Eurídice: o último canto de Orfeu
Caminhamos tanto, e desde sempre pelas mesmas ruas e becos. Parecia que cada emaranhado dos negros fios de alta tensão nos era um velho conhecido. Dois adolescentes de dezessete anos e de afetos contundentes e recém-descobertos.
Se você pudesse lembrar das aulas de geografia que matamos e de outras tantas a que assistimos, entre uma leitura e uma curta viagem pelos fones de ouvidos... Das rodas em volta do violão na quadra do ciep 301 e das músicas que devoravam quinze minutos da aula de literatura, e da cara da professora, que dizia sem emitir nenhuma palavra “não vou chamar mais!”, até que entrávamos sorridentes e famintos. Lembra? Até a merenda ficava em segundo plano.
Nessa de pertencermos à mesma turma e dividirmos as mesmas melodias improvisadas, você arranhando no canto e eu exibindo o violão novo que havia ganhado de presente, surgiu entre nós um novo convidado, aquele amor ainda aprendiz, parido da intimidade e de tantas trocas e partilhas.
Lembro de você tão linda e delicada, exalando expressividade na fala, nos gestos precisos, nos sorrisos inteligentes e confiantes. O perfume do seu cabelo cacheado, desarrumado, a imagem da sua calça jeans desbotada e de você reclamando todas as manhãs que a direção não permitia a entrada das meninas usando legging não me sairão nunca da memória.
Da mesma forma, recordo de quando você almoçou lá em casa pela primeira vez. Era uma sexta-feira e aquele bullyng familiar feito pela minha mãe e irmão nos fizeram corar e sorrir. Essa primeira fase, a dos “apenas bons amigos” , passou logo. Em apenas um mês eu já te chamava de meu amor com direito a mãos dadas, carteiras lado a lado em sala de aula e crises de ciúmes. Eu brigava pelo seu short curto que atraía os olhares dos marmanjos, até os mais velhos. Você, brigava pela demora no futebol e pela presença constante das marias-violão, sempre por perto nos intervalos entre as aulas. E no final, achávamos graça.
Começamos então a pensar na proximidade de nossos dezoito anos e na possibilidade de casamento. Eu te amava tanto que não conseguia me imaginar longe de você nem no presente e nem no futuro. “Não enjoam desse grude?” perguntavam alguns enquanto eu, se pudesse, te daria cada estrela cintilante, até aquelas não visíveis a olho nu, cada segundo do meu dia e cada visita sua ao salão de beleza. Era tanto e para nós era inadiável. Marcamos nosso noivado para o ano seguinte.
Seus amigos não me incomodavam, exceto Marcelo, que teimava em se fazer presente e intrometer-se nas conversas, buscando inclusive ocasião para estar nos mesmos lugares em que você estava. Na escola, na praça e até quando você saía para ver qualquer amiga. Era a definição da inconveniência. Mandava mensagens, enviava músicas e competia comigo sem fazer a mínima questão de esconder. Minha segurança era o seu amor de menina. Seu olhar solicito, sua companhia constante e seu beijo que era inteiro quando encontrava o meu.
Em uma comunidade fazemos tudo juntos e no Rio das Pedras o conceito não era outro. As famílias e vizinhos se integram e partilham pequenas dores e conquistas singelas. Assim, nossos colegas de turma, uma infinidade de primos e conhecidos foram convidados para nosso almoço de noivado quando a data chegou.
Era o nosso dia. Nós sorríamos, bebíamos, e logo o funk inicial foi substituído pela trilha sonora do meu violão. Bastavam os primeiros acordes moleques e faceiros para que todos parassem, sorrissem e vissem a vida preencher os espaços vazios, como meus dedos preenchiam os espaços entre o mi e sol, testemunha entre as nuvens.
Marcelo te observava com especial insistência. Após três cervejas e minha distração, aproveitou que você se retirou para buscar o que começava a faltar na mesa simples e farta, coberta por uma bela toalha, posta na estreita calçada ao lado da qual nos juntávamos, ocupando o espaço corredor a dentro.
Sinto estremecer quando lembro que ele agressivamente agarrou o seu braço, e em seguida os seus cabelos quando você tentou se desvencilhar. Por serem longos, ficavam presos entre os dedos do agressor enquanto você tentava se soltar. A ideia de estarmos noivos o transtornou tanto que ele chutou a porta do quarto até que esta se abrisse, tampando a sua boca com uma das mãos, enquanto com outra desferiu um forte soco em seu rosto, ameaçando bater ainda mais se você não fosse dele.
Eu percebi a sua ausência, e como se meu coração me avisasse, fui buscá-la no interior do casebre e pude ver a cena dantesca e as suas lágrimas suplicando que ele te deixasse em paz. Cheguei a tempo. E ainda assim, a despeito de ouvir que alguém se aproximava, ele tentou levar a agressão até o final, rasgando o seu vestido, faltando muito pouco para consumar a agressão do estupro.
Foi a minha primeira briga na vida. Eu não estava alcoolizado, queria que tudo fosse perfeito no nosso dia, contudo diante de esse ato animalesco, fui tomado pela raiva e pelo sentimento da obrigação de impedir qualquer coisa que te fizesse mal. Dei em Marcelo um chute que o derrubou, dando tempo o suficiente para que amigos o retirassem da festa antes que a situação piorasse.
