FORA DA AGENDA
 
        Eu sei que você não entende, mas ele acende uma fogueira dentro do meu peito quando se aproxima. Eu o sinto antes que ele dobre a esquina. Eu o farejo de longe, ouço os seus passos como se cada pisada fosse uma batida nos meus tímpanos. Eu estou assim, uma paixão me tomou de vez. E tudo que eu preciso é vencer a minha timidez.
         Minha alma feminina que encontrar aquela alma máscula em algum paraíso. Meu corpo já não me suporta mais. Eu bato por dentro em cada ponto da minha pele tentando encontrar uma porta e sair. Mas tenho que ficar preso dentro de mim enquanto ele vaga livre pelas ruas dessa cidade maldita. Há dias que nem dá vontade de alimentar essa carcaça, calabouço do meu ser. A boca fica seca e eu espero a inanição, chego a desmaiar. Sonho com ele na ausência de sentidos. Sinto os lábios dele beijando os meus. Sinto sua boca sugando cada poro da minha extensão. Minha existência volta a pulsar e me dou conta de alguma possibilidade de conquistá-lo entre as estrelas que não vejo, mas sinto, imagino, elas estão em algum céu para brilhar meus passos na direção dele.
         O fogo agora está forte, queimando por dentro. Já sinto o odor de coração queimado. Febre nos meus olhos. É ele. Se eu chegar até a janela eu não o veria, mas sentiria o perfume do seu corpo. O aroma de nicotina dos cigarros baratos que me embriaga. Não sou capaz de ver os seus defeitos, por isso faço dele o homem perfeito para mim.
         Sua voz é uma sintonia que me conforta. A vida nunca foi fácil para mim, eu sempre tateei cada ambiente antes de cada passo. A exceção foi ele. Eu é que dei os passos para tatear partes dele que ficaram pequenas diante da minha gama. Sim, tivemos alguns momentos para ficar martelando essa minha sofrida memória. Momentos às escondidas.
         Nessa tarde eu queria estar toda maquiada para ele. Um batom vermelho em meus lábios para sujar os lábios carnudos dele. Um perfume desses que transforma o corpo de uma moça em um buquê contendo as fragrâncias de todas as flores. Mas não posso. É um amor que fica dentro de mim. E como sei que tudo parte da minha loucura eu não sei se está dentro dele também. Há uma escuridão que não me deixa ver a luz das certezas. Uma escuridão a mais que cega os meus olhos.
         Ele me disse que tem medo do mundo. Eu compreendo, eu também tenho. Afinal de contas o mundo tem a sua agenda e nos aprisiona dentro de bolhas cruéis. Ele um dia me falou das bolhas de sabão, eu me encantei. Pena que elas são efêmeras. Não são como bolhas culturais, que a gente não enxerga, mas que nos aprisionam no roteiro de uma peça na qual a gente não quer atuar.
         Eu tenho medo, por ele, de que ele assuma o nosso amor. Eu já não me importo comigo, pois eu sei que ele é a porta pela qual eu sairei desse corpo-casulo para me metamorfosear em uma bela borboleta. O que o faz ter medo não é minha cegueira. Mas o fato de sermos do mesmo sexo. Cegueira em todas as maneiras essa cidade tolera, mas aquilo que afeta o preconceito, não.
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 27/06/2020
Código do texto: T6989776
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