Smartphone

Olharam-se.

...

Antes, porém, viam suas telas. Sós com seus mundos de informação supérflua, efêmera e abundante. O brilho coloria seus rostos. Luz e sombra criava o contraste sobre um semi-sorriso abobalhado. Lábios com uma falta de conteúdo, com a falta de uma história, um não-senso de propósito. Não tinham consciência do entorno, senão uma vaga imaginação do suposto vazio em volta. Seguiam como navegantes que encontraram uma ilha de delícias tão convidativa quanto aprisionadora. Estavam presos. Capturados num destino tão imediato e imutável porque lógico: não havia nada mais a fazer num elevador que subiria.

As portas se fecharam sem pressa. O insignificante então atuou. Sem o sinal o desencanto se quebrou. Não havia nada mais para ver que não fosse conhecido.

Com a janela das infinitas possiblidades vulgarizada em peso de papel, o foco deslocou-se.

...

Foi o primeiro despertar.

O chão ignorado compôs o quadro junto da mão que segurava o celular. Era um carpete vinho que foi acinzentado pelo desgaste do envelhecimento. De súbito o esplendor de um mundo a se mostrar pela timeline infinita foi interrompido pela concretude do fugaz.

A forma retangular do piso, as cores em degradê, os amarrotados e os encontros entre o aço escovado das paredes; nada satisfazia à curiosidade acostumada ao bombardeio sensacionalista da internet. Entediavam-se. E porque toda ação tem uma reação igual e contrária, buscavam em aclamação por um pouco de drama.

...

A busca trouxe o segundo despertar.

Esquadrinhando o chão a vista percebeu pés que não eram seus. Não estavam sozinhos, afinal. A consciência um do outro até então ignorada era incômoda. Quem poderia existir tão próximo de si sem pedir consentimento transformando a cena num mundo exótico fora do controle. Encontravam-se em uma total antítese ao que os aparelhos portáteis já guardados até a pouco tempo ofereciam.

O campo de visão deslocou-se num misto de irritação da invasão e curiosidade sobre o não-maçante.

...

O deslocamento trouxe o terceiro despertar.

O olhar viajava. Começou pelos pés que em sapatos eram bem diferentes: os dele bem pretos tampando tudo, os dela em um bege ousado que mostrava o dorso dos pés.

Estavam indignados. Não só notavam estranhos invasores de um momento que deveria ser privado e solitário. Nem eram só diferentes.

Eram antagônicos.

Eram opostos desde o primeiro detalhe.

E a diferença aumentava conforme subiam. Ele vestia calças jeans sem absolutamente nada agradável de se mencionar e ela tinha as pernas inicialmente nuas só interrompidas por uma saia que começava nos joelhos de cor clara sem importância. Até as camisas sociais que compartilhavam eram neles objetos de dissemelhança. Enquanto nele fazia linhas retas, nela contornava displicentemente suas curvas tão perceptíveis quanto monótonas. Os braços dele bem cobertos pelo tecido e os seios dela sem nenhum decote não chamavam atenção - se é que haveria algo ali que pudesse fazê-lo. Viram então o pescoço, os lábios sem cor e as bochechas.

...

O quarto despertar foi um choque arrebatador.

Chegaram aos olhos um do outro ao mesmo tempo.

Foi então que se olharam.

E sentiram-se.

E se viram.

Pela primeira vez.

Uma consciência percebida diretamente por outra tão consciente de si quanto do fato de também ser observada.

A energia passou por todo o corpo. De repente encheram-se de vida.

Sorriram de modo gostoso, confiante e verdadeiro.

E o tempo parou e depois retrocedeu.

Voltaram aos lábios convidativos e cheios de cor.

Beijaram-se. Não só se beijaram como se jogaram um contra o outro em desejo e delícia. Cada contraposto encaixando e complementando. Cada um querendo o outro.

De olhos fechados não mais se viam, mas se sentiam e se compreendiam. Seus lábios brincavam e se divertiam juntos como se tivessem sido feitos para serem assim: inocentes, despreocupados e selvagens.

Aquele momento era único. Aquele momento era só deles.

...

Passaram-se horas. Nunca mais iriam se desenlaçar.

...

O tempo, que havia parado, retomou lentamente sua cadência. Avançou sem solavancos do banal à glória.

Acabaram em algum momento desencantando-se no sexto andar.

Separaram-se não totalmente bem a tempo de olhar mais uma vez - pela segunda vez - profundamente um nos olhos do outro. Sorriram.

Desceram juntos no mesmo sexto andar daquele prédio cinza daquela cidade cinza.

Trabalhavam ali com os processos administrativos cautelares.

Nunca haviam se visto antes daquele acontecimento.

Nunca se veriam novamente.

Eram vizinhos de baia.

Renato Nicácio
Enviado por Renato Nicácio em 14/09/2020
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