, gesto imprescindível para comer...
Reparou então que ela o olhou e ficou estática... Depois também a reconheceu. Inicialmente parecera-lhe familiar mas depois reconheceu nela Cláudia, uma mulher por quem estivera loucamente apaixonado e depois um acaso da vida fizera com que se perdesse no tempo.
Levantou-se, ela fez o mesmo, aproximaram-se um do outro e abraçaram-se perante o olhar curioso dos presentes.
- António, por onde andaste todo este tempo? Porque sumiste?
- E tu? Já não nos vemos há tanto tempo...
- Afastamo-nos, nem sei porquê... tantos sonhos e de repente foi cada um para seu lado...- disse ela em voz baixa.
- Foi isso... - António olhou-a mais de perto. - Agora ainda estás mais bonita... Lembro-me que tens quase a minha idade, talvez menos uns meses...
- Três anos, dizes bem... - Ela sorriu, um riso mais descontraído.
António parecia um pássaro encantado pelo olhar de uma serpente, se bem que ela nada tivesse de perverso. Fora o amor da vida dele até o destino apagar um pouco essas memórias.
- Casaste?
- Sim e tenho dois filhos, um casal de seis e oito anos.
- Eu casei, divorciei-me e tenho um menino com sete anos, que vive com a mãe.
- És feliz? Tens ar disso.
Ela olhou-o bem nos olhos e depois desviou a atenção para o fundo da pastelaria, um olhar perdido no nada. António percebeu que ela não queria responder... Em voz sumida, Cláudia acabou por dizer:
- Nunca te perdoei teres-te afastado. Amei-te tanto, tanto, como nunca amarei mais ninguém em toda a minha vida. - desviou o olhar para o chão e os seus olhos embaçaram.
- Então... não fiques assim... sabes bem que não gosto de ninguém desse jeito, também me emociono... - fez uma pausa e acariciou-lhe o rosto. Cláudia desviou-se, evitando esse toque, envergonhada porque os presentes estavam a olhar para eles.
Acabaram por se sentar na mesa dele. Ela sossegou um pouco, a blusa dela já não se movimentava tão rápida ao ritmo da respiração.
António reiniciou o diálogo:
- Então moras aqui na capital?
- Não, já moro em Aveiro há cerca de seis anos, desde que a minha filha nasceu.
- Exerces?
- Sim, sou advogada de direito laboral numa empresa multinacional. Agora colocaram-me em lay-off e vim cá de comboio visitar minha mãe. Dormi ontem em casa dela. Regresso logo ao final da tarde no Alfa Pendular. E tu?
- Eu estou no Centro de Estudos Judiciários. Queria ser juiz mas a coisa está complicada. Só depois desta pandemia passar terei alguma chance. Ouvi dizer que talvez para o ano abram concurso...
Estiveram calados algum tempo, observavam as pessoas que se levantavam, pagavam a despesa e saiam, outras que chegavam e ocupavam lugar nas mesas, sempre com distanciamento determinado por pressurosos empregados.
Após uma longa pausa, Cláudia olhou para o relógio.
- António, sabes que adoraria estar aqui conversando contigo sem contar o tempo mas tenho a minha mãe à espera. Quer fazer umas compras e eu aproveito e estou com ela. Que achas de trocarmos números de telefone? Até pode ser que nos possamos ver noutra ocasião, está bem?
António ficou algo aturdido perante a iniciativa dela. Adoraria estar ali, sem pressa. Tomou nota do seu número e enviou-lhe um SMS com o dele.
Cláudia levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e debruçou-se para ele, que também se estava a levantar e muito fortuitamente, os lábios de ambos encontraram-se, num ligeiro toque. António segurou-lhe gentilmente as faces entre as mãos e o beijo prolongou-se. Lábios que queimavam, os dele. Ela afastou-se um pouco e viu também nos seus olhos a ternura que reciprocamente alimentara durante anos. Mas agora era tarde demais, tinha família.
- Não, António. Não pode ser... Adeus...
Cláudia pôs a máscara e deu meia volta, dirigiu-se para a saída e nem olhou para trás. Por detrás daquele pedaço de pano que lhe cobria parcialmente o rosto e se fosse possível, António visionaria as grossas lágrimas que o molhavam.
Ficou com a impressão que não a voltaria a ver.
Acabou por ir ter à caixa de self-service, pagou a despesa do que nem sequer consumira, nem tocara no café nem no bolo, e também saiu para a rua.
Começou a cair uma chuva miudinha e ele sem chapéu... Andou mais uns cem metros e entrou numa loja de artigos chineses... Malditos, eram uma praga, espalhada pelo comércio de todo o país... Comprou um chapéu de chuva e mais protegido, empreendeu o caminho rumo ao trabalho... Mais um dia à espera que a pandemia passasse.