By the book

E foi assim que aconteceu. A professora substituta simplesmente largou aquele livro na minha mesa e eu tomei o maior susto. Foi bem no final da aula. Aí o sinal tocou e foi aquela bagunça. Já tinha me esquecido de como ela chegou cheia de pose na aula de literatura. Toda cheia de si com seus seios inchados, seu sorriso vermelho-cínico e sua roupa ridícula. O olhar maquiado dela, de quem vai para uma festa, – que sem noção, eram 2 horas da tarde – só não era mais irritante do que os que ela atraía para si. Os meninos pareciam olhar como cachorros vendo frango frito. E até umas garotas lá da sala acharam ela linda. Que fúteis...

Quando ela largou o livro na minha mesa eu estava pensando em coisas bem mais importantes. Há grandes injustiças nesse mundo. Minha amiga Olívia, por exemplo, fazia de tudo pelo Gabriel. Mas ele pisava nela e se divertia às suas custas. Por que é sempre assim? Por que alguém não se apaixona e recebe amor de volta? Tanto tempo perdido. Era só as pessoas se curtirem, se gostarem e... beijarem.

Guardei aquela porcaria de livro sem nem olhar para a capa junto ao restante do meu material. Segui a minha vida sem nada de importante para contar. Passou a terça, a quarta, a quinta e assim foi. Passou outra semana inteira. Foi só na outra quarta que me lembrei.

– Laura, por que será que ela só deu aquela aula e nunca mais voltou?

– Anh?

– Ela era tão linda, não é?

– Quem, Amanda?

– A professora substituta.

Ai ai... nem prestei mais atenção. Me lembrei daquela porcaria do livro que ainda estava na minha mochila. Dispensei a Amanda com uma desculpa qualquer e fui à biblioteca. Eu não iria ler aquilo. Se a professora não voltou para pegar de volta iria devolver na biblioteca. Não queria nada dela comigo.

– Não é do acervo.

– Mas é da professora substituta.

– E qual é o nome dela?

– Eu não lembro.

– Então vai ter que encontrá-la. Sinto muito.

Sentei a uma das mesas e joguei aquela porcaria sobre o móvel e fiquei ali de bobeira pensando na vida.

– Mil beijos, Laura?

– Quê, Bruno?

Ele estava achando a maior graça de tudo, de alguma coisa.

– Esse livro que você está lendo. Está escrito na capa. É o título.

Fiquei com o rosto vermelho. Dei um sorriso amarelo. Mostrei desinteresse. E assim que ele saiu abri o livro.

Fiquei decepcionada. Só tinha duas páginas escritas. A maior parte parecia um manual de instruções. Folheei e confirmei. Eram várias páginas em branco e duas páginas escritas. Li só o final da última página. “Só siga as regras, pense num rosto e escreva um nome”. Não sei o motivo, mas achei essas instruções engraçadas. Escrevi o nome da Amanda e pensei no rosto do Bruno. Acho que era só por ter falado com eles por último. Foi aí que eu escutei o “oooow”.

Bruno era bem mais alto que ela. Amanda estava na ponta dos pés. Eles se davam um beijo suave e lento. Um beijo na boca. De língua.

Não durou muito tempo. Vieram separá-los. Como se estivessem cometendo um crime ou matando alguém ou sei lá. Eles se separaram e dava para ver o rosto dela queimando. Eu sei que foi o seu primeiro beijo. Será que eu fiz isso? E se ela tiver odiado? Será que a culpa foi minha? Eles se despediram meio envergonhados meio achando graça de tudo. Ele saiu da biblioteca e ela veio até a mim.

– Nossa.

Disse abanando o rosto com as mãos.

– Que foi isso?

– Não sei, Laura. Eu estava te procurando. Achei você meio estranha quando saiu e vim te procurar. E não sei o que aconteceu. Vi o Bruno e ele veio me beijar.

– E o que você fez?

– Bom. Eu fui beijar ele, né?

Rimos nervosas.

– E aí?

– Não sei. Quero outro para saber.

Rimos mais um pouco, agora mais relaxadas, cúmplices.

Voltei para a aula e a noite foi tanto dever que não lembrei nem de comer, quase me esqueci de dormir.

No outro dia era uma mágica. Amanda e Bruno estavam juntos e até andavam de mãos dadas.

Foi então que eu vi a Olívia chorando num canto.

– O que foi, amiga?

– Nada não, só eu que sou uma idiota.

Eu só fiquei lá disposta a ouvir mais um pouco.

