Que seja doce o dia quando eu abrir as janelas e lembrar de você

Para Caio Fernando Abreu

E aí a gente discutiu Le Mépris, olhamos a bunda de Bardot e pensamos que o filme seria outra coisa sem a nudez. Outra coisa menos do que ele é. É sexista, sim. Mas a gente que gosta de cinema entende que foi preciso ( por questões comerciais, precisamente). É triste.

Sabe de uma coisa? Tudo que é bonito é absurdo. Concordamos.

A gente concorda demais, ela disse. E ele disse que tantos livros emprestados, filmes vistos juntos, tantas opiniões sociopolíticas e existenciais, tantas músicas e não-sei-mais-o-quê em comum só poderiam terminar nisso: cama. Deu em nada. Acendemos um cigarro pra tentar esquecer.

Sabe o que é? Não, ele não sabia. É que esse tesão mental-espiritual-moral-existencial é tão sagrado que não sobra nada pro campo físico. Às vezes é assim.

Posso recitar um trecho pra você? Ela respondeu que sim, claro.

“Cultura demais mata o corpo da gente, cara! Filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir em pensamento.” É mais ou menos isso, ele disse.

Costumávamos afogar nossas impotências no bar da esquina ou em um lirismo juvenil e tosco. E eu disse pra ele que “não, meu bem, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses que somos, o teu negócio é homem e o meu é mulher”.

Rimos. Rimos porque era verdade. Rimos como duas bichas más.

Fomos de tudo um pro outro, só não podíamos ser o que não éramos. Não era fácil ser escritor, poeta vanguardista ou um intelectual assumidamente gay na década de 70. E eu era tudo isso. Ela era o mesmo, culta e inteligentíssima. Boêmia, claro. E para completar, negava que dormia com mulheres porque era/é preciso.

Ele amava um homem que o amava também. Ela não se permitia. Negou até a morte, como diz o ditado.

Quando ela morreu, meu livro fez um sucesso relativamente grande, casei e adotamos um cachorro pro nosso filho. Não fui respeitado no meio acadêmico porque ainda era o que sou. E sempre serei. Queria viver para vê-la aceitar que a gente não escolhe essas coisas e que tá tudo bem ser como a gente é.

“Gente, espelho de estrelas

reflexo do esplendor”.

O ano era de 1973, fui na USP ouvir o que mais tarde seria meu momento epifânico. Fui ouvir Gilberto Gil declamar: “um dia eu ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo, se Deus quiser!”.

Quero me redimir dessa praga de ser intelectual, acadêmico, um poeta marginal. Um maldito! Um bandido, um herói, um gay.

Quero poder não falar mais nada, não escrever pra gente imbecil que não sabe ler e parar de explicar que não sou perfeito, mas que o mundo também não é. Vocês não entenderam nada. Nada!

Respirei. Dito meu monólogo interno, levantei e olhei de soslaio para a plateia. Saí em silêncio. Chorei a sua morte como se a vida também não fosse trágica.