BREU

Seu coração era um cavalo doido, destes que estão constantemente desassossegados, tratando a estrebaria da vida na base do coice e do pontapé, louco que estava para ganhar o prado. Agora mesmo fora assim: um tropel, como cavalos que correm selvagens e livres, acelerou seu coração. As causas para tal ocorrência, eram os dois olhos verdes amendoados, que vira brilhar no rosto daquela mulher desconhecida, que emitia luz por todos seus poros e coloria o espaço da avenida por onde passava. Aquela visão o cegava completamente, reduzindo sua já triste figura a um amontoado de carnes e ossos sustentado por um jeans surrado e uma camisa branca, que aqui e ali, exibiam o cardápio da sua última refeição.

A visão não era como os faróis baixos dos carros que circundavam velozes e furiosos próximos ao seu corpo, não. Era como o brilho de mil sois que afloravam da pele leitosa dela, e que a névoa da garoa espargia para todos recantos daquela Paulicéia em desvario. Perdeu-a entre a fila do restaurante japonês e o vermelho do semáforo da esquina, que ele amaldiçoou mil vezes: jamais, em tempo algum, haveria de brilhar com a intensidade dela. O sinal poderia pará-la, com seu vermelho vivo. Ou então mandar que seguisse, com seu verde desbotado. Mas jamais brilharia como ela. Maldito!

Agora, no entanto, era a velha Augusta de baixo e ali, até os ímpetos se acomodavam. Passeava nas nuvens da sua conhecida e benfazeja rua, onde – como sempre -o ar tossia monóxido e ele tragava sativa, de procedência mui duvidosa. Sua alma orbitava então na leveza dos céus, onde um deus que ele não acreditava, ronronava sonado. Tempos atrás, dar-se-ia ao desplante de encostar no tronco daquele esquálido coqueiro - que insistia em habitar ali, na terra circundada somente pelo estéril húmus do asfalto - e fazer um poema parnasiano para ela. Arrancaria dois catetos e dois tercetos, com versos alexandrinos daquela visão passageira e eternizaria em palavras todos aqueles breves momentos do raríssimo aparecer do esplendor. Mas a correria da modernidade àquele tempo exigia versos livres. E seu ego misericordiava felicidades. Foi então que ele mentiu – mesmo sem saber - que já estava em outra.

Encontrou os amigos naquele bar muquifo da Roosevelt, onde a cerveja era gelada, o preço convincente, os homens atrapalhados e as mulheres difíceis. E ouviu histórias de homens e livros. Falou sobre os hieróglifos dos sumérios, as variações sexuais do tantra, o pergunte ao pó do John Fante, e sobre a palavra “rempaua” - ditas por uma ET a uma conterrânea sua, que havia dado água para a extraterrestre em 1978. Ouviu piada, tomou mojjitos, bebeu cerveja. E o sábado foi indo manso no remanso da noite afora. Mas mesmo os amigos, a conversa, o balançar dos atributos corpóreos das moças que por ali circulavam - usando a calçada da rua como passarela para a exibição da perecível e fugaz juventude – não atraiam agora seus olhos, enuviados de álcool e fumaça.

Perguntava-se onde foi parar aquela imagem constituída por raios da mais brilhante fineza, aquele ouro de beleza fumegante…. Entretanto, quando levantou a cabeça para solver mais uma vez outra dose da cerveja que amornava à sua frente, viu um cartaz pregado no teto do bar, chamando para a peça em cartaz no teatro barroco e louco existente ao lado. A foto do cartaz era dela: e ele viu novamente o único sol capaz de aquecer aquela sua moribunda noite. A luz que ele necessitava, buscava, precisava para escapar da teia escura das tristezas infinitas que o comprimia bem ali, do lado esquerdo do peito, onde agora ele repousava a mão. Porque ao baixar novamente a cabeça e colocar o copo sobre a mesa vermelha enferrujada, a luz irradiou o ambiente novamente, como os flashes de milhões de paparazzis diante de uma estrela maior, estas da constelação dos afamados. E a visão dela apareceu bela e singular como o alvorecer do último dia de sua vida, exigindo dele o ímpeto de correr e abraçá-la e dizer-lhe poesias, e falar de amor, e trocar caricias, e beijos, e afagos...

Conteve-se, dada a presença de muitos e ao ridículo da cena pueril. Não que ele não fosse capaz de tresloucados gestos como este. Não. Mas lhe ocorreu que gastar o ímpeto, ali naquela hora, seria de pequena valia, dado as inúmeras variáveis resultantes do gesto. Ainda mais assim, diante daquela plateia exigente e viciada em emoções fortes. E ele carregado de interjeições vazias e palavras tolas e baratas. Não. Conteve-se. Mas pode perceber, que se fez nele um silêncio dos sepulcros, como se tivesse atingido o estado de nirvana e só ouvisse a inspiração e expiração de seu deus interior, então montado no corpo de um jovem com 20 anos.

Ela sentou-se numa mesa ao lado, bem à sua frente. Sorriu tão receptiva, como se fossem amigos há anos, que ele quase vislumbrou um dar-se, um oferecimento, um carinho emanado por ela para sua esquálida persona... O vento assoprou uma música entre as frestas das madeixas que ela penteava com os dedos frágeis, e embriagou o ar com acordes dulcíssimos, como uma orquestra de flautas sopradas por anjos invisíveis e nus. Seus lábios róseos angelicais balbuciavam volúpias para o entourage que a acompanhava. E todos riam, inclusive ele, ou melhor: sua alma, que de tão leve flutuava e subia jubilosa em direção ao cosmo.

Não sabe o que, nem como, mas foi então que algo paralisou o tempo. Deu um click, um puft. Pode ter sido a canabis, os mojjitos, a cerveja, o dry nartini, a mistura toda, sabe-se lá. Mas tudo o que ele se lembra hoje em dia é de que, na outra noite, quando foi ao bar ao lado do teatro onde a mulher-luz se apresentara, deu de frente com um cartaz escrito “fechado por luto”. Um garçom amigo, lhe confidenciou pouco depois um trágico acontecimento: a atriz principal da peça fora atropelada e morta na noite anterior logo ali, na esquina. Testemunhas disseram depois que ela, na madrugada, após o espetáculo da noite, atravessou o sinal no amarelo e um carro fugindo da polícia a pegou em cheio, arremessando-a quase defronte ao restaurante japonês. O desgraçadamente maldito semáforo a levara dele, pela segunda e última vez.

Foi então que seu coração, como um cavalo abatido, estreitou-se em galope, definhou-se em relinchos, e hoje é essa coisa inerte que fede suja no meio-fio voraz da sua existência. Pulsando ás cegas, nos cruzamentos e esquinas, ele segue agora tateando alucinado os semáforos na esperança de encontrar novamente aquela luz, que se desfez em tristíssima e abominável noite. Essa, que agora, rega de ausência e tinge de breu sua imperecível alma...

Sérgio de Paula
Enviado por Sérgio de Paula em 20/07/2020
Código do texto: T7011159
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