– O Gabriel não quer nada comigo. Ele já disse isso mil vezes. Mas eu não o esqueço. Eu me faço de boba. Todas as vezes. Eu sou uma idiota.

– Não é não. Mas eu acho que você não deveria desistir.

– Como é?

– É sério. Na verdade eu acho que você deveria ir nele agora.

– Mas ele acabou de fazer graça de mim na frente dos amigos dele.

– Eu tenho um sexto sentido para essas coisas.

Ela se levantou incrédula, enxugou as lágrimas e foi até o Gabriel e seu grupo de amigos. Um deles viu e comentou algo baixinho entre o grupo, o segundo amigo fez uma careta e o terceiro deu uma risadinha maldosa. Só não vi a reação de Gabriel que estava de costas. Era um desastre certo.

Antes de ela chegar até ele eu peguei o livro e escrevi o mais rápido que pude o nome da Olívia enquanto pensava no rosto do Gabriel.

Ele se virou e a encarou, tinha o olhar diferente. Parecia que via algo lindo pela primeira vez. Ela chegou forte e disse bem alto.

– Gabriel eu te amo e não importa o que acontecer ou você fizer eu nunca vou desistir de nós.

Ele não respondeu. Puxou ela para si em um abraço. E deu um beijo rápido nos seus lábios. Ela nem fechou os olhos. Estava perplexa. E do primeiro beijo se seguiram outro e outro. E a cada um os amigos dele pareciam mais embasbacados. Não vi quando pararam.

Nos dias seguintes formei mais dois casais. Não fazia nada às pressas. Não era só mágica. Eu era uma artista.

Primeiro juntei Felipe, o menino do xadrez, com a sua musa do time, karine. Felipe tentava. Mas Karine nunca achava que ele estava a sua altura. Seu amor nunca ocorreria de forma espontânea. Mas agora, comigo no controle, o destino seria sempre melhor que o esperado. Escrevi o nome dele e pensei no rosto dela. E eles formavam um casal muito legal.

Depois juntei a Márcia e o Adriano. Todo mundo sabia que eles se amavam. Trocavam olhares. Mas ninguém tinha coragem de dar o primeiro passo. Sem chances e oportunidades perdidas. Eu fazia tudo com muito gosto.

De uma hora para outra aqueles dias chatos e cheios de erros e enganos se tornavam os melhores dias da vida de todo mundo.

E agora era a minha vez. Passei uma semana só observando. Eu não me apaixonaria por qualquer um. Escolhi, escolhi, escolhi. E achei por engano num esbarrão.

– Desculpa, Laura.

Ele tinha um cheiro gostoso de chocolate com menta. Acho que fiquei um pouco vermelha.

– Não tem problema.

Ele sorriu para mim.

– Eu preciso te recompensar. Gosta de chocolate?

– Adoro. Mas não precisa de nada, sério.

– Não esquenta. A minha mãe está voltando de viagem e sempre traz umas coisas. Só que você vai ter que esperar duas semanas que é quando ela volta.

Era isso. Era ele. Estava decidido. Não ache que foi por qualquer coisa que aconteceu. Eu sei que pareceu tudo muito ao acaso e sem significado. Mas eu senti. Foi uma coisa de pele.

Eu abri o caderno, mas não tive coragem. Não sei. Não me senti bem. Com os outros era diferente. Existia sempre uma vontade, pelo menos de uma das partes, e eu só facilitava as coisas. Mas comigo, sendo o poder meu, era como se eu o forçasse. Não parecia certo. Não parecia direito.

Eu não conseguia abandonar a ideia, mas também não podia seguir em frente. E assim passou um dia e depois outro. Então eu desisti. Aquilo era errado de alguma maneira que eu não sabia justificar num raciocínio muito claro. Eu só sabia e sentia que era.

Foi só então que eu me toquei no que estava acontecendo ao meu redor. A Amanda tinha começado a usar óculos. Era um modelo de haste plástica preto que era bonito e contornava bem o seu rosto. Porém a mudança não foi a única. Nesse mesmo período ele começou a evitá-la e a mudança era visível.

Um dia a Amanda veio conversar comigo.

– Ele está me evitando. Mas estava tudo tão bom. O que será que está havendo? Será que eu fiz alguma coisa?

Noutro veio o Bruno.

– Olha eu sei que você é amiga dela. E eu gostei de estar com ela. De verdade. Mas eu não sinto mais nada. Não sei o que dizer. Eu a evito porque não quero magoá-la. Mas não posso mais continuar assim. Tudo pode ficar ainda pior. Como eu faço?

