Até onde a minha vista alcança

A casa já não era mais a mesma para ela desde que Hiroshi fora trabalhar em Osaka. Ainda tinha os outros dois irmãos mais novos, Inejiro e Joben, mas Hiroshi, até por ser o mais velho, sempre fora o seu preferido. A diferença de idade entre eles era de apenas um ano.

- Eu vou voltar nos finais de semana... sempre que puder - prometera o rapaz, quando se despediram na estação ferroviária de Tamana no início do verão.

Na prática, Hiroshi não voltara ainda, pois estava sempre fazendo horas extras na fábrica, inclusive nos finais de semana. Mas avisara que não deixaria de vir para casa no O-bon, o festival em memória dos antepassados.

- ... e aí poderemos subir até o castelo Hitake para ver o mar, como fazíamos quando éramos crianças - dissera ao ligar para casa e falar com a irmã.

Ela planejara a vinda do irmão, e as atividades que fariam juntos; inclusive, irem comer guiozas no Gyoza no Ohsho, como costumavam fazer nos fins de semana.

- Talvez agora eu prefira ir no Osaka Ohsho - gracejara ele, referindo-se à outra rede de restaurantes de fast-food da cidade.

- Nós sempre fomos no Gyoza no Ohsho. Não vai ser a mesma coisa se você escolher outro lugar - insistira ela.

- Você quer mesmo manter as tradições, não é? - Indagara ele, ainda em tom de gracejo.

- Somos uma família tradicional - replicara.

- Certamente - foi a resposta apaziguadora dele.

* * *

Os pais decerto já haviam sido avisados, mas ela foi apanhada de surpresa. Quando Hiroshi chegou em casa na véspera do O-bon, não estava sozinho.

- Misao, essa é minha irmã, Atsuko.

Misao devia ter mais ou menos a mesma idade que Hiroshi. Era simpático.

- Ela é tão bonita quanto você falou - comentou o rapaz, com uma piscadela para Hiroshi.

- Misao é meu colega da fábrica - apresentou-o Hiroshi, parecendo mais embaraçado com o comentário do que a própria irmã.

Foi uma noite agradável; Misao era divertido, e toda a família gostou dele. Ela lamentou apenas não poder ter Hiroshi apenas para si, pois ele tinha que dar atenção a todos após todo o tempo que passara distante.

- Você perdeu a exclusividade, irmã - dissera Hiroshi em dado momento, e isso nada mais era do que a constatação de um fato, embora ele estivesse gracejando.

E no dia seguinte, ela teve que dividir as atenções do irmão com Misao, inclusive na subida ao castelo Hitake.

- Hiroshi não mentiu, a vista é mesmo deslumbrante! - Disse Misao quando chegaram às ruínas do castelo medieval.

- Ali, o mar de Ariake - apontou Hiroshi, para uma faixa azul junto ao horizonte.

- Esse é um dos nossos lugares favoritos em toda a cidade - ela declarou, encarando o irmão.

- Pois agora também passou a ser um dos meus - afirmou convicto Misao.

* * *

Estavam os três sentados à uma mesa no Gyoza no Ohsho de Tamana, em torno de uma travessa de, naturalmente, guiozas, que todos comiam após um rápido mergulho com os hashi numa tigela de shoyu.

- É outra das nossas tradições - ela explicou para Misao. - Em Osaka certamente vocês têm muito mais opções...

- Lá nós costumamos ir ao Osaka Ohsho - comentou Misao. - Mas Hiroshi sempre falava de quando vocês vinham ao Gyoza no Ohsho e conversavam sobre o futuro e o que fariam quando saíssem de Tamana...

- Ao menos, um de nós saiu, não é? - Ela ponderou.

Misao olhou para Hiroshi e só então ela percebeu algo que já deveria estar claro desde que ambos haviam chegado à casa da família, na noite anterior: eles não eram somente amigos.

- Foi muita sorte Hiroshi ter saído daqui, ou nós nunca teríamos nos conhecido - declarou Misao, enquanto Hiroshi sorria encabulado.

Foi então que ela compreendeu que o irmão jamais voltaria a morar numa cidade pequena como Tamana: Osaka representava a liberdade para Hiroshi. Ela pegou um guioza da travessa, mergulhou-o no molho, e antes de levá-lo a boca, comentou:

- Vocês deveriam fazer um esforço para voltar aqui no inverno.

- O que há aqui no inverno? - Indagou Misao curioso.

- É a época do mikan - lembrou Hiroshi, enquanto a irmã mastigava.

- Isso também - disse ela, encarando Misao com firmeza. - Mas também quero ter a certeza de que está cuidando bem do meu irmão.

E sobre a mão de Misao, que estava sobre a mesa, Atsuko colocou a dela. E sobre a dela, Hiroshi pôs a dele. Ficaram os três em silêncio por um momento, até que Misao dissesse:

- Eu vou cuidar bem dele.

- [21-09-2020]