231 Recomeço
Enquanto se despia olhou pela janela a claridade do pátio. A luz era fraca mas suficiente para ver as costas da cadeira, o começo da cama onde ele, nu, já dormia com um sono forte. Tempos houve em que retirava a maquilhagem com cuidado extremo, limpando a pele, besuntando-se de creme, enrolando os cabelos, alisando-se frente ao espelho. Depois deixaram de sair e já não recebiam. Desleixou-se. Agora, depois de lavar à mão a louça e de arear os tachos, varria a cozinha, passava-a a pano, fechava a porta e vinha, cansada, deitar-se. Muitas vezes nem o rosto lavava para não se ver. Doíam-lhe as rugas, os poros dilatados, os seios flácidos, a falta de capacidade para gerir melhor o tempo. Invariavelmente ele já dormia ocupando a cama toda. Encolhia-se onde fosse possível e, evitando tocá-lo, ficava a pensar no que a vida havia feitos deles, nas desilusões acumuladas, na perda de património e no que foi chegar até ali com pouco dinheiro, sem filhos, sem grandes razões para recomeçar. Desta vez não seria diferente mas, depois de um suspiro fundo, Daniel acordou. Ficaram silenciosos até que a voz grossa raspou a sua orelha e disse: ainda gosto muito de ti. Poderíamos fazer tudo outra vez. Recomeçaríamos, com o que ainda temos, já amanhã. Chega-te para cá. É bom dormir contigo. E ela, renovada por dentro, abraçou-o.