223 -As Palavras Cruzadas
Quando se viram ficaram, imóveis, a olhar-se. Há, inesperados, encantamentos assim. Passaram a vir àquele “café” à mesma hora. Passaram a escolher mesas contíguas, passaram a fazer as palavras cruzadas do “Diário de Lisboa”. Alguns dias ficaram a pensar tudo o que o outro poderia ser ou sentir e nenhum dos dois teve ânimo para tomar a iniciativa de conversa. Eram inconformados de esquerda, da oposição ao regime e por isso liam aquele jornal. Eram, ambos, subordinados a horários que deveriam cumprir. Era, aquele lugar, frequentado por artistas e intelectuais, por gente da classe média. Havia, consequentemente, muitas coisas em comum. Apenas a idade os separava cerca de vinte anos bem medidos. Um começava a preparar-se para a vida, o outro, mergulhado nela, geria o seu tempo e, generosamente, o seu dinheiro. Garantia a cordialidade quase servil e os sorrisos de acolhimento. Uma ocasião, a propósito da troca da grelha das palavras cruzadas do dia, falaram-se. Depois conversaram sempre sobre tudo e nunca mais fizeram as palavras nem ali voltaram a ler o jornal. Amavam-se em silêncio, simplesmente. Um dia ela não veio e no dia seguinte, também não. Ninguém sabia a razão, ninguém tinha referências da senhora nem sabiam onde morava. Passaram, assim, quinze longos dias em que, religiosamente, vinha e a esperava. Quando decidiu que aquele seria o último dia naquele “café”, ela voltou. – Estive doente com a Gripe Asiática, disse.