Quando cheguei, gritei para que você fugisse enquanto eu continha o agressor, e assim você fez, mas assustada, feriu-se gravemente na cabeça ao cair da escada de casa. Foi logo socorrida por nós, contudo, eu não imaginava que tudo mudaria tanto e que a partir daí nos vestiríamos somente de dor e distância.
Você ficou hospitalizada por três dias, e eu estava sempre por perto.Quando voltou para a casa onde morava com sua mãe, ela decidiu que deveria mandá-la para Santa Catarina, para morar em definitivo com o seu pai, para evitar assim, outra tentativa de estupro ou vingança por parte do Marcelo, que ainda era menor e não poderia responder ao menos nos próximos meses pelo que fez. Eu poderia me defender, mas você certamente não teria paz. A situação do nosso noivado deixou isso claro.
Chorei por dias a sua ausência e a ideia de que você não voltaria mais. Sua mãe estava decidida e queria protegê-la. Éramos muito jovens e segundo ela, se realmente ficássemos juntos, seria no futuro. Ou não seria.
A partir de então, a tristeza me impedia de tocar, de ir às aulas e cumprir as obrigações diárias. Eu praticamente não saía de casa. Só pensava em uma forma de reaver a luz que me escapava e estar com você novamente. Dois meses depois do ocorrido, Marcelo já estava suspenso da escola, perdendo também o emprego de meio expediente que tinha em um pequeno bar. Mal visto e envolvido em brigas foi também enviado pela madrasta para morar com tios no subúrbio.
Agarrei-me então à motivação que alguns amigos e a música me traziam. Fui tomado então por um desejo irresistível de voltar a viver. Eu, que ganhava alguns poucos trocados e lanches tocando nos botequins e nas festas da favela, afinei meu violão e me dirigi à Central do Brasil para que o dinheiro ganho com a música pudesse me levar até você.
Nas plataformas da Central, do Maracanã e de Nova Iguaçu, eu levei incansavelmente a minha música enquanto passavam as pernas, as palavras, conversas apressadas dos transeuntes que cantarolavam, olhavam ao longe, tiravam umas poucas fotos e deixavam, quase sempre e para a minha sorte, uma pequena contribuição.
Assim, em algumas semanas pude comprar minha passagem para encontrá-la. Você lembra da minha felicidade ao te encontrar novamente! Tê-la em meus braços me trouxe novo ânimo, e o meu sorriso, há muito apagado, voltou a brilhar. Meu choro naquele momento era novamente feliz e novo som passou a ser gerado dos meus dedos. Entretanto, seu pai, ainda com medo, não permitiu que você voltasse comigo. Tristes, choramos juntos e no mesmo tom. Lembra?
Depois de muito insistir, de dar garantia da sua segurança e de duas tardes regadas a energético e a muitos acordes das canções preferidas do seu pai, ele permitiu que você voltasse para a favela comigo, com a condição de que fosse diretamente para a casa de sua mãe. Como não éramos casados e nem autônomos em reação a nossos pais, somente lá, eu poderia estar com você. Ele cantou comigo e sorriu, mas disse que se sentiria culpado se algo ocorresse a você. Eu aceitei as condições e partimos.
Eu ainda não sabia que minha dor apenas começava. Voltamos no dia seguinte e, no aeroporto, um amigo foi nos buscar de carro para nos deixar na comunidade antes que o dia terminasse. Tudo corria bem, até que aquele playboy completamente bêbado, já em Jacarepaguá, há poucos minutos do Rio das Pedras, colidiu com veículo em que estávamos e te perdi. Eu conversava com o motorista e o distraí. Quando percebemos, a batida já havia ocorrido e nem pudemos chegar em casa. Só você seguiu e eu, novamente e em definitivo, me vi sem sua companhia doce e reconfortante.
Hospitalizado, estive em coma por sete dias. Um para cada nota que deixava de ser tocada e deixava também de encher a sua vida com um pouco de mim. Sua vida que, impotente, vi se esvair no asfalto cinza e nublado como final de tarde outonal.
Acordei. Queria saber do ocorrido e principalmente de você. Meu amigo, o motorista, já estava bem e em casa. Você foi novamente tirada de mim. Minha melodia roubada em definitivo e tão cedo, meu violão calado. A dor foi a mais profunda que já senti. A voz me faltou e a minha afinação se perdeu. Ao saber da sua ausência imposta e cortante, meu coração não resistiu e te buscou antes que eu pudesse desejar guiá-lo.
Foi ainda no hospital. Um infarto fulminante, eles disseram. Eu suspirei e descansei agradecido. Finalmente eu estarei onde você está. Minha maior aspiração e minha composição mais relevante era estar junto a você como tantas vezes juramos, e que nossas mãos frias pudessem finalmente se unir como o último acorde da última e definitiva canção. Já somos juntamente letra e melodia ecoando sem interrupção. Agora, não é necessário mais nenhum esforço. Nosso amor nos basta e entre o dó e o si, não há mais se. Já tenho você e assim, não preciso de mais nada.
"Depois de ter você
P'ra que querer saber que horas são?
Se é noite ou faz calor
Se estamos no verão
Se o sol virá ou não
Ou pra que é que serve uma canção como essa?
Depois de ter você, poetas para quê?
Os deuses, as dúvidas
P'ra que amendoeiras pelas ruas?
Para que servem as ruas?
Depois de ter você."