MADRUGADA ADENTRO

MADRUGADA ADENTRO

Enfim... a apoteose!

A luz velada do ambiente que surge de todos e de nenhum lugar, dá o toque intimista, necessário. A vitrola de fichas vomita, entre “guinchados”, uma canção ordinária de uma dupla sertaneja.

Num arremedo de bailarina clássica e passista de escola-de-samba, a mulher saltita e atira as longas pernas para o alto, num “can-can” caricato. Seus seios rígidos e fartos – “...tenho 21 aninhos!” – se entrechocam como laranjas que se acomodam num cesto. Seu corpo rodopia em trejeitos, e no desequilíbrio, aproveita para engendrar nova coreografia, explorando todos os espaços possíveis do pequeno ambiente onde nos encontramos.

A vitrola em cores contrastantes, um balcão divisório, alguns cartazes de bebidas camuflando as paredes desbotadas, guarnecidas por mesas e cadeiras indiferentes. Numa delas, estamos nós, eu e dois amigos. Eles debruçados sobre os braços cruzados, adormecidos. Eu, ainda consigo me manter acordado, entrefechando os olhos, entre um gole e outro de cerveja. O sono e o álcool se emparelham, e me arrastam num torpor, e intentam me levar à nocaute.

Um sapato de salto alto é atirado a um canto contra a parede. O outro, depois de rodopiar nas pontas dos dedos da streaper, é arremessado de encontro a uma das mesas vazias. Num movimento brusco e lascivo, ela começa a arrancar a última peça que lhe resta no corpo; sentando-se, bamboleante, ergue as pernas e acaba por se despir por completo. Lança a peça na direção de nossa mesa, encontrando a carcaça carcomida do que fora um peixe-frito-acebolado. Meus olhos procuram os dela, que se mantêm sob os longos cílios, entocados. Sua cabeça voluteia, vibrando os negros cabelos anelados que lhe chegam à nuca “...é corte da novela das oito, sabia?”. Coleando o busto, faz um giro na cadeira, enquanto seus braços súplices, esguios, de uma Vênus mulata, gingam em nossa direção. O que procura ritualisticamente expor, a luz tímida luta para ocultar-lhe.

Imagens entrecortadas chegam-me pelos olhos que me arrastam para os braços de Morfeu. Desfaleço. Num calafrio, logo desperto. Tudo parece orbitar à minha volta. Todos continuam onde estavam. Um “casal de pinguins” felizes baila na mesa. Nenhum “guinchado” no ar. As luzes continuam ali, errantes, contrariando a escuridão. Instintivamente, volto-me para o lado. Seus lábios vermelhos estão ali, a postos. É a primeira coisa que vejo. “Gosto de morango. Tu gosta?...” Ela está bem acomodada à cadeira, pernas à frente, enlaçadas pelos braços. O corpo arqueado deixa o queixo repousar sobre os joelhos. Os cabelos refletem a luz. Encaracolados, sem começo nem fim, um labirinto inquietante, que bem diz de nossas vidas; de nossas buscas desencontradas, de nossos achados indigestos.

Fomos à procura dos limites, e o que nos bate na cara é o transbordamento. Num movimento suave de indicador, ela (Janecleide ou Edileide?) alinha o cílio do olho direito, soerguendo-se, firmando-se de pé. Nem Vênus, nem prostituta – uma mulher. Recompõe os cabelos, faceira. Avança alguns passos e cata os sapatos, acompanhada pelo meu olhar de cordeiro desmamado. Volta a calçá-los, pés contra o piso. Um cantor brega sorri na vitrola. O casal de pinguins, como dois valetes, numa reverência glacial. Uma loira-calcinha-e-sutiã insiste em lhe roubar a performance, exibindo uma tulipa de cerveja.

Um espelho trincado, toma-lhe de supetão a imagem, quando ela invade o corredor ladeado por portas. E vai mergulhando na escuridão, ao compasso do ruído decrescente que vem dos saltos, desconstruindo-se, mimetizando-se. Tal como fico agora: agrilhoado a mim mesmo, encurralado pelas trevas.

Ancorado dentro da madrugada.

Rui López
Enviado por Rui López em 25/09/2020
Código do texto: T7071724
Classificação de conteúdo: seguro