E isso não foi tudo.

Felipe passou a ver todos os jogos de Karine. Um dia a bola acertou o seu rosto com força. O inchado foi terrível. E junto com o machucado cresceu o desprezo dela por ele. As brigas eram cada vez mais públicas e constantes.

A gota d’água foi com a Olívia. Ela tinha cortado o cabelo. E junto com eles foi cortado seu encanto. Gabriel terminou com ela quase que quando a viu. Ela foi aos prantos.

Eu queria ajudá-la. Mas não seria a consolando. Eu precisaria parar aquilo enquanto era tempo. Corri para o banheiro, me tranquei em uma das cabines e tentei apagar os nomes escritos ali de todas as formas. Mas eles não apagavam. Nada acontecia. Nada funcionava.

– Não vai dar certo.

Ouvi a voz da professora substituta junto com o barulho de água. Destravei a por e saí para vê-la lavando as mãos.

– Quem é você de verdade?

– Tive muitos nomes. Suc, como me apresentei à sua classe, é um apelido carinhoso de Succubus, mas já fui chamada de muitos nomes, Isis, Afrodite, tantos que nem me lembro de todos.

– Eu vou arrancar os nomes dos meus amigos desse caderno nem que eu precise rasgá-lo e queimar todas as páginas.

– Não é assim que funciona. Você deveria ter lido as regras. Está tudo no livro. Uma vez escrito, só eu posso apagar um nome. E não é do meu interesse fazer isso. Aqueles cujos nomes estão aí registrados jamais deixarão de amar aqueles cujo rosto foi apenas imaginado. Entretanto, estes sentem apenas um amor passageiro tão efêmero como a mínima mudança no rosto de sua contraparte. Mas não se preocupe. Mesmo sem os incidentes, mesmo sem nada, um dia eles iriam envelhecer e as mudanças naturais da idade iriam determinar o destino que você selou.

– Mas isso é tão cruel. Por que você faz isso?

– Porque eu me alimento da desilusão e do tormento que essas almas sempre sofrerão. Uma vida traçada por você de um amor inesquecível apenas brevemente correspondido. Um jamais vai esquecer enquanto será rapidamente esquecido. Nada que você fizer agora pode acabar com isso.

E eu comecei a chorar cheia de culpa e remorso.

– Isso também não vai dar certo.

– Só tem uma maneira de você expiar a sua culpa. Anote seu nome neste caderno. Pense em alguém. Viva uma um instante de paixão. E nada mais vai te importar. Você não sentirá culpa pelo que fez aos seus amigos. Estará na mesma situação que eles. Até seu último momento de vida tudo aquilo que você fizer vai ser feito buscando o amor que você nunca terá de volta.

E crescendo em presença, como se dominasse todo o ambiente pronta para dar o seu bote na minha alma, concluiu.

– Anote o seu nome no caderno e imagine o seu único e sumário amor.

Eu levantei o caderno e comecei a anotar. Não havia alternativa.

Escrevi. E estava feito. Era a única coisa que poderia ser feita. Era a única salvação. Enquanto escrevia Succubus no caderno só pude pensar em todos nós, em cada um de nós, nos meus amigos, em mim, em você e em como nunca mais deveríamos cair nessa armadilha.

E ela grunhiu, e queimou, mas não resistiu. Apagou nome a nome todos que eu havia escrito. E sumiu, ali mesmo da minha frente.

Não que os sinais de tudo aquilo que eu havia feito desapareceram. Estavam todos lá. Mas estavam todos também livres. E tiveram todos muitos amores. Tantos que eu não sei dizer. Com o tempo e com as experiências se esqueceram de tudo.

Quanto a mim? Eu vi o Vitor novamente. Não havia dito o nome do garoto do esbarrão antes?

– Aqui está o que eu te prometi.

E me entregou um chocolate num embrulho bonito.

– Obrigada. Era mais do que precisava.

– Eu sei. – Disse com um sorriso maroto e um olhar de atrevido – Mas agora é você que está me devendo.

– E o que você quer em troca agora? – Respondi na mesma moeda.

O gosto foi delicioso, mas o chocolate eu só provei muitas horas depois quando cheguei em casa.

Não foi o fim da minha vida amorosa, mas foi um ótimo começo.

Renato Nicácio
Enviado por Renato Nicácio em 13/09/2020
Código do texto: T7062456
Classificação de conteúdo: seguro