Anhana - 1570
Caminhava sozinha pela natureza com passos leves e vista perspicaz como uma jaguatirica. Gostava assim. Se misturava e se ambientava.
O marrom claro, bronzeado e brilhante de sua pele, característica única de seu povo em tonalidade jamais repetida no planeta, compunha com o verde da mata que lhe fazia redor como a moldura compõe a beleza da arte.
A pintura da sua pele era absolutamente preta e ocupava quase exclusivamente o tronco. Vestia-lhe sem tecido de forma quase interiça com poucos espaços de intervalo no qual os desenhos sempre lembravam formas geométricas simples e determinadas. Sua forma iniciada no meio das coxas seguia até a meia taça dos seios lembrando um espartilho que ao invés de apertá-la expandia a sua presença com uma imagem conquistadora.
Caminhava sozinha porque encontrava companhia mais agradável. Não que não gostasse de algumas pessoas. Gostava. Mas gostava um bom tanto de si para querer sua própria presença exclusiva pelo menos algumas horas por dia. Além do mais achava-se em idade de se casar e ela ainda não tinha encontrado ninguém dentro ou fora da tribo pelo qual tivesse desejo verdadeiro.
Como era coletora, boa parte de sua arte era encontrar bons recursos para trazer à tribo. A divisão de tarefas era simples. Se você era um garoto poderia ser construtor, o que significava derrubar árvores da mata atlântica e fazer delas casas e barcos, ou ser um caçador que significava caçar animais e, em tempos de guerra, tribos inimigas. Se você é uma garota poderia administrar o dia-a-dia da aldeia com tudo o que isso envolve ou coletar recursos. Ela definitivamente era uma coletora: perspicaz, inteligente e ágil.
Tec. Pisava em um galho estridente. Incomum. Tec. Pisava em outro e pressentia o perigo. Afastou as pernas arrastando-as pelo chão coberto por folhagens e com vários gravetos ocultados. Não se preocupou em evitar o som. Já sabiam que ela estava ali. Flexionou os joelhos. Abriu os braços e girou o tronco em equilíbrio em vigília panorâmica.
O primeiro maracajá se aproximou de mansinho saindo de trás de um arbusto e os outros felinos a cercaram com calma ameaçadora de uma posição elevada galhos das árvores em cerco. Era uma emboscada. Estes gatos costumam predar pequenos mamíferos, mas não deixariam passar uma presa grande sozinha e emboscada.
O primeiro saltou sobre ela e com um giro se esvaiu. E eles começaram a cair sobre ela como chuva de granizo em campo aberto. Ela se desviava e empurrava os bichos aos socos, giros e pontapés. Unhas cortaram seu braço direito. Mas alguns só a atacavam diretamente. A maioria agia estrategicamente e se dividia em dois grupos. Um ficava no caminho correndo e rodeando. Outro topava com ela com a força de seu salto e de seu peso. O objetivo ali, ela sabia muito bem, era derrubá-la. Uma vez no chão e era o seu fim.
Mas onde os caçadores agem com força, coletores agem com perícia. Um só descuido da retaguarda da cambada e três saltos muito determinados a transportaram do centro ao perímetro e de lá para a distância.
Corria a aclive suave desviando dos maracajás que eram muito mais velozes que ela e a acompanhavam de cima pelo caminho formado dentre as árvores.
Foi então que abruptamente ele apareceu: o despenhadeiro. Mais de 20 metros até o rio. Saltou e se fez flecha. Dezena de setas a acompanhando contra o sol sem nuvens. Na água não tinha que temer os felinos. Sair da correnteza já era um desafio um tanto maior. Uma coisa era enfrentar criaturas inteligentes como ela. Outra totalmente diferente era bater a dinâmica bruta da natureza na sua manifestação de força ancestral.
Não autorizada a alcançar as margens, tomou um tronco para não se afogar. Exausta adormeceu sobre ele.
Seu destino era o mar.