236 A Loba
Chamavam-lhe loba e ela ria. Riso estridente, exagerado. Foi criada sem cuidados e desde criança levava e trazia as cabras, gastava o tempo a afinar a pontaria e trazia sempre os bolsos cheios de pedras misturadas à broa e ao queijo, ambos duros. No tempo das amoras comia das maduras e das outras, arranhava-se nas silvas, corria como lebre ao menor ruído de alerta. Aprendeu mal as letras. Lia e quando entendia o escrito, largava tudo e pulava, com alegria selvagem, jogando as sandálias ao ar como se, bruscamente, deixasse de precisar delas. Depois serenava e poderia ficar horas imóvel a ver os longes morrer com o dia. Olhava com tal força o pormenor das coisas e o rosto dos outros que muitos na aldeia lhe tinham medo. Se pudessem evitavam-na, se a encontrassem, fingiam agrado. De verão despia-se, banhava-se no ribeiro, lavava a roupa batendo-a nas pedras onde lhe parecia ser a água mais limpa e ficava quase nua até que tudo secasse ao sol. Um dia, ele viu-a. Ficou horas a espreitar-lhe os gritos, os gestos, as correrias e esperou muito para se afastar sem ser percebido. Quando se encararam pela primeira vez, ele devolveu o olhar agudo, retirou um cacho de uvas da cesta que levava, ergueu-o à altura da boca e esmagou-o com tosca brutalidade. Correu o sumo das uvas pelos lábios, pelo queixo, pescoço sumindo na penugem do peito. A seguir, olhando-a ainda, limpou as mãos às calças e, sem uma palavra, seguiu o seu caminho. Abalada, a Loba, percebeu que queria aquele homem.